Não gosto que façam de mim parvo
A coexistência pacífica entre os povos e não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados foram os princípios aprovados, em 1955, na conferência de Bandung, que esteve na origem do Movimento dos Não Alinhados, que queria aquecer a alma enregelada de um mundo que vivia a Guerra Fria entre EUA e URSS.
23 anos depois, numa cave da rua Antunes Guimarães (Porto), a meio de uma directa de estudo para a cadeira de Teoria da História, o meu amigo Zé Meireles elaborou uma feliz adaptação ao indivíduo dos dois princípios estabelecidos em Bandung para as nações: 1. Cada qual leva no que é seu; 2. Quem dá conselhos na rua leva no cu em casa.
Ao longo vida tenho observado o espírito de tolerância e respeito pelos outros encerrado nestes pedacinhos de ouro do Meireles, que invoco a propósito do casamento gay. Como sempre achei que cada qual leva no que é seu (e me habituei a não arriscar a dar conselhos) sou naturalmente a favor. Desconfio que os gay não sabem no que se vão meter, mas, repito e sublinho, estão no seu direito.
Hoje em dia o pessoal opta por juntar os trapinhos (a chamada união de fcato) e marimba-se para a legalização da situação nos livros dos notários ou aos olhos do Senhor. O que até se compreende porque o prazo de validade das relações não pára de encurtar e se casar até é barato (custa, em média, 100 euros), o divórcio é muito caro, não só em chatices afectivas mas também materiais – fica a 250 euros, se for amigável, porque se não, upa upa, por causa dos honorários dos advogados. Como metade dos casamentos acaba em divórcio, há cada vez mais gente a cortar-se.
Os gay querem casar-se de papel passado? Porreiro, pá! As grandes vítimas do Simplex (os notários) até agradecem. Casem-se! Compreeendo-os perfeitamente. É a velha história do fruto proibido.
Já compreendo mal porque é que Sócrates meteu no topo da agenda política um dossiê que faz azia a Cavaco, indispõe a Igreja e fractura o seu grupo parlamentar, quando há um ano podia ter despachado o assunto, deixando-se ir à boleia da proposta do Bloco de legalizar o casamento gay.
E não compreendo de todo que os panditas do PS e PSD – em particular os dois lideres parlamentares, pessoas do Porto que ou não leram, ou não perceberam, A Queda de um Anjo, de Camilo – citem o Zé Maria do Big Brother e digam que “não há condições” para avançar com a Regionalização porque não é uma matéria urgente e é preciso reunir um grande consenso político.
Estão a brincar connosco? A legalização do casamento gay é uma matéria urgente? Havia um grande consenso político quando se convocaram os dois referendos sobre o aborto? Andam a fazer de nós parvos. E eu não gosto que façam de mim parvo.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias