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Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Gil Moreira dos Santos

Os tribunais não tem segredos para ele, que já se sentou em todos os lugares possíveis de uma sala de audiências, desde o de juiz, que faz levantar toda a gente quando entra, até ao de advogado de defesa, passando pelos de delegado do Ministério Público e arguido – condição mais recente em que se estreou por vias de ter puxado as orelhas e ralhado, ameaçando dar “tatau no tutu” a um colega do profissão, que disse mal dele na Internet. “Fiz o que se faz a um menino que se castiga”, explica.

Gil Moreira dos Santos, 69 anos, é agora conhecido como “o advogado do Pinto da Costa” (para quem conseguiu a absolvição em processos que se adivinhavam cabeludos), qualificação que lhe merece o recurso à ironia sarcástica que é uma das suas marcas de água: “Passei a ser considerado o Emplastro II. O Emplastro diz que é filho do Pinto da Costa. Eu sou o advogado”.

Filho de um empregado comercial, que esteve na fundação de diversos clubes de hóquei em patins, entre os quais o Infante Sagres, Gil nasceu no Porto a 1 de Dezembro de 1940, e deu os primeiros passos em Lordelo do Ouro, não muito longe do andar onde mora na marginal do Douro, junto à ponte da Arrábida. “Vivo debaixo da ponte, sou uma espécie de clochard”, graceja o advogado que vendeu a casa, junto a Serralves, quando o último dos seus três filhos deixou a casa paterna.

Aprendeu a ler nas páginas de “O Comércio do Porto”, tornando-se portista por apreciar a estética do salto de Barrigana, o keeper azul e branco. Viu muitos jogos do Porto no campo da Constituição e lembra-se de assistir a treinos dados por Yustricht nas Antas. Declara-se portista militante, mas acrescenta ser capaz de ver todas as cores do arco-íris e não aparenta estar incomodado por o seu clube ter falhado o segundo penta: “Deve haver intermitência. E de vez em quando só faz bem levar um banho de humildade”

Atravessou a adolescência a saltar entre a casa dos avós, no Porto, onde fez o liceu no Alexandre Herculano, e a casa paterna, em Oliveira de Azeméis, onde o pai era o gerente do Palácio Ford. Dúvidas quanto ao seu futuro, nunca as teve. Ainda andava na 4ª classe e já toda a gente o ouvia dizer que quando fosse grande queria ser juiz.

À mingua de curso de Direito no Porto, quando chegou a hora foi estudar para Lisboa, alugando um quarto em Alvalade, que lhe permitia ir e vir a pé das aulas, quando, a partir do 2º ano, a faculdade abriu as suas instalações na Cidade Universitária. Em Direito jogou rugby, na posição de três quartos (“como era franzino, metia a bola nas formações e distribuía jogo”) mas também futebol numa equipa que tinha um excelente guarda redes, “um tipo brilhante, mas muito teimoso, sempre do contra, chamado Medina Carreira que já ia no seu terceiro curso superior”.

Foi colega de gente conhecida e de obediências políticas diversas, como o socialista Afonso de Barros e o comunista Ramos de Almeida, num curso que acabou em 1962, o ano da crise académica de Lisboa liderada pelo Cenoura (a alcunha do futuro PR Jorge Sampaio).

Licenciado iniciou a via sacra que na altura os candidatos a juízes tinham de percorrer, fazendo carreira no Ministério enquanto iam conhecendo o Portugal desconhecido. Como um saltimbanco, andou pela Feira, Amares (onde comprou o seu primeiro carro, um VW Carocha de matricula ED-21-00, que teve de vender quando foi chamado para a tropa), Melgaço, Santo Tirso e Porto, até que no ano em que fez 32 anos, atingiu finalmente o azimute traçado na 4ª classe e foi aprovado no concurso para juiz, tendo sido colocado em Cinfães. Pelo meio fez uma tropa regalada, entre 1964/67, passando a maior parte dos três anos colocado no Serviço de Justiça do Quartel General do Porto, escapando à mobilização para a Guerra Colonial por ter sido o 3º classificado do seu curso (Carlos Cruz, que ficou em 5º lugar, também evitou a ida para África e foi colocado nos serviços cartográficos do exército).

O primeiro caso foi o de um homem vinha acusado de homicídio involuntário porque a carga de pedras que transportava esmagou uma pessoa. Como ficou provado que o réu desconhecia que a vítima estava atrás, o juiz Gil Moreira dos Santos optou pela mais leve das penas: seis meses remíveis.

Mais sui generis foi o caso de uma rapariga que era taxista e a GNR acusava da transgressão por não usar o boné regulamentar. O caso encerrava em si alguma dose de hipocrisia. Só havia dois motoristas de táxi em Cinfães, a rapariga era um deles e fazia regularmente serviços para o Tribunal. Gil absolveu-a, argumentando que o boné não tinha sido feito a pensar na hipótese de uma mulher ser taxista.

Não se arrepende de nenhuma das sentenças que deu durante a sua vida de juiz, tumultuada pela Revolução de Abril. Como tinha feito serviço em dois tribunais plenários, foi saneado por uma lei aprovada em 1975. “Fui fascista por diploma legal”, comenta. Quando foi reintegrado, as coisas nunca mais foram iguais. Problemas com as colocações fizeram-se sentir a mais na Magistratura e levaram-no a tomar, com 37 anos, a dolorosa decisão de trocar a profissão com que sonhara desde criança pela de advogado em regime de profissão liberal.

Vasco Graça Moura, seu colega dos tempos, encontrou-o na avenida dos Aliados e mal soube que ele estava disponível, convidou-o para ir trabalhar para o escritório do seu tio Mário. A partir daqui foi sempre a subir. “Nunca me faltou trabalho”, reconhece Gil, que se diverte a viajar com a mulher (em Março foram à Hungria e República Checa, e em 2009 andaram pelo Vietname e Cambodja), a dar aulas na Portucalense e a escrever livros sobre Direito (e não só), editados pelo seu amigo Cruz dos Santos (ex-Inova e Oiro do Dia).

Jorge Fiel

Esta matéria foi publicada no Advocatus 1, de Abril 2010

 

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