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Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Um povo viciado em adrenalina

O meu pior vicio foi o tabaco. Comecei tarde, já na faculdade, mas recuperei rapidamente o atraso em nicotina, pois nos dias em que o trabalho seguia pela noite dentro cheguei a fumar três maços de SG Filtro.

Ter passado cinco dias num sítio onde era proibido o consumo de tabaco (o hospital) por causa de um problema de coração (sempre fui precoce) ajudou-me muito a deixar de fumar, em 1992.

Por medo de uma recaída, nunca mais peguei num cigarro, cigarrilha ou charuto. Curei-me do terrível vício do tabaco, mas tenho outras dependências, que classifico de menores (somos sempre muito indulgentes connosco) como ver séries de televisão, ler thrillers e policiais, comer queijos e enchidos ou enrolar o papel dos pacotes de açúcar - mania que não é tão simples de alimentar porque tomo o café sem açúcar.

Se me perguntassem, assim de repente, qual o vício de que eu gostaria de me livrar, não hesitaria em responder: a adrenalina.

Partilho com a imensa maioria dos meus compatriotas o mau hábito de deixar para amanhã o que podemos fazer hoje, em que nos viciamos ainda catraios (pagando com pingas nas cuecas o pecado de deixar para a última a ida à casa de banho) e depois transportamos pela vida fora, estudando só nas vésperas dos exames e fazendo noitadas para cumprir os prazos.

Nós, os portugueses, somos todos viciados em adrenalina. Deixamos as coisas andar alegremente até o stresse obrigar as glândulas supra-renais a bombar para a corrente sanguínea enormes quantidades de adrenalina, um doping natural que dilata a nossa performance para além do normal.

Somos um povo de viciados em adrenalina, que se agiganta em momentos de grande stresse nacional, principalmente se conduzidos por uma liderança esclarecida e mobilizadora (como na época das Descobertas) ou reunidos em torno da prossecução de um grande objectivo mobilizador - vejam-se os casos recentes da Expo 98 e do Euro 2004.

Estamos a começar a tentar contornar a mais difícil esquina da História do Portugal que encontrámos durante as nossas vidas. Para se sustentar , o país precisa de mil milhões de euros por semana. Já todos percebemos que vai haver menos rendimento para gastar e pagar dívidas, que acabou o crédito fácil e barato, que vai haver muito menos investimento público, mais desemprego com menos subsidio, que vamos ter serviços (electricidade, transportes, saúde e educação ) mais caros e impostos mais altos.

Neste dia em que Governo comemora 100 dias e a crise pôs a adrenalina a circular-nos nas veias, só nos resta acreditar que Passos Coelho vai ser capaz levar este bom povo católico e viciado em adrenalina a acreditar no milagre regenerador do grande sacrifício nacional.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

Confissões de um cubano

Farto dos fins de semana da recruta, cansativos e a saber a pouco, em Dezembro de 1980, quando concluí, em Mafra, o curso de oficial milicianos (especialidade de Anti-Carro e Morteiro Médio) resolvi arriscar quando me pediram para indicar os três destinos de preferência, escrevendo, por esta ordem, Porto, Funchal e Ponta Delgada.

Fui parar à Madeira. Em 1981 (a foto que abre este post é da época) , vivi em S. Martinho, no quartel do Regimento de Infantaria do Funchal, numa Madeira que, pela mão de Alberto João, estava a atingir a velocidade cruzeiro na viagem que a levaria a 2ª região mais pobre do país a chegar a ser ser a 2º mais rica ica do país.

Durante o meu ano de cubano - informo os mais distraídos que esse é termo carinhoso usado pelos madeirenses para designar os de "Lesboa" (termo genérico que abrange todo o pessoal do "Contenente") - fiz muitos disparates (os próprios da idade e mais alguns) de que me arrependo. Mas não me arrependo nada de me ter voluntariado para ir para o Funchal (com a minha nota de curso era impossível ser colocado no Porto).

Aprendi muitas coisas. A começar por curiosas expressões locais. Da primeira vez, não percebi o que queria o soldado que me pediu autorização para "ir em cima dos pés" (tem a sua lógica, pois agachamo-nos quando temos de satisfazer ao ar livre as nossas necessidades fisiológicas de carácter sólido). E confesso ter temido pela sanidade mental do primeiro madeirense que me disse ter perdido o horário como justificação para o seu atraso (o STCP de lá chama-se Horários do Funchal).

Quem flanou pelo Funchal, comeu lapas grelhadas em Porto Moniz e depois viajou pela estrada marginal da costa norte, passeou pelas levadas, fez praia em Porto Santo, subiu ao pico do Areeiro, se deliciou com uma espetada (acompanhada de milho frito e bolo do caco) no Estreito, visitou o Chão da Lagoa (sem ser no dia em que o Johnnie Walker amplifica os devaneios de Jardim), bebeu uma poncha em Câmara de Lobos, tomou um café no Reid's e desceu até ao Curral das Freiras não pode deixar de se apaixonar pela Madeira.

A Madeira é uma região maravilhosa e quem lá viveu não pode deixar de se sentir também um pouco madeirense.

Na minha qualidade de cubano com uma costela madeirense, sinto uma enorme admiração pelo brutal desenvolvimento que Alberto João conseguiu para a sua terra natal, levando a que o Funchal seja uma duas regiões portuguesas com poder de compra superior à média comunitária.

Esta admiração só aumenta a profundidade da tristeza que sinto quando vejo Jardim manchar com os seus mais recentes actos e palavras uma notável carreira de líder político regional. Quero acreditar que se trata de uma maldição relacionada com nome e origem. Ainda não há muito pouco tempo um outro madeirense com o mesmo apelido borrou um brilhante curriculum no sector financeiro ao não saber atempadamente pôr um ponto final na carreira.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

O tzaziki requer paciência

Há dois pratos típicos gregos, muito saudáveis, que acho deliciosos e aprendi a confeccionar. Não estou a falar da moussaka (apesar de nada me mover contra as beringelas, antes pelo contrário) nem do souvlaki, mas sim da salada grega e do tzatziki - não confundir por favor com os iogurtes gregos do Continente, que são porreiros mas se distinguem apenas dos iogurtes normais por usarem leite gordo como matéria-prima.

A salada grega é bastante simples e rápida de fazer. A base é constituída por tomate (não muito maduro, de preferência), pepino e queijo feta (que está a aparecer no Lidl a preços bem em conta) cortados em cubos, temperados com sal e coentros qb, regados a gosto por um azeite transmontano e generosamente adicionados por azeitonas (recomendo vivamente as kalamata, disponíveis no El Corte Inglés).

Um caso bem mais complicado é o do tzatziki, bem mais exigente em mão-de-obra e tempo que a salada grega, que se põe pronta em cinco minutos.

No tzatziki, antes de ser picado, o pepino tem de ser completamente descascado e limpo das sementes. O dente de alho tem de ser ralado. E quer os iogurtes naturais quer o pepino picado devem ser deixados a escorrer durante umas três ou quatro horas, em filtro de papel ou de pano, para se libertarem do respectivos soros (ambos bebíveis, garanto-vos). Depois é só misturar as pastas de pepino e iogurte, mexer, enquanto se junta o alho, um fio de azeite e umas gotas de limão.

É preciso ter paciência para preparar iogurte grego. Também é preciso ter muita paciência para aturar os gregos e eu sei do que falo porque naquela tarde infeliz de 4 de Julho de 2004, ao minuto 57 da final do Euro, apanhei um banho de Carlsberg morna sem álcool, proveniente de um copo atirado para o ar por um grego que estava sentado alguma filas acima de mim na bancada do Estádio da Luz (nunca perdoarei esse momento ao Scolari e ao Ricardo).

Angela Merkel, Jean Claude Trichet, Christine Lagarde são alguns dos nomes que me vêm à cabeça de pessoas que sabem ainda melhor do que eu que é preciso ter uma enorme dose de paciência em armazém para aturar as idiossincrasias dos gregos, que cultivaram, durante anos a fio, a arte de esconder de toda a gente o catastrófico desequilíbrio das contas públicas - ao pé deles, Sócrates e Alberto João fazem figura de tenrinhos apendizes.

Mário Soares pode não perceber muito de números mas está cobertinho de razão quando nos avisou de que se a Grécia cair a Europa vai ao charco. Por isso, Merkel, Trichet e Lagarde & C.ia têm de ter com os gregos mais paciência do que Job. A Europa não pode deixar cair a Grécia. O que não quer dizer que não se deva ser dura com os gregos. Ao fim e ao cabo aquela ideia de os obrigar a vender umas ilhas não é nada disparatada. Quem sabe se um dia não teremos vantagem em fazer o mesmo...

 

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

Opte pela maçã de Alcobaça

Não sou fã de banhos de imersão. Passam-se anos sem tomar um. O meu duche matinal é rápido. Dura pouco mais de um minuto. E gosto dele mais para o frio do que para o quente. Não consumo, por isso, muita energia. Apesar disso, estou inclinado para seguir o exemplo da Susana Fonseca que, sempre que toma duche, guarda num balde a água que sai da torneira antes de ficar morna. "Sempre é uma descarga a menos que faço no autoclismo", explica a dirigente da Quercus.

O truque doméstico de meter uma garrafa vazia no depósito de água, para diminuir o desperdício na descarga do autoclismo, foi já incorporado pela indústria. A Cerâmica de Valadares produz e comercializa com sucesso uma sanita ecológica, que permite grandes poupanças de água. Não compreendo porque é que ainda não foi industrializada a ideia simples e genial de abastecer os depósitos das sanitas com as águas escoadas do lavatório.

De certo está familiarizado com o conceito de pegada ecológica e as suas assustadoras implicações. Seria impossível todos os habitantes da Terra terem um padrão de consumo igual ao nosso, pela simples razão de que os recursos naturais do planeta se esgotariam antes disso poder acontecer. Aterrador, não é?

Só há uma Terra. Os recursos são finitos. Temos de os poupar. Seria tremendamente egoísta continuarmos a comprometer irremediavelmente a qualidade de vida dos nossos filhos.

Caminhamos para a catástrofe se não mudarmos o paradigma de predação da Natureza. Há grandes decisões tomar, que infelizmente estão fora do nosso alcance, como, por exemplo, manter a Amazónia. Sabia que se a desflorestassem, em poucos anos deixaria de haver peixe, porque os oceanos são alimentados com a matéria orgânica que cai no rio e é transportada pelo Amazonas?

Mas podemos contribuir para salvar o planeta se incluirmos na nossa rotina diária pequenos hábitos como o de separar o lixo, fechar a torneira enquanto nos ensaboamos ou escovamos os dentes, não deixar o computador e os electrodomésticos em "stand by", usar lâmpadas eficientes, comprar apenas o indispensável, andar de transportes públicos e não ter preconceitos em recorrer a bens em segunda mão.

E, lembre-se, quando estiver a comprar maçãs, opte pela de Alcobaça. Não só por patriotismo, mas também por razões ambientais . Já pensou na enorme pegada ecológica, só em transporte e frio, de cada Royal Gala argentina?

Para as gerações futuras poderem beneficiar do conforto de abrirem a torneira e sair água, premirem o interruptor e fazer-se luz, temos de aprender a viver com mais frugalidade e menos sofreguidão. Quando comparamos os rankings do desenvolvimento humano com o da pegada ecológica, temos a surpresa de ver que Cuba é quem está mais próximo do ponto de equilíbrio. Surpreendente, não é?

 

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

Seguro não é um Gastão

Só estive cinco anos na política. Mas que anos! Tive a sorte de viver a idade da revolta num Portugal em desvairada mudança de vidas e de costumes. Eu atravessava a fronteira da adolescência (17 anos) para a maioridade (23) . O país evoluía do marcelismo (1973) para a consolidação de uma jovem democracia (1978).

Aprendi muito e para toda a vida naqueles cinco anos que militei na LCI, um grupúsculo trotskista, avô paterno do Bloco de Esquerda. Li furiosamente, habituei-me a discursar em público, aperfeiçoei a técnica de argumentação, escrevi programas e comunicados, inventei palavras de ordem, traduzi textos, organizei greves e manifestações, colei cartazes, ocupei casas, fiz pichagens, preparei reuniões, distribuí panfletos, andei à pancada e fugi da Polícia - só para citar o mais relevante :-).

Desses tempos gloriosos e emocionantes guardo não só recordações, como também métodos de trabalho e hábitos de organização. Cerca de 40 anos volvidos, a ordem de trabalhos tipo de uma reunião política - 1. Informações; 2. Análise da situação; 3. Medidas a tomar - permanece tão actual e eficaz como o velho teorema de Pitágoras.

E tenho para mim que continua a ser fundamental fazer o balanço antes de nos aventurarmos a elencar as perspectivas.

A estabilização da democracia trouxe na mochila um sistema partidário viscoso, assente em máquinas de assalto ao Poder, guarnecidas por militantes cuja preocupação n.º 1 é garantir um futuro melhor para si - e não para o país. O egoísmo substituiu a generosidade. A política passou a ser uma coisa tão animada como o cemitério do Prado do Repouso à meia-noite.

O Congresso do PS é a prova dos nove deste lamentável estado de coisas. Era legítimo esperarmos que de Braga saísse uma ideia clara do que será preciso fazer para voltarmos a prosperar quando acabar o ajustamento brutal a que estamos sujeitos.

Era legítimo esperar, mas nicles! Em três meses de debate, o melhor que o PS conseguiu apresentar, por junto e atacado, foi uma ideia interessante para reaproximar os cidadãos dos partidos (a sugestão de Assis de os simpatizantes poderem registar-se no partido e participar na escolha dos seus candidatos, como nos EUA), uma análise acertada (a inevitabilidade do federalismo, reconhecida no discurso final de Seguro) e uma notícia para as revistas cor-de-rosa: a apresentação à sociedade de Margarida, a mulher de Tozé, que se parece mais com o desafortunado Pato Donald do que com o sortudo Gastão.

É pouco. É mesmo muito pouco para um partido que não teve a coragem de se submeter a um exercício de autocrítica, fazendo o balanço antes de se arriscar a traçar as perspectivas.

Pode viver-se sem família. Pode viver-se sem amor. Pode até viver--se sem dinheiro, levando uma vidinha miserável. Mas é impossível viver sem sonhos nem esperança. Em Braga, o PS foi incapaz de nos fazer sonhar. Seguro não é o cavaleiro da esperança.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no JN

 

Escola, Google e Facebook

Não podemos atribuir a um único facto a responsabilidade pelo desencadear de grandes acontecimentos. A I Guerra Mundial haveria de arranjar outro pretexto para deflagrar se a Mão Negra não tivesse assassinado o Franz Ferdinand em Sarajevo.

O curso de História não foi a minha primeira opção. Convencido de que me seria muito proveitoso conhecer os meandros do comportamento humano, inscrevi-me em Psicologia. Desisti ao fim de um ano.

A esta desistência não foi estranha a dificuldade sentida em copiar para o caderno as equações que o professor de Matemática rabiscava no quadro. Mas no momento da decisão também pesaram estar farto de passar fome em Lisboa (não havia Psicologia no Porto), as paredes e tectos das salas de aulas do ISPA estarem forradas com cartazes do MRPP, e um dos colegas com quem partilhava um apartamento na Flamenga ter provocado uma catástrofe de proporções bíblicas ao puxar o autoclismo de uma sanita entupida.

Quem estudou História ou é um curioso desta área não precisou de ver o Match Point, de Woody Allen (e a verificar a importância que o facto do anel não ter caído ao Tamisa acaba por ter no desfecho da história), para saber que a sorte existe.

Nunca fui professor porque, a meio do curso, apostei em ser jornalista. Mas não tenho a menor das dúvidas de que tive muita sorte em ter escolhido estudar História. Seria muito pior jornalista se na faculdade não tivesse aprendido a relacionar os factos políticos, económicos, sociais e culturais, a ler os sinais dos tempos e interpretar as movimentações numa comunidade.

Neste início de ano lectivo, em época de dramática contenção de custos, olhamos para a escola e não gostamos do que vemos.

Vemos que ao longo das últimas décadas o Estado gastou mais dinheiro, teve mais professores, menos alunos e mais insucesso escolar.

Os 100 mil chumbos no Básico, 17% de repetentes no Secundário e 46% que abandonam após o 12.º ano revelam um sistema doente - e dinheiro não é a solução para inverter os termos desta terrível equação.

A chave para tornar o ensino eficiente é perceber que as escolas estão a formar estudantes para profissões que ainda não existem. De acordo com o Labour Department dos EUA, as dez profissões mais procuradas no ano passado não eram conhecidas em 2004.

A escola não se pode limitar ao papel de mera transmissora de conhecimentos. Tem de ser capaz de fornecer aos alunos ferramentas e capacidades para durante a sua vida profissional resolverem problemas que nem sequer imaginamos com o auxílio de tecnologias ainda não inventadas.

Já repararam que quem acabou o curso no séc. XX não pôde usar iPad ou fazer pesquisas no Google e amigos no Facebook?

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

D. Quixote em Campo Maior

 

Quando andava no liceu, fui muito gozado por causa do meu apelido. Nos anos 60 e 70, era moda baptizar os cães com o meu nome de família.

No tempo em que os jecos se alimentavam dos nossos restos e a pet food ainda não entrara no vocabulário, um daqueles empreendedores de olho vivo que se perdem por terem razão antes do tempo resolveu comercializar comida enlatada para cães com a marca Fiel. Foi um inferno!

Reagi com uma mentira. Quando implicavam comigo, dizendo que tinha o nome de comida para cães, deixava-os na dúvida ao confidenciar-lhes, com o ar mais sério do mundo, que a fábrica era de um tio meu que morava em Setúbal.

Os danos nesta frente pareciam estar controlados quando, já no estertor da Primavera Marcelista, fui arrumado pela campanha televisiva da tentativa de capitalismo popular dos irmãos Silva, protagonizada por uma família portuguesa tipo e que por isso tinha acções da Torralta e um cão chamado Fiel.

Já adulto, quando tive um rafeiro a que chamava Júlio, até encorajava os meus amigos a repetirem a graçola óbvia de comentar que eu tinha nome de cão e um cão com nome de gente.

Apesar dos incómodos que involuntariamente me causaram, sempre adorei os cães (e detestei gatos), pela sua lealdade, dedicação, inteligência e capacidade de aprendizagem. Não é por acaso que escolhi um alegre e sonoro latido para toque do meu telemóvel.

Vêm estas recordações a propósito das inesperadas declarações produzidas por Passos Coelho em Campo Maior exorcizando o demónio de tumultos nas ruas à moda de Londres ou das capitais árabes.

Quando o ouvi diabolizar "os que pensam que podem incendiar as ruas e ajudar a queimar Portugal" a primeira que me veio à cabeça foi: "O homem anda a ver telejornais a mais e isso não faz bem à cabeça de ninguém - e por maioria de razão à saúde mental de um primeiro-ministro".

Depois pensei melhor e fiquei preocupado. O caso pode ser grave. Passos parece não estar a aguentar o facto do seu estado de graça durar tão pouco como o de um treinador do Sporting . Quinta à noite, na SIC Notícias, Pacheco Pereira criticou a política do martelo, enquanto na TVI 24 Marques Mendes acusava o Governo de dar um murro no estômago da classe média. Sexta, Vasco Graça Moura avisou para a desorientação e frustração do eleitorado do PSD. Sábado, no "Expresso", Ferreira Leite arrasou a política fiscal.

Agastado com a opinião de correligionários que se comportam como cães que não conhecem dono, Passos chegou a domingo (o dia da homilia de Marcelo) e disparatou, imitando as incursões de D. Quixote contra os imaginários moinhos de vento ao investir contra os que "se entusiasmam com as redes sociais e esperam trazer o tumulto para as ruas de Portugal".

O discurso de Campo Maior foi um tremendo erro político. O primeiro-ministro não percebeu que os cães só atacam quando farejam o medo na sua presa. Não compreendeu que cão que ladra não morde. E desprezou a imensa sabedoria do dito popular "os cães ladram mas a caravana passa".

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

O estranho caso da Loja Mozart

Ficamos a saber, pelo "Expresso", que os serviços públicos de espionagem, pagos por todos nós, andam a fazer concorrência desleal aos pobres dos detectives privados

Fanático por livros policiais, sempre tive uma enorme admiração pelos detectives privados. Por todo o tipo de detectives privados, desde o pioneiro Sherlock Holmes até aos clássicos Hercule Poirot e Philip Marlowe, passando pelo menos convencional Pepe Carvalho e a imbatível dupla Nero Wolfe/Archie Goodwin. Todos estes, mais uma data deles, ocupam um lugar de destaque no meu panteão privado de heróis.

Tenho para mim que ao contrário do que acontece nos outros géneros literários, em que a imensa imaginação e enorme talento dos autores raramente conseguem superar a surpreendente riqueza da vida quotidiana, no caso da literatura policial a ficção costuma ser muito mais sexy que a realidade.

Na minha geração, as miúdas sonhavam ser hospedeiras da TAP ou veterinárias e os miúdos queriam ser astronautas ou futebolistas. Apesar de lermos de um só fôlego todos os livrinhos da colecção Vampiro (com maravilhosas capas de Lima de Freitas) que nos apareciam pela frente, não me lembro de ter tropeçado em alguém que aspirasse ser detective privado.

Nunca chegaram para encher sequer 1/4 de coluna de jornal os anúncios de detectives privados a oferecerem os préstimos a uma clientela estreita, que presumo se resumia a maridos ciumentos e a mulheres convencidas de que as provas de infidelidade recolhidas renderiam, em termos de pensão de divórcio, o suficiente para darem o dinheiro como bem gasto.

A vida real dos detectives privados nunca foi fácil. Com o abuso das SMS e vídeos para o YouTube, e as inconfidências feitas no Facebook e no Twitter, a privacidade foi sacrificada no altar do progresso tecnológico - e os detectives privados passaram a ser tão procurados como as dactilógrafas.

Como se isso não bastasse, ficamos ontem a saber, pelo "Expresso", que os serviços públicos de espionagem, pagos por todos nós, andam a fazer concorrência desleal aos pobres dos detectives privados.

Por razões não explicadas (mas que não custam a adivinhar), o camarada Paulo Santos, gestor da Ongoing África, precisava de obter umas informaçõezinhas sobre o passado e os negócios do ex-marido da sua mulher. Pôs os pés ao caminho, navegando furiosamente na Internet? Não! Contratou um detective privado? Não.

Em vez disso, pediu ajuda ao irmão da Loja Mozart (que, ao contrário do que possa pensar-se, é uma estrutura da Maçonaria e não uma loja de bombons ou instrumentos musicais) que até há bem pouco tempo foi chefe da Secreta.

Como os amigos são para as ocasiões, Jorge Silva Carvalho accionou a carteira de contactos nos serviços de informação para satisfazer a curiosidade do colega, irmão e amigo.

Todas as histórias têm uma moral. É só encontrá-la. Nesta história, não é preciso ser o comissário Maigret para a descobrir.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

Temos de esquecer o bacalhau

Tenho para mim que a lata da atum é o melhor amigo do Homem - assim, com H grande, para abranger todo o catálogo do género humano, desde os homens propriamente ditos até às mulheres, passando por travestis, transexuais, transgéneros e outras restantes variantes intermédias.

Quando a fome aperta e não temos mais nada à mão, uma lata de atum e um pão (versão minimalista) ou na companhia de uma lata de feijão frade, atalham a necessidade com rapidez e a bom preço.

A seguir à conserva de atum, a melhor amiga do Homem é aquela embalagem de bocados de bacalhau que se encontra nas prateleiras de todas as cadeias de mini, super ou hipermercados.

É mais exigente que a lata de atum, quer em termos de tempo quer de mão-de-obra e qualificações, mas proporciona-nos um sem-número de alternativas gourmet.

Comercializados praticamente despidos de pele e espinhas, estes estilhaços de bacalhau, depois de demolhados, estão prontos a servir de matéria prima à confecção de uma não negligenciável variedade de deliciosos pratos de bacalhau, como pataniscas, à Brás, punheta, à Gomes de Sá, espiritual, bolinhos, com natas, etc.

Diz o povo que há mil maneiras de cozinhar bacalhau, e, que eu saiba, ainda ninguém ousou tentar demonstrar o contrário - ou provar que uma receita é melhor que outra. Todas essas mil maneiras são opções honestas e correctas. Tudo vai do gosto e dos ingredientes que temos em armazém.

Lamentavelmente não há tantas opções como as de cozinhar bacalhau quando se trata do esforço em curso para equilibrar as nossas finanças públicas, que décadas a fio de desgoverno deixaram num estado tão miserável que nos obrigaram a vergar a cabeça e estender a mão à senhora Merkel e outros poderosos deste mundo.

A receita da troika é simples - aumentar as receitas e reduzir as despesas - sobrando apenas para os nossos aprendizes de cozinheiros (Passos Coelho e Vítor Gaspar) a margem para improvisarem nos condimentos. Não têm outro remédio senão subir os impostos, mas podem escolher que impostos aumentam - e em que percentagem. Não têm outra hipótese senão reduzir a despesa, mas podem seleccionar onde cortam - e em que montante.

Mais triste é a situação das famílias, porque nestes tempos de recessão não consta do nosso leque de opções a prerrogativa de aumentar a receita que está à disposição do primeiro-ministro e do seu ministro das Finanças.

Nós só temos uma alternativa, que é cortar nas despesas e adequar o nosso estilo de vida a um rendimento decrescente. O novo normal que vem aí implica esquecer o bacalhau (reservado para dias de festa), e resignarmo-nos à lata de atum.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

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