Um dilema cruel nas manhãs de domingo
Não sou crente. Fui baptizado, andei na catequese e até fiz as duas comunhões, na igreja de Santo Ildefonso. O facto de ser completamente desafinado vedou-me liminarmente qualquer hipótese de ser um menino de coro. Mas até podia ter feito uma carreira como acólito não fosse o azar que sublinhou a primeira e única vez que ajudei à missa. Em vez fazer ouvir um toque solitário e austero, estraguei a solenidade do momento alto da celebração com um alegre e profano repicar do sino.
Nunca consegui apurar o peso que este incidente perturbador (que atribuo à conjugação entre o nervosismo da primeira vez e ao papel pernicioso desempenhado pelas mangas excessivamente largas e compridas da veste que atrapalharam o controlo do sino pela minha mão direita) teve no meu irreversível afastamento dos caminhos da Igreja.
Vem este registo de interesses na coisa religiosa a propósito de a Igreja Católica se ter constituído parte interessada na questão da abertura (ou não) dos hipermercados nos domingos à tarde, uma das querelas terrenas que preenchem a nossa agenda política.
Com o enorme peso que a Igreja empresta à sua palavra, D. António Marto veio a público manifestar-se contra a liberalização dos horários das superfícies comerciais com áreas superiores a dois mil metros quadrados, impedidos de abrir às tardes de domingo num dos actos fundadores do guterrismo – Guterres deixou cair o ministro Daniel Bessa (uma das estrelas dos Estados Gerais preferiu deixar cair uma das estrelas dos Estados Gerais que o levaram ao poder) para poder dar esta piscadela de olho às retrógadas associações de pequenos comerciantes.
“O domingo é um dia de interioridade para Deus, para consigo mesmo, para o repouso e para a família”, argumenta o bispo de Leiria-Fátima, fundamentando a sua oposição à liberalização do horários dos hiper.
Esta posição da Igreja não é muito consequente. Os hipermercados estarem fechados ao domingo à tarde só pode estar a contribuir para afastar da missa os fiéis que trabalham durante a semana e têm de aproveitar o Dia do Senhor para irem às compras.
Como é nosso hábito ir de manhã à missa dominical, a manutenção dos hipers fechados à tarde eterniza um dilema cruel – usar a manhã de domingo para alimentar o espírito, na Igreja, ou para abastecer a dispensa e o frigorifico, nas novas catedrais do consumo.
Acresce que para ser consequente na defesa de um domingo consagrado à interioridade, para Deus e para connosco, D. António Marto ganharia em ir um pouco mais longe nas suas propostas por forma a possibilitar que as dezenas de milhares de portugueses que trabalham nesse dia (nas lojas, padarias, cafés, restaurantes, transportes públicos, museus, jornais, canais de rádio e televisão, etc) deixassem de ser obrigados a fazê-lo e pudessem consagrar esse dia ao repouso e à família.
Por todas estas razões, não me parece bem que a Igreja se tenha constituído parte interessada na questão dos horários dos hipers aos domingos. Nem a Igreja, nem tão pouco os pequenos comerciantes que indiferentes aos interesses e necessidades da sua clientela teimam em manter-se de porta fechada.
Na verdade, se os hipermercados forem autorizados a abrir ao domingo à tarde, os únicos prejudicados são as cadeias de supermercados (Pingo Doce, Lidl, Minipreço e Supercor) que têm vivido sem concorrência dos hipers nesse horário. E esses estão calados.
Jorge Fiel
Esta crónica foi publicada no DN