Deixa-me cheirar o teu bacalhau
Logo à noite, vai ser como deve ser. Cubro a base do prato com azeite, adiciono a gota de vinagre, tempero com pimenta, esmago o dente de alho e a malagueta - e vou misturando até ficar pronta a cama para a posta de bacalhau.
Talvez o meu apelido não seja estranho ao facto de sempre me ter interessado pelo fiel amigo, cuja história e evolução penso não terem ainda sido analisadas nas escolas de negócios, nem reflectidas pelos sociólogos e outros psicanalistas da Pátria. O’Neil exortou-nos a seguir o cherne. Sem melindre para o mano da garoupa, nem ofensa à memória do poeta, apelo a que sigamos o bacalhau, em tudo quanto ele nos tem para dar e não se esgota no prato.
Quantas vezes na cozinha, com uma embalagem com pedaços de bacalhau à frente, me interroguei sobre o que fazer. Bolinhos de bacalhau? À Brás ou à Gomes de Sá? Ou tão só a simples punheta, essa espécie de sushi à portuguesa?
Todos sabemos que há mil maneiras de cozinhar bacalhau, mas nem todos estamos convencidos há mais de uma maneira de fazer as coisas bem e somos tolerantes ao ponto de perceber que a verdade é plural - e temos de respeitar ideias, hábitos e comportamentos diferentes. Logo, durante a ceia, faça a si próprio o favor de aprender com o bacalhau a critica implícita que ele faz ao pensamento único e ao sectarismo dos que pensam ser donos da razão.
Peixe das águas frias dos mares do Norte, o bacalhau é uma matéria prima importada a que acrescentamos o valor da salga e da cura, desde que os nossos navegadores chegaram à Terra Nova. Não é por acaso que o coração da indústria bacalhoeira bate em Aveiro, terra onde abunda o sal e o sol.
No séc. XX, o bacalhau superou a inovação tecnológica (a invenção do frigorífico), mantendo-se fiel ao tradicional processo de conservação (salga e cura), e logrou um upgrade da imagem, deixando de ser olhado como comida de pobres.
Recentemente, adaptou-se ao desembarque massivo das mulheres no mercado de trabalho e ao mal da falta de tempo. Como, no dia a dia, ninguém tem paciência para o demolhar convenientemente, apresenta-se agora na versão demolhada e ultra-congelada já pronta a cozinhar – e menos salgado para não sair da dieta dos hipertensos. E não perdeu de vista as novas gerações, entrando nas pizzas e lasanhas.
Para que não fique tudo em águas de bacalhau, ele só precisa mesmo que o país que o adoptou o assuma sem complexos como o seu maior embaixador gastronómico. O pastel de bacalhau é tão fundamental como a nata. As pataniscas têm tudo para serem uma coqueluche. E não há turista que não adore bacalhau com natas. Itália tem pizzas e pastas. Espanha tem paella e tapas. Portugal tem bacalhau. ‘bora aí internacionalizá-lo à séria!
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias