O primeiro ministro é um grande fingidor
Não são nobres razões éticas que me levam a não suportar a mentira, mas antes motivos bem mesquinhos, do estilo da desculpa “estão verdes, não prestam” dada pela raposa para não comer as uvas na célebre fábula da La Fontaine. Eu evito mentir apenas porque sei que sou incompetente na matéria. Todos nós conhecemos grandes fingidores, que mentem descaradamente com uma notável convicção. Às vezes até os invejo, mas não consigo imitá-los.
Na minha boca, a mentira tem a perna muito curta. Quando tento mentir, sinto que a minha cara, olhos, mãos e linguagem corporal gritam, em uníssono, que estou a faltar à verdade - e então a mentira não só é inútil como, ainda por cima, me deixava embaraçado e cheio de vergonha por ter sido apanhado. Uma merda!
Como todos os mentirosos incompetentes, desenvolvi uma técnica de protecção que consiste em usar a omissão da verdade como sucedâneo da mentira. O problema é que eu sei perfeitamente que o que não se diz também pode ser uma afirmação falsa.
José Sócrates ganhou a primeira maioria absoluta para o PS com duas promessas: TGV e novo aeroporto de Lisboa. Quatro anos e meio depois, foi reeleito numas legislativas que foram, no essencial, a vitória do Sim num referendo sobre o uso dos grandes investimentos públicos no combate à crise.
Os governos andam sempre a boca cheia de obras e projectos, mas vai-se a ver e não passam da palavra a acto. Entre 1998 e 2008, Portugal foi o país de toda a UE em que o investimento público mais caiu, à média de 4,6% por ano.
Lendo os jornais, com o meu detector de mentiras ligado, vejo sinais claros de que o acordo com o PSD para combater o défice e aprovar o Orçamento vai ser o álibi para deixar cair, uma vez mais, o investimento público. As notícias de cortes superiores a 10% no Pidacc são óbvios balões de ensaio lançados por um Governo que quer que a opinião pública olhe para o que ele diz e não para aquilo que não faz.
Estou a ver que o TGV Lisboa-Porto e o Porto-Vigo vão ser sacrificados no altar do acordo com o PSD, e que a partir de 2015 vai ser mais rápido fazer de comboio os 600 km que separam as capitais ibéricas do que os 300 km que dividem as duas principais cidades portuguesas.
Estou a vez que em vez de optar por cortar na despesa como o Governo de Dublin (onde o primeiro ministro deu o exemplo, diminuindo em 20% o seu ordenado e em 15% o dos seus ministros, antes de cortar 10% nos salários públicos), Lisboa prepara-se para reduzir o défice à custa do desenvolvimento.
Estou a ver que Sócrates é um fino poeta, um grande fingidor, pois o que não se diz também pode ser uma afirmação falsa.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias