Jorge Silva
Jorge Silva, 39 anos, é o dono do mais in salão de cabeleireiro de Guimarães, um espaço zen, assinado por arquitectos, procurado por clientela preocupada com a sua imagem, que tanto vai lá cortar o cabelo como receber uma relaxante massagem de chocolate ou champanhe, com terapia cromática. Antigo defesa esquerdo, formado no Vitória de Guimarães, onde foi vice-campeão nacional de juniores, representou o Celoricense, Ronfe, Penafiel, Freamunde e Bradford City, ao longo de uma carreira que encerrou jogando uma época no Brasileirão com a camisola do Bahia. Com o pai, dono do Salão Londres, aprendeu a cortar o cabelo. Com o futebol aprendeu a importância dos relacionamentos e da liderança – e ganhou dinheiro
Ele tinha 27 anos. Estava em Lisboa, no início do Verão e defeso de 1997, a deitar contas à vida. Um contrato com os Bolton Wanderers era a melhor hipótese que tinha em cima da mesa para prosseguir a carreira de futebolista profissional. Mas torcia o nariz a regressar à Inglaterra fria e cinzenta, onde tinha passado a última época, meio deprimido, envergando a camisola às riscas verticais âmbar e clarete do Bradford City.
Uma luz de esperança luziu ao fundo do túnel com um telefonema de Delane Vieira, anunciando-lhe que o dr. Antônio Pithon, cartola do Bahia e dono de 13 salas de cinema, queria falar com ele e o receberia no dia seguinte no lóbi do Hotel Lisboa, na Barata Salgueiro.
A conversa correu bem e, no final, o acordo ficou selado com um vigoroso aperto de mão. Na época seguinte, Jorge Silva representaria o Esporte Clube Bahia com um contrato generoso (falou-se em mais de 200 mil reais/ano).
A notícia correu rápido pela cidade até à Redacção da RTP na 5 de Outubro e teve honras de Telejornal das oito da noite, porque José Rodrigues dos Santos achou que um clube brasileiro contratar um futebolista português configurava a situação do homem que mordeu o cão - sendo que o desembarque na costa portuguesa de mais um contingente de futebolistas brasileiros equivale ao cão que morde o homem.
Como os pais nem sequer sabiam que ele estava em Portugal julgavam-no ainda em Yorkshire), Jorge telefonou-lhes para Guimarães, a avisar de que ia jogar para o Brasil – e para estarem atentos ao Telejornal da RTP, que a irmã, que tem um quiosque, gravou.
Voou para o outro lado do Atlântico, onde logo à chegada constatou duas coisas. Para começar, ficou de boca aberta com a qualidade das instalações do clube (cinco campos relvados, dois centros de estágio e até capela…) e com a recepção que lhe foi dispensada: mal aterrou, deu logo uma conferência de imprensa com a presença de cerca de cem jornalistas. Depois reparou que a sua contratação despertava alguma desconfiança, sentimento agravado pela demora da chegada do seu certificado internacional, um quid pro quo que para ser ultrapassado exigiu a intervenção pessoal de João Havelange.
“No Brasil, há muita cobrança da imprensa. Durante a primeira semana em que estive lá, publicaram os meus relatórios de treino. Nunca vi uma coisa assim. A assistência média nos jogos era de 43 mil pessoas, a maior do Brasileirão. Nos treinos era normal estarem dez mil pessoas a assistir na bancada. E derby com o Vitória, o célebre Ba-Vi, é uma loucura total com 116 mil pessoas a verem!”, recorda.
O treinador do Bahia era o dr Geninho, que uma década atrás tinha estado no comando do Vitória de Guimarães (mais tarde seria substituído por Jair Pereira, vindo do Atlético de Madrid) e plantel estavam dois jogadores que viriam a serem campeões de Portugal pelo Boavista como o guarda redes William Andem e o avançado Demetrius.
Como “Jorgisilvá” não era assim tão fácil de pronunciar, passou a ser conhecido como o Portuga. Foi apresentado à torcida num jogo, na Fonte Nova, em que o Bahia derrotou por 1-0 (um petardo do meio da rua de Lima que Dida não conseguiu deter) o Flamengo de Petkovic, Sávio e Romário,. Teve uma estreia auspiciosa num particular contra uma selecção estadual, em que a sua equipa ganhou 2-1 e ele apontou o primeiro golo e fez a assistência para o segundo.
“Não se pode singrar no Brasil se se não tiver técnica. E é indispensável cair bem na torcida e imprensa”, resume Jorge Silva, que após um ano de experiência brasileira regressou a Inglaterra. Instalou-se no Holiday Inn Crowne Plaza de Manchester, cumpriu o mês e meio do contrato de namoro assinado com o City e no final não chegou a ir ao altar.
“Sentia-me o cidadão mais infeliz do Mundo. Manchester é uma cidade crua, cinzenta e carregada. Eu estava nostálgico, cheio de saudades dos amigos, da família e de Guimarães. Ainda tive propostas do Felgueiras e da Académica, mas tomei a decisão de minha vida. Arrumei as chuteiras e investi no Jorge Silva Cabeleireiros. Tinha 28 anos e pensei que quanto mais tarde começasse o meu projecto profissional mais tempo demoraria a consolidá-lo”, explica.
Os cabelos são um negócio de família. Manuel, pai de Jorge, além de um grande guitarrista e fadista, é dono do Salão Londres. “Não é barbeiro. Barbeiro tem uma conotação agressiva e negativa. É um cabeleireiro de homens”, precisa o filho que aprendeu ao mesmo tempo a manejar a tesoura e a bola.
Lá em casa são todos sócios do Vitória (“Em Guimarães só há um clube!”) e ele ainda andava na primária das Piscinas e já não perdia um jogo no Afonso Henriques. A mais forte e antiga recordação foi a de ter ganho uma vez o sorteio da bola do jogo.
Jorge brinca, dizendo que começou a jogar futebol na barriga da mãe, mas a verdade é que ela só meio ano depois soube que ele tinha começado a jogar nos juniores do Vitória. Às escondidas da mulher, que temia que a bola prejudicasse os estudos, o pai apresentou-o, aos dez anos, a Valdemar Custódio, o treinador dos miúdos, que ainda antes de ver como ele tratava a bola, logo disparou: “Se fores tão bom como o teu pai tens condições para triunfar”.
O pai jogara a extremo esquerdo, na formação do Vitória. O filho manteve-se no flanco esquerdo, mas em posições mais recuadas, a médio ala ou a defesa lateral. Atravessou a adolescência com três ocupações: estudar na ES João de Meira, jogar no Vitória e ajudar o pai, em troco de uma mesada, no Salão Londres.
Começou a fazer cortes sozinho aos 13 anos. “Já tinha o bacharelato”, graceja. À época o corte de cabelo preferido era à Paulinho Cascavel, mais curto à frente do que atrás. “O Paulinho é uma das grandes bandeiras do Vitória. É a minha primeira referência. Era o meu ídolo”, diz Jorge Silva, que no seu posto admirava Maldini e Javier Zanetti: “Tudo o que fazem, fazem bem. Já os viu alguma vez fazerem alguma coisa mal?”.
Jorge Silva é um homem que gosta de fixar objectivos. O primeiro foi o de comprar um carro mal fizesse 18 anos. Poupou as mesadas dos cortes de cabelo e o dinheiro dos prémios de jogos e, mal atingiu a maioridade, lá estava ele ao volante de um Fiat Uno.
No último ano da formação, foi vice-campeão nacional de juniores, apenas perdendo para o Benfica, onde despontavam Gil e Paulo Sousa. Na passagem a sénior, fase difícil e ainda por cima tumultuada por uma entorse, teve de dizer adeus à camisola branca do Vitória, mas ainda recorda com saudade o então responsável pela formação do clube: “Manuel Machado marcou-me muito, como pessoa e treinador. É um grande senhor, muito determinado e educado, que sabe pensar no amanhã”.
Apesar de alinhar a defesa esquerdo, foi o segundo melhor marcador do Celoricense, na época de estreia como sénior, na III Divisão Nacional. “Subia bastante e batia muitas bolas paradas”, explica. Ao final da segunda época foi chamado para a tropa (que cumpriu entre Infantaria 13, em Vila Real, e a Casa de Reclusão, no Porto, onde foi distinguido com medalhas de que se orgulha) e transferiu-se para o Ronfe, que estava na I Distrital de Braga, mas subiu logo ganhando o campeonato sem perder um jogo. “A cinco jornadas do fim já éramos campeões”.
Sempre a trabalhar no Salão Londres, e atento à evolução das tendências em penteados e imagem, jogou uma época no Penafiel, na Divisão de Honra, e outra no Freamunde, na II B, antes de fazer as malas e partir para Inglaterra, levando na bagagem um contrato do Bradford City (onde foi colega de Chris Waddle, já no ocaso da sua carreira).
A aterragem não foi fácil. Custou-lhe muito, quer a ele quer ao outro português do plantel dos The Bantams (Sérgio Pinto, irmão de João Vieira Pinto), a adaptação a um país e uma cultura diferentes. “O primeiro choque? O pequeno almoço. O segundo choque foi o almoço e o terceiro foi o jantar”, conta Jorge, que estranhou os ovos e o cheiro a fritos do pequeno almoço, o frio que fazia - e o facto de às cinco da noite já estar tudo metido em casa. Era tudo diferente, até o futebol, que não era “o toca e vai buscar à frente” a que ele estava habituado, mas um jogo muito mais directo, de pontapé para a frente.
Os anos em Inglaterra e no Brasil foram sabáticos na profissão de cabeleireiro, em que praticou apenas nele próprio, cortando o seu cabelo em frente ao espelho.
Quando pendurou as botas e decidiu abrir na Santa Luzia, bem no centro de Guimarães, o salão Jorge Silva Cabeleireiros, que inovou por ser duplamente misto (clientela e empregados), o pai ficou um bocado triste por ele não ir trabalhar com ele. “Tenho uma relação fortíssima com o meu pai, mas precisava de provar que era capaz de fazer o meu caminho”, explica.
Durante dez anos amadureceu, organizou eventos, trabalhou com nomes grandes da moda com Jean Paul Gautier, e decidiu dar um novo salto em frente investindo num novo espaço e conceito. Localizado na avenida Conde Margaride, o Jorge Silva Hair Concept é um espaço zen (assinado pela dupla de arquitectos Miguel Diogo/Artur Alves) , onde a clientela vai tratar da sua imagem – cortar o cabelo mas e/ou também fazer uma massagem. “Gostar de nós é o principio de um sentimento com reflexo nos outros” é o lema de Jorge que trouxe do futebol para o seu negócio duas grandes lições: a importância dos relacionamentos e da liderança.
“Um bom treinador é o que é admirado e respeitado pelos seus jogadores. Eu não quero que as minhas funcionárias me temam, mas que me admirem e respeitem”, explica Jorge Silva, um apaixonado por velocidade (tem uma Ducati Super Bike 1089), que usa um corte de cabelo que ele próprio descreve como “um trabalho picotado com linhas de texturização acentuadas”.
“A moda é uma quebra da rotina Vou mudando ligeiramente o meu penteado, pois quando inventamos muito arriscamo-nos a ficar ridículos”, concluiu.
Jorge Fiel
Esta matéria foi publicada hoje em O Jogo