Marinho Pinto
Nascido num família de camponeses, António Marinho Pinto aprendeu a ler e a escrever em português do Brasil, sonhou ser piloto de aviões, mas a mão de Deus desviou para Direito. Desembarcou em Coimbra em 1970, ainda estavam acesas as cinzas da Crise Académica, e não demorou muito até ser preso, e passar pela sede da Pide a caminho de Caxias onde esteve 34 dias no isolamento. Foi professor de Literatura e Filosofia, antes de ser advogado e jornalista do Expresso
Os filmes sobre a II Guerra Mundial que viu no Rio de Janeiro, ainda miúdo de calções, inspiraram-lhe um enorme fascínio pelos pilotos de caça e por isso, como nove em cada dez rapazes da sua geração, sonhou ser piloto de aviões. Já do lado de cá do Atlântico, foi a mão de Deus a empurrá-lo para o Direito.
Nascido a meio do século XX (10 Setembro de 1950) numa família de camponeses, em Vila Chã do Marão, Marinho cresceu na obediência aos mandamentos da Santa Madre Igreja. Foi baptizado, fez a catequese, o crisma, as duas comunhões, nunca faltava à missa de domingo, confessava-se e comungava. Desta educação ficou para todo o sempre com os valores da cultura judaico-cristã - a ideia do justo, a culpa, a expiação e o Juízo Final - tatuados no carácter.
Apesar de ter sido a religião a decidi-lo tornar-se um agente da justiça entre os homens, em 1970, quando se matriculou na Faculdade de Direito de Coimbra, já deixara de acreditar. “Aos 18 anos fiz perguntas para quais não encontrei resposta”, explica.
Os traços de carácter deste homem são fruto da sua circunstância de filho de camponeses, que viviam de uma agricultura essencialmente de subsistência. Os escudos amassados com a venda dos excedentes de vinho, milho, batatas e couves, eram aplicados na compra de açúcar, café, sardinhas e chicharros.
Era gente que trabalhava muito, mas não tinha patrões. O único patrão era o sol. Levantavam-se e deitavam-se com ele. O pai emancipou-se da terra, mas manteve a rebeldia de não querer estar às ordens de ninguém. Aprendeu o ofício de alfaiate e em 1951, era ele bebé de seis meses, meteu-se com a família num paquete e 18 dias depois desembarcavam na maravilhosa Baía de Guanabara.
Como a mãe não se deu com o calor e o bulício do Rio, regressou com o filho e a filha, em 1962, ainda a tempo dele ver pela primeira vez, na televisão a preto e branco, o seu Benfica a destroçar (5-3) o Real Madrid de Puskas e Di Stefano, na final da Taça dos Clubes Campeões Europeus. Do Brasil, trouxe a alcunha (o “brasileiro” que o acompanhou durante os estudos secundários, feitos entre Amarante e Vila Real), e um espírito empreendedor – já tinha ganho os primeiros cruzeiros, logo aplicados na compra de rebuçados e gelados, vendendo nas ruas, por altura do Carnaval, fogo de artifício e bichinhas de rabear.
Quando chegou a Coimbra, em 1970, ainda estavam bem acesas as cinzas da Crise Académica de 69, e ele já estava contaminado pelo germe da contestação ao regime. A sua consciência política amadurecera em longas conversas nocturnas, durante as férias grandes, em Vila Real, com transmontanos como João Botelho e Seixas da Costa, que já estudavam no Porto ou em Lisboa. Em 1969, já tinha sido um activista da campanha eleitoral da CDE, localmente lideradas por Montalvão Machado e Otílio Figueiredo.
Coimbra em 1970, era o paraíso para um espírito rebelde como o de António Marinho. No rescaldo da Crise Académica, o centro de gravidade da contestação deslocara-se das reivindicações académicas e pedagógicas para a luta política contra a guerra colonial e pela democracia. Logo em Novembro, na primeira assembleia a que foi, debateu-se a “Critica do Programa de Gotha”, de Marx, e “O Renegado Kautsky”, de Lenine.
Instalado na República de Rapó-Táxo, não demorou muito até que o inevitável acontecesse. A 12 de Fevereiro, ele e o seu amigo Rodrigo Santiago são dois dos cinco estudantes presos numa manifestação que ocupou a sede da AAC (que tinha sido encerrada pelo regime), em solidariedade com dois camaradas angolanos detidos. Foi transferido para a sede da Pide em Lisboa, antes de dar com as costas em Caxias, onde permaneceu 34 dias no isolamento.
Três meses depois foi solto, mediante o pagamento de uma caução de dez contos, mas o incidente turvou durante 16 longos anos a sua relação com o pai, que, para continuar a enviar o cheque, pôs como condição que ele abandonasse a política. “Não abdiquei dos meus princípios e ideias”, afirma, acrescentando nunca ter chumbado a uma cadeira. Esta ferida aberta em 1971 só cicatrizou em 1987 quando ele foi ao Brasil fazer as pazes com o pai, que no entretanto morreu em 2003.
Para se aguentar em Coimbra sem financiamento paterno, Marinho foi tradutor, dactilógrafo, trabalhou na cantina (vendendo senhas ou empratando) e debutou como jornalista no Diário de Coimbra. Até que em 1974, o chamamento da Revolução o levou a interromper o curso, casou, teve a primeira das suas duas filhas (que vive em Londres e é realizadora, enquanto a mais nova, que tem 28 anos, é advogada como ele) e andou a dar aulas de Literatura e Filosofia e entre Aveiro, Feira e Abrantes.
Em 1978, estabilizou como jornalista em Coimbra, abrindo, com o seu amigo Fausto Correia, a delegação da Agência Anop, e reatou Direito, que concluiu em 82. O seu patrono foi o velho camarada Rodrigo Santiago. “Ao fim de seis meses com ele estava melhor preparado que agora com três anos de estágio”, desabafa.
Com apenas um ano de parêntesis, em que esteve em Macau como assessor jurídico de Galhardo Simões (“Não gostei de Macau. No Brasil tinha orgulho em ser português. Em Macau tinha vergonha”) passou os 17 anos seguintes como advogado e jornalista – a partir de 1988 como correspondente do Expresso em Coimbra, a convite de Joaquim Vieira.
“Na minha formação de advogado foi muito importante ter sido jornalista, pois deu-me outra maleabilidade para encarar a rigidez formal da justiça. Sempre tive um noção rigorosa até onde podia ir. Como jornalista, nunca fui meigo a falar ou a escrever mas nunca tive nenhum processo ou desmentido sério. Nunca fiquei prisioneiro dos muros da corporação jurídica e aprendi a dar alguns passos atrás para olhar para as coisas com a objectividade de um jornalista”, concluiu António Marinho e Pinto, que só entregou a carteira de jornalista quando em 2007 foi eleito bastonário.
Jorge Fiel
Esta matéria foi publicada na edição de Maio da Advocatus
Quanto está chateado lê um poema de Pessoa
Quando está chateado, abre numa página à sorte um grosso volume de Fernando Pessoa, lê um ou dois poemas e é remédio santo – fica logo mais bem disposto. Marinho adora poesia: “É alma dos homens”. Refere Rimbaud, Baudelaire, Régio, Camões e Bocage mas acima de todos eles está Pessoa. A seguir vem Jorge Sena e depois Torga, “mas o Torga rebelde dos anos 50, antes de se institucionalizar”. Filho de um alfaiate, tem no armário apenas quatro fatos e três blazers, todos comprados no pronto a vestir. “É raro gastar mais de 300 euros com um fato”. Coimbrão adoptivo, vive durante a semana num hotel em Lisboa. Não comprou apartamento porque – explica – “não quero criar raízes por aqui”. Para além de poesia gosta de música (“Sou fã dos Doors e da melhor música que foi feita nos últimos 500 anos”) e de comer e beber bem com os amigos. “Tenho muito amigos, mas também muitos inimigos. É tão importante ter amigos como inimigos”.