Rerum Novarum 2.0
Dou-me muito bem com o hábito do banho diário. Passam-se anos sem tomar um banho de imersão (talvez não fosse assim se tivesse uma daquelas banheiras modernas com jacuzzi), mas não dispenso o duche matinal, rápido, mais para o frio do que para o tépido, com um jacto forte - detesto quando, por falta de pressão, a água sai a pingar.
O duche diário (que pode ser bidiário quando, no fim de um dia quente, chegámos pegajosos a casa) até pode mau para a pele, como argumentam alguns dermatologistas. Mas é óptimo, e não só do ponto de vista higiénico. É um auxiliar tão precioso como o café no milagre da nossa ressurreição diária após uma noite dormida a correr. E, confesso, dá-me muito prazer sentir a água a escorrer-me pelo corpo.
A componente voluptuosa do duche não passou despercebida ao cardeal Segura, arcebispo de Sevilha durante a guerra civil, que considerou o banho como “uma invenção dos pagãos, senão do próprio diabo”.
Apesar desta declaração desassombrada, estou em crer que a Igreja Católica recomenda aos fiéis a prática regular do banho. Desde esses tempos bárbaros, em que os legionários pró-franquistas (a trincheira de Segura) gritavam “Viva la Muerte!”, o mundo mudou muito e o Vaticano vai-se esforçando por acompanhar essa evolução, se bem que nem sempre os homens da Igreja consigam estar em sintonia com os novos tempos.
Parece-me mal que o antagonismo do cardeal patriarca ao bispo do Porto o tenha levado a criticar publicamente D. Manuel Clemente por ter aceite o Prémio Pessoa – e a transformar numa espécie de réplica das eleições do Sporting a escolha para a presidência da Conferência Episcopal Portuguesa.
D. José Policarpo não esteve bem ao forçar a sua eleição (à terceira volta!) para um lugar que já ocupara (1999-2005), jogando o prestigio do seu cargo para derrotar a candidatura do bispo do Porto, provocando uma dispensável tensão Norte/Sul na igreja e envolvendo-se numa manobra lida como de pressão para que o Vaticano lhe prolongue por mais três anos o mandato como patriarca de Lisboa, apesar já ter atingido a idade da reforma canónica (75 anos).
Tive uma educação católica, mas na adolescência afastei-me de uma igreja incapaz de dar respostas ao vendaval de coisas novas que a partir dos anos 60 começaram a abalar o mundo a uma velocidade estonteante – e que teima em não abrir de princípios bolorentos, como a discriminação da mulher e o celibato dos padres.
Ao fim e ao cabo, como poderia olhar para D. José Policarpo como um modelo, se ele é incompleto, por ser solteiro e nunca ter vivido com uma mulher. Porque viver com uma mulher é uma das coisas mais difíceis que um homem tem de aprender nesta vida.
A Igreja está mesmo a precisar de uma encíclica Rerum Novarum 2.0.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias