Temos de esquecer o bacalhau
Tenho para mim que a lata da atum é o melhor amigo do Homem - assim, com H grande, para abranger todo o catálogo do género humano, desde os homens propriamente ditos até às mulheres, passando por travestis, transexuais, transgéneros e outras restantes variantes intermédias.
Quando a fome aperta e não temos mais nada à mão, uma lata de atum e um pão (versão minimalista) ou na companhia de uma lata de feijão frade, atalham a necessidade com rapidez e a bom preço.
A seguir à conserva de atum, a melhor amiga do Homem é aquela embalagem de bocados de bacalhau que se encontra nas prateleiras de todas as cadeias de mini, super ou hipermercados.
É mais exigente que a lata de atum, quer em termos de tempo quer de mão-de-obra e qualificações, mas proporciona-nos um sem-número de alternativas gourmet.
Comercializados praticamente despidos de pele e espinhas, estes estilhaços de bacalhau, depois de demolhados, estão prontos a servir de matéria prima à confecção de uma não negligenciável variedade de deliciosos pratos de bacalhau, como pataniscas, à Brás, punheta, à Gomes de Sá, espiritual, bolinhos, com natas, etc.
Diz o povo que há mil maneiras de cozinhar bacalhau, e, que eu saiba, ainda ninguém ousou tentar demonstrar o contrário - ou provar que uma receita é melhor que outra. Todas essas mil maneiras são opções honestas e correctas. Tudo vai do gosto e dos ingredientes que temos em armazém.
Lamentavelmente não há tantas opções como as de cozinhar bacalhau quando se trata do esforço em curso para equilibrar as nossas finanças públicas, que décadas a fio de desgoverno deixaram num estado tão miserável que nos obrigaram a vergar a cabeça e estender a mão à senhora Merkel e outros poderosos deste mundo.
A receita da troika é simples - aumentar as receitas e reduzir as despesas - sobrando apenas para os nossos aprendizes de cozinheiros (Passos Coelho e Vítor Gaspar) a margem para improvisarem nos condimentos. Não têm outro remédio senão subir os impostos, mas podem escolher que impostos aumentam - e em que percentagem. Não têm outra hipótese senão reduzir a despesa, mas podem seleccionar onde cortam - e em que montante.
Mais triste é a situação das famílias, porque nestes tempos de recessão não consta do nosso leque de opções a prerrogativa de aumentar a receita que está à disposição do primeiro-ministro e do seu ministro das Finanças.
Nós só temos uma alternativa, que é cortar nas despesas e adequar o nosso estilo de vida a um rendimento decrescente. O novo normal que vem aí implica esquecer o bacalhau (reservado para dias de festa), e resignarmo-nos à lata de atum.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias