Não sou filho de pai rico
Passar as tardes no cinema é um dos pequenos prazeres que me reservo quando as folgas calham em dias de semana. Às vezes vejo dois filmes, como aconteceu há 15 dias, quando papei a Dama de Ferro (grande Meryl Streep!) e o Millennium, um a seguir ao outro. Na 6.ª feira fiquei-me pela Detenção de Risco, um thriller que vale apenas pelo Denzel Washington e a Cidade do Cabo.
O meu sítio preferido é o multiplex UCI no Arrábida. Pela qualidade das salas mas também pela oferta alargada de 20 filmes e a flexibilidade dos horários, com as sessões a começarem entre as 13 horas e as 14 h, o que muito me agrada. Ainda por cima, ao contrário do que acontece noutras salas, as fitas são exibidas sem intervalo, o que é um corte. Os filmes devem ser consumidos sofregamente, de um fôlego, e não às prestações como quem compra um carro.
Apesar de ter lido todos os três livros do Stieg Larsson e por isso conhecer o essencial da intriga, durante as três horas que durou a exibição do Millennium esqueci por completo a realidade e vivi por dentro as emocionantes aventuras da Lisbeth Salander e do Mikael Blomkvist.
Dantes não era assim. Uma ida ao cinema incluía a dimensão da compra de um ovo Kinder, já que durante os dois intervalos (a seguir aos trailers e no meio do filme) alimentávamos a esperança de tropeçarmos num amigo ou sermos brindados com um encontro inesperado com uma potencial namorada.
Tribuna, balcão ou plateia. A diversidade na escolha de lugares não compensava a oferta mais curta naqueles tempos em que os arrumadores, munidos de lanternas, nos conduziam aos lugares na expectativa de receberem uma gorjeta.
O Mundo mudou muito desde esses tempos que forneceram a matéria-prima para uma deliciosa história sobre o valor do dinheiro, contada por José Manuel dos Santos na imperdível crónica que publicava no Atual do "Expresso".
"A diferença é que o meu filho teve um pai rico e eu não", respondeu o velho senhor, quando o arrumador do cinema ganhou coragem para lhe fazer notar que enquanto ele o gratificava apenas com cinco tostões de gorjeta o filho tinha as mãos mais largas - dava-lhe um escudo. A melhor maneira dos nossos filhos aprenderem alguma coisa sobre dinheiro é não termos nenhum.
Nós, portugueses, perdemos o respeito ao dinheiro desde que a torneira de Bruxelas começou a jorrar. Embebedamo-nos com o crédito fácil e barato que veio atrelado ao euro e endividamo-nos alegremente como se não houvesse amanhã.
Só agora começamos a pagar a conta. Estamos a viver a ressaca dolorosa dos excessos do crédito e a tentar pôr ordem nas finanças públicas, depois da sua fragilidade ter sido brutalmente exposta pela crise financeira.
Eu, que não sou filho de pai rico, nunca deixei de dar valor ao dinheiro, que raramente me faltou mas sempre me custou muito a ganhar. Portugal só retomará o crescimento quando todos voltarmos a respeitar o dinheiro.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias