Quero pataniscas de bacalhau
A Manuela e o Luís, um casal de amigos nossos de Lisboa, já tinham as ideias bastante arrumadas quando chegamos, ligeiramente atrasados, para jantar, na Cozinha do Manel. Pareceu-nos bem a ideia de partilharmos tripas e rojões, tanto mais que a seguir, para ajudar a digestão, íamos dar um grande passeio a pé pela Baixa, a espreitar a movida (era sexta-feira). Pensei no Duorum, do Zé Maria Soares Franco (ex-Barca Velha), quando me deram a tarefa da escolha do vinho, condicionada a tinto do Douro.
"E que tal se trouxesse um pratinho de tripas para cada um e depois, em vez dos rojões, viesse um galo espetacular com arroz no forno, que não está na lista?", contrapropôs o Zé António que, simpático e solícito como sempre, fez questão de pessoalmente tomar conta dos pedidos.
O frango, XXL (as sobras alimentaram quatro bocas em minha casa ao almoço do dia seguinte), estava realmente delicioso, tal como o Vallado
("Anda muito bom", recomendou o Zé António) que se mostrou à altura dos acontecimentos.
Recordei este jantar memorável a propósito de um artigo, publicado na "Nature", onde se defende a tese de que as nossas escolhas não são tão livres como parecem. Baseado em experiências concretas, o neurocientista John-Dylan Haynes conclui que em 60% a 80% das situações é possível prever ntecipadamente o que vamos escolher.
Os progressos neste domínio têm sido muito bem aproveitados pelas marcas para convencerem os consumidores - e reforçaram a componente científica do marketing e a publicidade. Nestes tempos do bombardeamento cirúrgico, seria imediatamente despedido quem se atrevesse a repetir uma das mais clássicas frases de Henry Ford: "Sei que metade da publicidade que faço é inútil. Só não sei qual é essa metade".
Nascida no terreno da filosofia, a questão da liberdade de escolha tem de ser reavaliada à luz dos avanços das neurociências e não pode ser encarada como um problema menor.
Há escolhas condicionadas mas inevitáveis. Ninguém, no seu perfeito juízo, teima em encomendar a dourada se o dono do restaurante o desaconselha ("Não está em condições"), ou recusa a sua sugestão de ir pelo rodovalho ("Está fresquíssimo. Foi o meu almoço").
Há escolhas facilmente previsíveis. Como sabe que eu nunca comi coelho, a Isabel é capaz de prever, com 100% de certeza, a minha decisão
se me der a escolher entre atum de cebolada e coelho à caçador.
A questão da liberdade de escolha afeta não só as pequenas coisas do nosso quotidiano mas também as coisas grandes da política. Como cidadão e eleitor sinto-me como, há um século, os clientes do Ford T, que podiam escolher a cor preferida para o seu automóvel, contanto que fosse a preta. Não havia mais nenhuma disponível.
Qual é a liberdade que temos de escolher quem nos governa, se na realidade só podemos optar entre o atum de cebolada do PS e o coelho à
caçador do PSD? A liberdade de escolha é uma treta. Porque aquilo que me apetece mesmo não é nem atum nem coelho, mas sim pataniscas de bacalhau. Ou então bacalhau à Dilma.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias