Um retrato menos mentiroso
Se excluir o futebol e alguns (poucos) noticiários, é raríssimo eu ver televisão em direto. Faço a minha própria programação. Enquanto aguardo, ansioso ao ponto de estar quase a começar a roer as unhas, pela 3.ªº temporada de Downton Abbey e a 2.ª de Homeland (segurança nacional), tenho a gravar três séries (Body of proof, The Protector e Rizzoli & Isles), que me entretenho a ver quando me apetece, nas folgas ou à noite. De vez em quando, faço um raide pela programação dos Fox, AXN, Discovery, Travel e História e ponho a gravar, avulso, um episódio, filme ou documentário.
Sei que não sou o único com este perfil. Em Inglaterra, mais de metade do consumo de televisão não é feito em direto. Quer isto dizer que está seriamente desfocado qualquer retrato das audiências que não leve em conta a nova realidade do espetador programador.
Durante 13 anos, a verdade a que tínhamos direito sobre as audiências televisivas foi-nos fornecida pela Marktest a partir de uma amostra cansada e contaminada pelo pecado original de ser constituída com base em entrevistas para telefone fixo, o que excluía logo à partida sensivelmente metade dos lares portugueses e grupos sociais tão significativos como os jovens urbanos e as classes mais pobres. A amostra da Marktest estava velha também porque não media o consumo de programas em diferido e não contabilizava os sistemas de receção de televisão por satélite.
Como a amostra estava velha e cansada e a tecnologia usada não permitia captar as novas formas de consumo, em 2010, a CAEM, que reúne os três protagonistas da indústria televisiva - anunciantes, agências de publicidade e meios (RTP, SIC, TVI, Zon e Meo) - achou por bem abrir o concurso para a mediação de audiências, que foi ganho pela GfK. A importância desta questão reside no facto da audiência ser a moeda padrão do negócio da televisão - cada ponto vale dinheiro.
O normal funcionamento do mercado na indústria dos Media exige um retrato mais verdadeiro do consumo de televisão que seja pelo menos quase tão exato como o dos jornais, onde se conhece, com precisão até à unidade, a tiragem, circulação paga, vendas em bloco e vendas em banca de cada título.
Já sabíamos que as audiências televisivas estavam a fragmentar-se a grande velocidade e que, nos dias de semana, os portugueses passam o dobro das horas na Internet (cinco horas) do que do ecrã de televisão (duas horas e meia).
O novo e mais verdadeiro retrato do consumo de televisão que está a emergir revela-nos que a caixa que mudou o Mundo já não é a determinante no sistema de constituição de opinião pública - e confirma o fracasso da estratégia da RTP de, apesar do seu duplo financiamento (público, do nosso bolso, e privado, dos anunciantes), teimar em apostar na luta pelas audiências imitando a natureza e conceito dos canais privados e generalistas, em vez de construir uma identidade e personalidade própria.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias