Os malefícios do zapping
Lembro-me como se fosse hoje. Após uma primeira fase impecável, em que despachámos com chapa três os nossos três adversários (Brasil de Pelé incluído), aos 25 minutos já estávamos a perder por uns incríveis 3-0 com os fracotes da Coreia do Norte.
A épica reviravolta ficou tatuada na memória da minha geração, que por muitos anos que viva nunca esquecerá onde estava no dia dos 5-3 à Coreia e no 25 de Abril.
Eu estava em casa, no 2.º andar do 304 da Avenida de Rodrigues de Freitas, junto ao Jardim de S. Lázaro, em frente ao enorme televisor Nordmend que o meu pai tinha acabado de comprar a prestações à D. Delfina, da Rádio Mundial, a loja de eletrodomésticos que ocupava o primeiro andar do nosso prédio.
Tinha acabado a primária e andava com dores de barriga por causa dos exames de admissão ao liceu e à escola industrial, quando desembarcou na nossa casa o primeiro exemplar da caixa que mudou o mundo.
Nos últimos 50 anos, mundo e pais mudaram - e de que maneira! - por causa da televisão, mas não só. Hoje, quando chega à primária, para o seu primeiro dia de aulas, uma criança leva a sua cabecinha desorganizada pelas quatro mil horas de televisão que, em média, já leva no papo.
Num mundo em que a atenção humana passou a ser o fator escasso, as crianças crescem em frente à televisão, a verem 26 mil anúncios por ano e a viciarem a cabeça na agressiva linguagem do videoclip inventada pelos publicitários para tentarem fazer ouvir a sua mensagem no meio do ruidoso bombardeamento de informação a que estamos submetidos.
A lamentável falta de capacidade de concentração da geração Internet é filha do malefício do zapping e tem de ser combatida pelo sistema de ensino logo no início, nos bancos da escola primária, para evitar que a generalidade dos estudantes chegue à Universidade com dificuldade em acompanhar um raciocínio mais elaborado e incapaz de seguir uma exposição que dure mais de dez minutos.
Nestes tempos em que adolescentes e jovens adultos são exímios em usar os polegares para enviarem 150 SMS por dia, a missão da Escola é ensiná-los a usar a cabeça para pensar - e treiná-los para ganharem capacidade de concentração e sacrifício.
Nestes tempos em que muitos estudantes - muito mais do que seria razoável e desejável - têm dificuldade em levar a cabo, na vida real (que é muito diferente da dos videojogos), uma tarefa que envolva um desafio mais complicado, o mais complicado e decisivo desafio da Escola não é ser eficaz a transmitir-lhes conhecimentos, mas sim a ensinar-lhes a procurar e aprender os conhecimentos de que vão precisar para se desembrulharem ao longo da vida.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias