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Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Luis Filipe Carvalho

 Luís Filipe Carvalho, 43 anos, é sócio da ABBC e candidato a Bastonário da Ordem dos Advogados. Figura conhecida dos telespectadores, já que é visita frequente da Sic, onde comenta e explica os casos de justiça mais mediáticos, moldou o seu carácter a jogar hóquei em patins no Alverca. “Como temos de manter o domínio coordenado da patinagem e da bola, o hóquei é de uma enorme complexidade e obriga-nos a nunca parar de aprender e evoluir. É um desafio grande porque temos de estar em constante progressão e aperfeiçoamento”, afirma este sportinguista ferrenho que adora velocidade, seja ela em cima das rodas de uns patins ou de um kart, modalidade em que participa regularmente em provas de resistência

 

 

Ainda mal sabia andar de patins, mas apaixonou-se à primeira vista pela modalidade no preciso dia em que acompanhou uns colegas da escola a um treino de hóquei dos infantis do Alverca. Estávamos em 1978. Transmitido pela televisão, um Portugal-Espanha em hóquei em patins parava o país. Para ele, que acabara de fazer dez anos, Livramento era o ídolo e modelo, o mesmo que representa agora Cristiano Ronaldo para os miúdos que estão na antecâmara dessa idade dos sonhos que é a adolescência.

O jeito para o desporto, já manifestado na Primária - feita entre Luanda (onde nasceu e deixou de ser analfabeto) e Alverca (onde cresceu e se fez homem) -, nas aulas de ginástica e nos jogos de futebol de cinco (“rematava e driblava bem”), facilitou-lhe a iniciação a este desporto, disputado sobre rodas, a altas velocidades e com muito contacto físico, que lhe foi moldando o carácter.

As travagens, as viragens em velocidade e o stop and go logo começaram a deixar de ter segredos para ele. O hóquei em patins era uma modalidade de primeira linha, com enorme presença mediática, e todos os miúdos se esforçavam para copiar as habilidades que viam os Livramentos e os Júlios Rendeiros fazer na televisão.

“Como temos de manter o domínio coordenado da patinagem e da bola, o hóquei é de uma enorme complexidade e obriga-nos a nunca parar de aprender e evoluir. É um desafio grande porque temos de estar sempre em progressão e aperfeiçoamento, ao contrário de outras modalidades em que se estabiliza a partir de momento em que se atinge um determinado patamar técnico”, reflecte Luís Filipe Carvalho, 43 anos, candidato a Bastonário da Ordem dos Advogados e uma cara conhecida da maioria dos telespectadores, pois é presença frequente nos espaços informativos da SIC, onde comenta e dá opinião sobre casos de justiça.

Ao habituá-lo a estar sempre a progredir, a adaptar-se e a aguentar a dureza dos choques com os adversários, principalmente junto às tabelas, o hóquei foi uma extraordinária escola que o preparou para ser advogado, profissão com o que sonhava ser desde miúdo, movido pelo impulso quixotesco de ajudar a fazer justiça aos mais necessitados e pela pragmática vontade de resolver problemas – e confirmada durante o Secundário onde sentiu uma maior vocação para as Humanidades.

O equipamento ser caro (patins, caneleiras, coquilha, luvas, stick) era o problema maior que o hóquei em patins levantava à entrada, o que o obrigou a desenrascar-se, pois o dinheiro não abundava, nem em casa, nem no país, que estava a acordar com a ressaca da festa do 25 de Abril. Começou com equipamento emprestado por miúdos mais velhos a quem tinham deixado de lhes servir e assim que podia ia fazendo upgrades. “Os sticks fornecidos pelo clube eram fracos e partiam com muita facilidade”, recorda.

Os pais apoiaram-no sempre, apesar de estarem a refazer a vida, pois a guerra civil angolana obrigou-os a voltar a Portugal. “Foi uma saída com pressa. O meu pai ainda ficou mais um ano, a ver o aquilo dava, mas explicou-nos muito claramente que eu e minha mãe tínhamos de partir, porque Angola já não era mais um local seguro”, conta Luís Filipe, que nasceu em Luanda no ano do Maio francês e aterrou em Lisboa, em 1975, com sete anos, idade suficiente para lhe ficarem gravadas na memória as primeiras e fortes recordações do seu novo país: “Vivia-se um momento especial. Fiquei com a impressão de que reinava um enorme caos e grande desorganização, misturados com uma indisfarçável alegria. Nós tivemos de recomeçar tudo de novo, de nos virar. A minha mãe, que era funcionária pública, arranjou um lugar no Ministério da Educação. O meu pai, que estava no ramo automóvel, arrancou com outro negócio. Foi difícil”.

O pai ia levá-lo e buscá-lo aos treinos, que nos dias frios e molhados de Inverno entravam pela noite dentro. A princípio, nos infantis, treinavam apenas duas vezes por semana. Mas a frequência foi-se intensificando. E aos fins-de-semana havia sempre jogos. O Alverca era uma equipa do meio da tabela, num campeonato muito competitivo, que para além dos tradicionais Benfica e o Sporting, era disputado pelas fortíssimas equipas da Linha – Cascais, Paço de Arcos e Salesianos.

Com o número 7 nas costas, jogava sempre à frente, no lado direito do quadrado, e apesar da baliza ser pequena e os guarda redes grande, cedo se revelou um avançado goleador, dando nas vistas ao ponto de ser chamado à Selecção Nacional. “Os muitos golos que marquei são a melhor recordação que guardo dos meus tempos de hoquista. Como era difícil fazer um golo, era um momento muito electrizante, uma vibração muito especial que contagiava todos os jogadores, incluindo os que estavam no banco”, diz Luís Filipe que treinava afincadamente os remates ao ângulo e para cima do ombro de guarda redes – precisamente os de mais difícil defesa.    

Um dia, estavam a treinar ao ar livre, a chuva era tanta que o ringue ficou todo alagado, ele escorregou, caiu e sentiu-se a deslizar a uma velocidade vertiginosa com a cabeça em direcção à tabela - e não se lembra de mais nada, pois perdeu os sentidos. Ficaram todos preocupados, levaram-no ao hospital, mas não tinha sido nada de grave, apenas uma pancada. “Esta é a pior recordação que tenho do hóquei, devido à sensação de impotência de saber o que me ia acontecer mas não poder fazer nada para o evitar”.

Pendurou os patins quando entrou em Direito. “Tive muita pena. O desporto, de preferência de competição, é uma componente imprescindível na formação humana”, diz, criticando o facto de em Portugal não ser fácil praticar desporto fora do enquadramento clubístico. Está arrependido de ter deixado o hóquei, mas faltava-lhe o tempo. Teve se se aplicar para vencer o cabo dos dois primeiros anos, excessivamente maçudos e teóricos. E a partir do 3º ano começou a dar aulas, primeiro na Escola Secundária Forte da Casa, em Vila Franca de Xira, depois como monitor de Finanças Públicas na faculdade e finalmente como assistente em várias cadeiras, entre as quais Direito Comercial.

A competitividade e força de vontade aprendida nos ringues de hóquei ajudou-o a chegar até ao gabinete no 5º andar do edifício do Largo de S. Carlos, em Lisboa, ocupado pela ABBC  - a firma com mais de 50 advogados de que é sócio, sendo o C (de Carvalho) final  -  e que há cerca de um século foi habitado por Fernando Pessoa, antigo inquilino cuja memória é homenageada no átrio do prédio por um trabalho de Alexandre Farto.

A velocidade sobre rodas continua a seduzi-lo. Dantes eram as rodas dos patins. Agora são as dos karts, pelos quais se apaixonou à primeira vista (tal como tinha sido com o hóquei) há uma dúzia de anos, quando os amigos o convenceram a alinhar numa prova por equipas de endurance (24 horas) em Baltar. “Exige uma grande capacidade de resistência física, técnica, respeito pelas regras e elevadíssimos níveis de concentração porque um erro pode atirar pela água abaixo o esforço da equipa”, esclarece Luís Filipe, que regularmente participa em provas de resistência (seis, 12 ou 24 horas) por equipas, em que cada piloto faz, de cada vez, percursos máximos de 50 minutos e se atingem velocidades na ordem dos 90 km/hora.

“Teria gostado de ser piloto de corridas”, confessa o advogado, que tem no Sporting outra das suas grandes paixões, herdada do pai, que desde pequeno o levava a Alvalade. Yazalde foi o seu primeiro ídolo, mas também recorda com saudade a época extraordinária da dupla Jardel/João Pinto. A mais antiga e grata lembrança que guarda do futebol é Benfica-Sporting em que Vítor Baptista perdeu o brinco.

Luís não só não falha um jogo do Sporting, como tem uma estratégia para o futuro da equipa de futebol, que consiste em fazer uma mistura entre jovens valores oriundos da formação, com uma três/quatro futebolistas experientes, em cuja escolha não pode haver erros. “Têm de ser todos tiros no alvo, não só pela posição que ocupam em campo como também pelo exemplo que dão aos mais novos e à capacidade de liderança no balneário”, explica o candidato a Bastonário do Advogados e sócio da ABBC onde tem como colega Rogério Alves, seu amigo, sportinguista e antigo Bastonário.

“O Sporting tem um problema de equilíbrio. Aos excelentes resultados da formação é preciso agregar jogadores com mais experiência, vindos de fora, e isso não tem corrido bem. Acresce que na figura do treinador temos apostado no modelo de treinador jovem, pouco conhecido e sem curriculum. Foi assim com o José Peseiro e Paulo Bento. E volta a ser assim com o Paulo Sérgio. Eu acho que depois de este modelo se ter esgotado, em termos de liderança e de resultados, devíamos ter apostado num treinador mais velho e com mais experiência, que podia ser português, como o Manuel José, que acalmasse o turbilhão do balneário. Serei o primeiro defensor e apoiante da equipa. Mas temo que as coisas possam descarrilar se não começarmos bem a época. Não estão em causa as pessoas mas o modelo”, conclui Luís Filipe Carvalho, que guarda como pior sensação das sete épocas em que hoquista do Alverca aquela sensação de impotência que, de saber o que vai acontecer mas não poder fazer nada para o evitar, que se apoderou dele quando um dia estava a treinar ao ar livre, o ringue ficou todo alagado, ele escorregou, caiu e sentiu-se a deslizar a uma velocidade vertiginosa com a cabeça em direcção à tabela.

Jorge Fiel

Esta matéria foi hoje publicada em O Jogo

 

Sara Martinho

Não foi pai nem mãe a primeira palavra que lhe saiu da boca, mas sim cã, de cão, referindo-se ao galgo Doff com quem partilhou a primeira casa, um andar à Estefânia também habitado por um mocho (que viria a morrer tragicamente atrás do frigorífico), dois falcões, um gato e uma iguana. Atendendo aos antecedentes, não é de espantar que Sara Martinho, 33 anos, seja, entre outras coisas, uma activista da Animais de Rua e partilhe com duas gatas ex-vadias (Tigra e Mia) o apartamento de Santo Amaro de Oeiras onde vive com a namorada -  e já tenham sido a FAT (Família de Acolhimento Temporário) de mais de 50 gatos que estavam à espera de adopção.

Os animais de rua são uma das muitas causas que cabem no coração de Sara, que se iniciou no voluntariado, ainda miúda de 14 anos, quando morava junto à Feira Popular e frequentava a paróquia do Campo Grande. Foi animadora sócio-cultural no Bairro das Murtas. Aos 21 anos, integrou o grupo de Acção social da Lusíada que dava apoio aos internados no Hospital Prisional de Caxias. Finalmente, aos 25 anos, tornou-se activista da Rede Ex-Aequo, que percorre as escolas deste pais a pregar a mensagem da igualdade dos géneros e a combater a discriminação dos homossexuais. “No primeiro trimestre, fomos a mais de 15 escolas. Não temos oradores que cheguem para as encomendas”, garante a vice-presidente da Ilga (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero), que não falhou por muito o sonho de criança de vir a ser missionária.

Apesar da homossexualidade ser o principal factor de discriminação no nosso país (67%), as apresentações nas escolas correm sempre muito bem. “Paneleiro é o pior insulto que há em Portugal. Quando peço aos alunos para esquecerem os professores e darem sinónimos de homossexual, eles normalmente ficam calados e constrangidos. Para quebrar o gelo, dou dois exemplos que tem a carga negativa de insulto: fufa e paneleiro. E pergunto-lhes se eu sou um insulto e se acham bem haver pessoas que são insultos”, conta Sara, a activista que obrigou a Galp a retirar a frase “e o último a chegar é paneleiro” da letra de um hino publicitário.

Ela foi a primeira a chegar à esplanada do Noobai, junto ao Adamastor, em Santa Catarina. “Tenho gadelha, camisa branca e sapatos amarelos”, identificou-se na SMS. O activismo desta morning person, capaz de mandar mails cheios de links às 6h05 da manhã, é a melhor explicação para ser magríssima e adorar comer.  Escolheu uma tosta de queijo de cabra e, como estava calor, mudou para branco a encomenda inicial de um copo de tinto. Acabou com bolo de mousse de chocolate.

Não usa relógio, maquilhagem ou outros adornos, com a excepção de um discreto fio de ouro ao pescoço com uma abelha – que tem uma explicação. Com formação em Psicologia, trabalhou em headhunting até que há alguns meses se tornou Relações Públicas da Omoura (empresa que vende de jóias e relógios e é agente de marcas como a H. Stern, Chaumet e Dior) que lhe proporcionou profissionalizar o seu activismo, ou seja ganhar a vida a lutar por causas.

A abelha é o símbolo da Chaumet. Em coordenação com a Estação Apícola Nacional da Tapada da Ajuda e com o apoio daquela marca de luxo, Sara está a pôr de pé uma campanha de protecção das abelhas, cuja existência está ameaçada pelo ácora de verroa e pelos campos electromagnéticos dos telemóveis, que lhes baralham o sentido de orientação no regresso à colmeia.

“Se todas as abelhas do Mundo morressem de repente, a humanidade não teria mais de quatro anos de vida, pois elas são responsáveis pela polinização de produtos agrícolas que representam mais de dois terços da nossa alimentação”, diz, citando Einstein. Declara-se contente pela aprovação do casamento gay (“A nossa sociedade português ficou mais inclusiva ao permitir que todos possam escolher a figura que querem para proteger a sua relação”) mas avisa que a luta continua. “Ainda há muito a fazer até que todos tenhamos direitos e deveres iguais, como, por exemplo, no apoio à reprodução medicamente assistida”, diz Sara, que planeia casar, “mas sem mediatismos”.  

Jorge Fiel

Esta matéria foi hoje publicada no Diário de Notícias

 

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Noobai Café

Miradouro do Adamastor, Santa Catarina, Lisboa

Tosta de queijo gratinado com tomate e oregãos … 5,50

Tortilha de frango com verdes, tomate, ananás, molho de iogurte e rutas glaceadas … 7,00

4 copos de branco …10,00

2 cafés … 2,40

Total… 29,10

 

Curiosidades

 

Como há muito mais gatos do que famílias que os queiram adoptar, a associação Animais de Rua tem em curso uma campanha de esterilização. Os voluntários apanham os animais vadios e enquanto eles estão anestesiados para a operação, é-lhes cortada a ponta da orelha esquerda, sinal convencionado internacionalmente que avisa os funcionários do canil municipal de Lisboa (que funciona na dependência do Departamento de Tratamento de Resíduos Sólidos) de que o gato pode ser deixado em paz porque não se vai reproduzir

 

Sara é vegetariana, mas não fundamentalista. De vez em quando come peixe, como, por exemplo, quando, após alguns dias de internamento no hospital, onde lhe tiraram a vesícula, não descansou enquanto não atacou um linguado grelhado

 

O que Almodovar aprendeu com a mãe

 

Ao formidável talento de cineasta de Almodovar não pode ser estranho o facto de ter aprendido muito novo que a verdade inquestionável é uma coisa que não existe e que aquilo que costuma ser contrabandeado como sendo a genuína verdade não passa de uma interpretação que tem mais a ver com o lugar que ocupamos na cadeia alimentar do que com a descrição precisa do que realmente se passa.

Pedro Almodovar tinha nove anos quando, no início dos anos 60, a sua família se mudou da aldeia da Mancha onde nasceu para uma outra, na Extremadura, onde a maioria dos habitantes eram analfabetos, o que foi identificado como uma oportunidade de negócio pela mãe que logo montou, em sociedade com o filho, um comércio de leitura e escrita de cartas.

Como tinha uma caligrafia muito bonita, ele escrevia as cartas, enquanto a mãe se encarregava da leitura. Cedo Pedro começou a reparar que a mãe romanceava o que estava escrito nas cartas e um dia não se conteve e perguntou-lhe:

- Por que é que lhe disseste que ela sente saudades da avó e se lembra muitas vezes dela a lavar a roupa numa bacia cheia de água à porta de casa, se na carta nem sequer fala da avó?

Ao que a mãe o calou com uma resposta desarmante:

- Mas viste como a avó ficou contente?!!!

“Estes improvisos continham uma grande lição para mim. Estabeleciam a diferença entre ficção e a realidade e a forma como a realidade precisava da ficção para ser mais completa, mais agradável, mais vivida”, escreveu o cineasta no dia seguinte à morte da mãe.

Sábio de outro século, outra arte e outra geografia, Fedor Dostoievski já tinha chegado à mesma conclusão quando nos avisou que “para tornar a realidade mais verosímil, precisamos necessariamente de adicionar a mentira”

Como nestes tempos que põem à prova a alma dos homens ninguém consegue permanecer bom da cabeça num estado de realidade absoluta, temos tido a sorte da vitória do Benfica no campeonato, a visita do papa, a festa do Rock in Rio e os 7-0 aos desgraçados dos coreanos se terem harmoniosamente coligado de uma forma sequencial para amaciar-nos a existência até chegar à altura de irmos para o Algarve de férias.

O chato é se em Setembro não aparece algo a distrair-nos, ou alguém a entusiasmar-nos, de forma competente, com uma ideia arrebatadora e mobilizadora, porque pode viver-se sem dinheiro, sem família, sem amor ou até sem vida (ou seja levando uma vidinha miserável) - mas é impossível ir em frente sem sonhos na cabeça.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias

António Vaz Carneiro

António Vaz Carneiro, 59 anos, é fellow do American College of Physicians, editor português do British Medical Journal e o responsável pelo Centro de Estudos da Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina de Lisboa. Com a camisola às listas amarelas e pretas do XV desta faculdade, ganhou uma Taça de Portugal e foi por duas vezes vice-campeão nacional de râguebi, desporto que ele considera ter sido fundamental na sua formação. “Ajudou-me a focalizar e ensinou-me a não desistir perante as dificuldades”, afirma o professor, que agora, para se manter em forma, joga ténis no CIF e corre à beira do Tejo

 

Dois dias depois do jogo, ainda lhe saía lama dos ouvidos. Aquela meia final da Taça de Portugal em râguebi, entre Medicina e a Cuf, foi mesmo um jogo épico.

Para começar não havia balneários. “Tivemos de nos ir equipar no café”, conta Vaz Carneiro, o número 5 do XV de Medicina, acrescentando que ainda estavam todos com um bocado de sono pois o encontro estava marcado para as nove em ponto da manhã, na Outra Banda.

Depois, não há que esconder, o campo pelado, no Lavradio, não oferecia as melhores condições para a prática da modalidade e, como agravante, o S. Pedro não ajudou – ou seja, as condições atmosféricas não colaboraram.

“A lama era tanta que a meio da segunda parte o árbitro deixou de reconhecer as equipas. Apitava para parar o jogo, dirigia-se para o jogador faltoso e retirava-lhe um bocado da lama da camisola para ver se era verde ou amarela e preta”, recorda António Vaz Carneiro, 2º linha de Medicina.

Como se não bastasse o campo da batalha estar transformado num imenso lamaçal, ainda por cima havia a componente política a toldar os espíritos e elevar a tensão. Naquele pós 25 de Abril, a luta de classes estava condensada ali naquele jogo entre o David - a equipa de operários da Cuf, da 2º Divisão -  e o Golias, personificada no quinze primo-divisionário de Medicina, constituído por futuros doutores que presumivelmente tinham pela frente uma vida airada.

“Cada vez que placávamos um jogador da Cuf, chamavam-nos fascistas”, recorda o professor. Nesta versão da história, Golias ganhou a David (mas por poucos). No final do jogo, operários (e alguns - poucos – engenheiros) da Cuf e os futuros doutores, unidos pela lama que os cobria, acabaram todos juntos no café, a deitar abaixo umas cervejolas e umas fêveras, antecipando o suave clima de aggiornamento que se não demoraria muitos anos a apoderar-se da sociedade portuguesa.

“Só ao fim da tarde, quando cheguei a casa, é que pude tomar banho. E dois dias depois ainda me saia lama dos ouvidos” relembra Vaz Carneiro, 59 anos, sentado na secretária do seu gabinete na Biblioteca da Faculdade de Medicina de Lisboa, onde dirige o Centro de Estudos da Medicina Baseada na Evidência e donde avista o estádio universitário onde treinou e jogou râguebi durante os dez anos da década de 70, até partir para o outro lado do Atlântico onde se demorou seis anos, fazendo a especialidade de Medicina Interna no Mount Sinai, em Nova Iorque, e de Nefrologia na Universidade de Califórnia, em S.Francisco (mais tarde voltaria aos Estados Unidos para preparar, em Washington, o doutoramento em Cuidados Intensivos que defendeu em 1994).

Medicina ganhou na batalha da lama, mas acabou por perder a final da Taça de Portugal com o Belenenses. Dois 2º lugares no Nacional da I Divisão – uma vez atrás do Benfica (“uma equipa mais física”) e outra do CDUL (“tinham um jogo mais táctico, mais fino, e beneficiavam do seu campo de recrutamento não estar limitado aos estudantes de uma só faculdade, como nós, Agronomia, o Técnico ou Direito”) – e uma Taça de Portugal foram os momentos mais vistosos dos dez anos em que jogou, sem nunca ter sofrido uma lesão importante, apenas partiu um dedo duas vezes.

Mas o que de mais importante trouxe do râguebi, não foi a taça, os dois 2º lugares, as recordações, ou até mesmo os amigos (“creio que uns 20% dos meus amigos actuais ainda são desse tempo”), mas o que lhe ficou tatuado no carácter. António era um segunda linha, número 5 nas costas, ou seja integrava o sector da equipa a quem se pede uma enorme solidez, pois repousa nos seus largos ombros a tarefa de aguentar a estrutura. “Estamos numa zona de contacto, de muita percussão, em que é o espírito de sacrifício é fundamental”, explica.

“O râguebi é um jogo de equipa em que não há muita margem para o brilho individual. Se um tipo está a correr isolado é sinal de que a sua equipa está a jogar mal. Para se ganhar é preciso muito espírito de entreajuda e uma equipa sólida, coesa e disciplinada. Um exemplo? Com a excepção do capitão, está toda a gente proibida de falar com o árbitro. Ninguém protesta, porque se o fizer sabe que vai prejudicar a equipa. O râguebi foi fundamental na minha formação porque me ajudou a focalizar e ensinou-me a não desistir perante as dificuldades”, afirma o professor, que nunca perdia a transmissão televisiva de um jogo do Torneio dos Cinco Nações.

Sempre gostou mais do jogo francês (“ninguém agarra os franceses quando estão inspirados”), mas reconhece que os mais completos são, de longe, os All Blacks. “As equipas do Hemisfério Sul aliam um poder físico notável a apuradíssimo sentido técnico. Já do ponto de vista táctico, os ingleses são insuperáveis”, afirma, acrescentando que o seu jogador preferido era o arrière John Davies.

No seu tempo, eram 110% amadores. Não só cada um pagava e tratava do seu equipamento como, ainda por cima, contribuía com 30 escudos por mês para a caixa que financiava as deslocações da equipa. António acabou o curso em 1976, mas mesmo quando estava a fazer a periferia em Portimão, apesar de ainda não haver A2, aos fins de semana metia-se no Honda 600 em segunda mão que o pai lhe oferecera de prenda de licenciatura (que, para teve de transformar, diminuindo drasticamente a oferta de lugares de passageiros, para ele próprio caber lá dentro) e vinha por aí acima, pelas estradas nacionais, para alinhar pela equipa de Medicina, primeiro, e depois do CDUL (onde fez as suas duas épocas).

Só abrandou só nos últimos três anos, entre os 26 e os 29 anos, porque tinha de se preparar para os exigentes exames que lhe dariam acesso a fazer a especialidade e exercer a profissão de médico nos Estados Unidos. “Nesta altura já sabia perfeitamente que não queria ser médico de cuidados primários. Tinha a preocupação de adquirir uma forte formação científica pois queria fazer medicina académica, ser médico hospitalar e dedicar uma boa parte do meu tempo à investigação”.

Filho de um engenheiro de obras públicas, que chegou a ser director geral de Saneamento, viveu até aos dez anos em Vila Real e ainda se demorou três anos por Aveiro, antes da família deitar âncora em Lisboa e ele acabar o liceu no Colégio Moderno. Não se lembra de ter querido outra coisa senão médico, profissão que lhe agradava porque estava convencido lhe iria proporcionar uma grande liberdade de movimentos. Viu bem a coisa.

Alto (1m87), jogou voleibol durante dois anos no secundário. Tomou pela primeira vez contacto com o râguebi em 1969, quando era caloiro de Medicina e um amigo que já jogava o convenceu a ir a um treino. Não foi um caso de amor à primeira vista. Levou umas pancadas e foi para casa a pensar se seria uma boa ideia continuar. Persistiu e com o decorrer dos treinos ficou cliente.

“De então para cá o jogo mudou muito”, garante o professor que continua a acompanhar a modalidade não só pela televisão, mas também ao vivo, pois o Joãozinho (o rapaz do casal de gémeos que teve há 11 anos) joga râguebi no CDUL e ele, na sua qualidade de pai, tem de o levar aos treinos (três vezes por semana) e aos jogos.

“Na altura, eu era alto. Agora seria o tipo mais baixo das equipas de Agronomia ou Direito. Nós éramos ensinados a girar depressa a bola para evitar o contacto. Hoje o jogo é muito mais físico, há menos espaço e por isso muito mais contacto”, diz, enquanto desfia histórias incríveis daqueles heróicos tempos em que havia dez equipas a usarem ao mesmo tempo o Estádio Universitário e em que não raro Medicina tinha de se contentar com uma cabeceira do campo (o único espaço disponível)  - e como não havia iluminação artificial, quando a noite caía o treino acabava e iam todos para casa

Quando atravessou o Atlântico Norte para aprender, viver e trabalhar nos Estados Unidos, passou do oito ao 80 ao trocar o râguebi, um desporto colectivo, pela corrida (uma das mais solitárias de todas as modalidades) e o ténis (um jogo em que não há contacto, pois os adversários estão separados por uma rede). “Quando se trabalha 100 horas por semana, os tempos livres são muito curtos”, explica, acrescentando que a grande vantagem do jogging é de poder correr sozinho e praticamente a qualquer hora e em qualquer lugar. Em Nova Iorque partilhou com dois portugueses um loft na Village e um dos seus grandes prazeres era correr aos sábados de manhã até ao Central Park, através das largas avenidas de Nova Iorque que, no início do fim de semana, até às dez horas, estão sempre muito tranquilas.

Agora continua a correr e a jogar ténis, de acordo com um programa meticulosamente estabelecido. Ao fim de semana, corre junto ao Tejo, às 3ª e 5ª aproveita a hora do almoço para bater umas bolas com os amigos no CIF, e às 4ª vai ao ginásio. A sua presença assídua nas duas corridas anuais de travessias das pontes de Lisboa está documentada pelos dorsais que decoram as vidraças das estantes do seu gabinete, convivendo alegremente com os milhares de livros e as centenas de CDs de música clássica.

Editor português do BMJ (onde publicou recentemente um artigo, com chamada de capa, que é um marco no tratamento dos diabéticos) e um dos raros não residentes nos Estados Unidos é fellow do ACP-American College of Physicians, António Vaz Carneiro faz questão de salientar o código de honra do râguebi: “Apesar de haver muito contacto, a generalidade dos jogadores respeitam as regras. Quando se anda dentro do campo, sabe-se logo quando há alguém que nos quer agredir. E nesse caso combinávamos as coisas de modo a que, da próxima vez que tivesse a bola, o jogador que estava a ter um comportamento desleal levasse com três de nós em cima. Ele percebia logo a mensagem. Era tudo tratado dentro do campo e entre nós. Não íamos fazer queixa ao árbitro”. É talvez devido a este código de honra que se diz que o futebol é um jogo de cavalheiros disputado por cavalheiros – e o râguebi é um desporto de arruaceiros praticado por cavalheiros…

Jorge Fiel

Esta matéria foi hoje publicada em O Jogo

 

Rui Loureiro

A administração da Jerónimo Martins (JM) está preocupada com as condições de vida dos seus 20 mil trabalhadores, que nos Pingo Doce cumprem duros horários de trabalho em contacto com o público. Vai daí, pediu ajuda à Sair da Casca para responder à pergunta: O que temos de fazer para que eles tenham uma vida melhor?

Este é um dos dossiês que está em cima da mesa de trabalho de Rui Loureiro, 49 anos, director geral da Sair da Casca, uma consultora especializada em ambiente e sustentabilidade, duas palavras que correspondem ao nó do maior problema que a humanidade enfrenta e que entraram na moda e no topo das preocupações dos gestores.

Os resultados das entrevistas a todos os trabalhadores da JM estão a ser trabalhados pelos 22 técnicos da Sair da Casca, gente com formação diversa (Psicologia, Engenharia, Gestão e Comunicação). “Há uma fragmentação de problemas, desde questões sociais, como mães solteiras que não têm onde deixar os filhos, até muita gente que tem dificuldade a chegar ao fim do mês”, afirma Rui, admitindo que a resposta poderá passar pelo facilitar do acesso a creches e bens alimentares.

“Queremos desenvolvimento, mas não a qualquer preço. As pessoas começaram a interrogar-se sobre o tipo de desenvolvimento que estavam a ter e a concluir que é tempo de parar para pensar. A Terra tem de ter futuro. Não podemos continuar a delapidar hoje os recursos que vão ser precisos amanhã”, acrescenta, elogiando a decisão da JM de deixar de dar sacos de plástico, que poupou recursos da empresa e do planeta: “As empresas já estão a perceber que é negócio ter um comportamento responsável”.

Rui escolheu almoçarmos no Aromas e Sabores, em Campo de Ourique, o bairro onde ele nasceu e o avô era dono de uma fábrica de limas. Tinha apenas três anos quando atravessou o Atlântico, acompanhando o pai que emigrou para o México para montar uma fábrica e por lá ficou. Cresceu, fez-se homem e licenciou-se em Engenharia Química entre tacos, burritos, nachos e fajitas –  pratos que não constavam da lista do acolhedor restaurante que fica no 1º andar de uma loja “gourmet”.

Encomendou um risotto de queijo, acompanhado por um copo de tinto de uma garrafa vedada por uma rolha de cortiça – que depois de reciclada é transformada em pavimentos e revestimentos, sendo que as receitas da recolha de rolhas usadas são investidas na reflorestação do país com espécies autóctones. “O sobreiro quando cresce vai stockando CO2”, acrescenta o director geral da Sair da Casca, que deve o seu português fluente aos pais, que o obrigavam a fazer ditados e cópias na nossa língua, pelo menos duas vezes por semana.

No final do curso, veio para Portugal. Tinha com 26 anos e estávamos no ano da adesão da CEE. O primeiro emprego foi na GM de Ponte do Sor, onde tinha de andar meia hora para jogar matrequilhos, a única diversão disponível para além da mesa de pingue-pongue no quartel dos bombeiros, um choque para quem vinha de uma cidade com mais habitantes que todo o nosso país. Da indústria automóvel mudou-se para a consultora Coopers, que viria a integrar a PriceWaterhouse. Quando Al Gore e o aquecimento global puseram as questões ambientais na agenda, ele devotou-se a esta causa. “A sustentabilidade não era o core business da PwC”, diz, explicando porque é que há três anos trocou a multinacional pela Sair da Casca.

Rui anda satisfeito. Entre outras coisas, está a ajudar a desenhar a estratégia de sustentabilidade da McDonald’s, que contempla uma redução drástica das embalagens. Na Caixa, estimulou o aparecimento de um núcleo de 20 pessoas, gente com ideias, que já pôs em prática pequenos passos (como separar o papel para reciclagem e imprimir dos dois lados) e outros de maior alcance, como os micro-seguros, uma variante do micro-crédito que tão bons resultados tem dado – “A taxa de incumprimento é muito menor, o que prova que os pobres são mais honestos do que os ricos”.

“O que é preciso é criar conhecimento nesta área. É recompensador ver a Galp a estimular o carsharing e a EDP a deixar de ser uma vendedora de electricidade para se assumir como gestora de energia”, conclui.

Jorge Fiel

Esta matéria foi hoje publicada no Diário de Notícias

 

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Aromas e Sabores

Rua Tomás da Anunciação 44, Campo de Ourique, Lisboa

2 couvert … 5.00

3 copos tinto … 7,50

2 águas minerais … 3,00

1 risotto de queijo  … 9,50

½ tábua de peixes fumados … 10,00

2 doces do dia … 9,00

2 cafés…1,50

Total… 45,50 euros

 

 

Curiosidades

 

O seu primeiro carro foi um “carocha” verde escuro. Após 58 anos de produção, o último VW Carocha saiu da linha de montagem da fábrica da Volkswagen em Puebla (México) a 30 de Julho de 2003

 

Rui Loureiro defende que é preciso reinventar os nossos hábitos e comportamentos, para evitar desperdícios sem sentido como as esferográficas e porta chaves de brinde que são oferecidos em tudo quanto é reunião ou congresso

 

“Temos de consumir menos. O cabaz básico de necessidades do comum das pessoas evoluiu de uma forma brutal. Hoje a qualidade de vida incluiu a televisão por cabo”, diz o director geral da Sair da Casca

 

Munch, Cavaco, Warhol e Berardo

Lousiana não é apenas o nome do estado norte-americano fustigado pelo Katrina, mas também de um magnífico museu, 35 km a norte de Copenhaga, de que usufruí no domingo já que, em claro e público desrespeito pelo conselho presidencial, tenho um curso um périplo pela Escandinávia, que se conclui em Estocolmo no dia a seguir ao casamento da princesa Vitória com o plebeu Daniel Westling, o seu antigo personal trainer.

Os museus são as novas catedrais e a tendência, de que Serralves e o Lousiana são dois exemplos luminosos, é para serem vividos -  não apenas vistos -  e apresentarem arte que nos desafia, o que é uma bênção nestes tempos em que o bombardeamento de informação a que somos submetidos pelos media electrónicos (Google, YouTube, Facebook, Twitter, etc) não só excede a capacidade do nosso cérebro como é susceptível de nos desorientar, tornando-nos coleccionadores de factos inúteis num momento em que o essencial não é acumular conhecimentos mas sim ser capaz de os seleccionar e interpretar.

De manhã, passei um divertido e intenso par de horas na exposição Warhol after Munch que o museu dinamarquês escolheu como prato de resistência para este Verão e onde são postas em confronto litografias de algumas mais significativas obras do angustiado mestre norueguês -  Auto-retrato (com osso do braço), O Grito, Madonna (bastante licenciosa, por sinal)  e Eva Mudocci – e as interpretações destes trabalhos feitas em serigrafia pelo artista norte-americano.

Dando razão ao autor do texto do catálogo (afirma que a exposição atenua as ideias feitas de Warhol ser o mestre do superficialidade e Munch um periscópio mergulhado nas profundezas da alma), almocei uma sanduíche de salmão na esplanada do café, em cima da praia com uma deslumbrante vista para o mar, e, antes de ir dar uma volta pelos dois andares da loja/livraria, ainda fiz preguiça no bem tratado relvado do jardim, que partilhei com estátuas de Henry Moore e famílias que faziam piqueniques completíssimos com os géneros trazidos de casa.

As 95 coroas dinamarquesas (pouco menos de oito euros) que investi no acesso a este domingo bem passado no Louisiana não me deixaram com problemas na consciência, pois apesar da situação financeira do nosso país inspirar cuidados, ao ponto do angustiado Cavaco nos pedir para fazermos férias no estrangeiro, a verdade é que ainda há folga para dar umas borlas (que penso serem escusadas) aos estrangeiros que nos visitam, mantendo a Via do Infante e o museu Berardo como Scuts. Enquanto isso acontecer, não contem comigo para me abster de fazer férias lá fora. Em Agosto, estou a planear viajar até aos States.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias  

 

José Bento dos Santos

 

José Bento dos Santos, 63 anos, fez fortuna como broker internacional de metais e poliu o nome a produzir, na Quinta do Monte d’Oiro, vinhos mimados com rasgados elogios da crítica. Mas a chave da sua vida é o râguebi, a modalidade onde caldeou o carácter, foi seleccionador nacional, com pouco mais de 20 anos, e campeão pelo Técnico, quer como jogador que como treinador.  “O râguebi é o desporto da minha vida. A luta no mais puro sentido do fair play. Parece que se está a jogar xadrez, só que com contacto físico”, explica este engenheiro que agora joga golfe (handicap 11), dorme pouco mas vive intensamente, e atravessou a vida a fazer aquilo que mais gosta e sabe fazer: construir equipas, seja no mundo do desporto, seja no das empresas

 

Apesar da altura (1m68) não o habilitar a ter uma palavra a dizer na luta pelas tabelas, o basquetebol foi a primeira modalidade em que brilhou, como base titular e capitão no cinco júnior do CDUL -  ao ponto de ter sido justificado uma chamada à Selecção Nacional, quando andava no Liceu Camões. Encestar era um negócio de família, pois o pai, comerciante dono de várias lojas de pronto a vestir em Lisboa, jogara no CIF, clube de que era o sócio nº2 quando partiu deste mundo.

O apoio familiar à sua carreira no basquete era tão entusiástico que o pai até subiu o tecto da garagem da casa da família em Alenquer para aí instalar uma tabela à altura regulamentar, de modo a que, nas férias, o mais velho dos seus três filhos (os outros são Luís, administrador do Santander Totta, e Maria do Céu) não perdesse a mão para os lançamentos.

Quis um daqueles acasos em que a vida fértil que, aos 15 anos, o amor de José Manuel Bento dos Santos pelo basquete desse lugar a uma tórrida e duradoura paixão pelo râguebi, que o fulminou no ano de caloiro de Engenharia Química no IST (Instituto Superior Técnico), um curso que não teve a menor das dúvidas em escolher. Como sempre se sentiu atraído pela Química, ainda antes de lhe ter borbulhas já improvisara em casa um laboratório, onde realizava experiências misturando elementos (oriundos do laboratório do liceu, que lhe chegavam à mão por cortesia de um contínuo amigo) em tubos de ensaio cravados em farmácias. “Ainda arranjei umas chatices. Um dia o carro do meu pai apareceu manchado e ele convenceu-se que tinha sido eu o culpado…”, recorda.

Como esta queda precoce pela Química foi confirmada pelos resultados dos testes psicotécnicos feitos no Instituto de Orientação Profissional, com apenas 15 anos (foi para a primária com cinco) lá estava ele a subir a escadaria do Técnico. Pouco tempo depois, entretinha-se no campo do instituto, a jogar uma futebolada com os amigos (quase todos eles vindos do Liceu Camões), enquanto, mesmo ali ao lado, António Carqueijeiro operava o milagre da ressurreição da equipa de râguebi do Técnico. E deu-se a reacção química: “Mexemos na bola, brincamos com ela  -  e aquela bola tem magnetismo”, resume.

No balneário, Carqueijeiro, antigo internacional de râguebi e ex-treinador de Direito, deixou a sua primeira impressão digital na vida de José Bento dos Santos. Carente de jogadores para reconstruir a equipa e careca de saber que os rapazes da futebolada estavam a ouvi-lo, virou-se para o seu pessoal e disse: “Vocês viram aqueles miúdos? Quando pegaram na nossa bola viu-se logo que têm jeito para o râguebi”.

Seduzidos pela bola em forma de melão, conquistados pela hábil lisonja, inscreveram-se todos (Raul Martins era um deles) no râguebi e logo na primeira época (época 63/64) triunfaram no 1º Nacional júnior, metendo no bolso os Belenenses, Sporting e Benfica e contrariando o favoritismo do CDUL. No ano seguinte, já seniores, foram campeões da 2ª Divisão e subiram à primeira.

Bento dos Santos debutou como talonador, mas nas duas épocas em que jogou como sénior jogou a médio de abertura. “Não tinha a velocidade que a posição exigia, mas compensava isso com uma grande facilidade de chuto”, auto avalia-se. A sua notável capacidade de liderança cedo o empurrou para a carreira de treinador. E na época 67/68, na ausência de Carqueijeiro, de quem era adjunto na selecção, vemo-lo com apenas 21 anos a orientar, na Tapadinha, o quinze de Portugal que galhardamente averbou uma digna derrota por 39-16 num jogo contra a poderosa França.

Treinar e dirigir, no desporto ou nas empresas, sempre foi a especialidade de Bento dos Santos. Mas antes de ser sentar no banco, o râguebi ainda lhe proporcionou o despertar de uma outra paixão – o vinho - que o acompanharia para o resto da vida e é actualmente a menina dos seus olhos. “Tive a sorte de, na minha primeira época como sénior, o Técnico ter ido a França jogar com o Bordeaux Etudiants Club. Aproveitei para visitar caves e beber alguns dos grandes vinhos da região”, conta. A vida dele nunca mais foi a mesma depois de se emocionar com um Château Lafite Rothschild ou ou Châteauneuf-du-Pape.

Como treinador, foi campeão nacional pelo Técnico (77-78) e seleccionador nacional. Como apaixonado, só uma vez não presenciou ao vivo a fase final de um Mundial. “O râguebi é o desporto da minha vida. A luta no mais puro sentido do fair play. Parece que se está a jogar xadrez, só que com contacto físico”, explica, citando de seguida Françoise Sagan: “Não é por ser violento que adoro o râguebi. É por ser um jogo inteligente”.

O râguebi é duro. Mas a vida também é dura. E como a influência da França na formação de Bento dos Santos está longe de se circunscrever aos vinhos e à cozinha, ele cita de cor o académico gaulês Jacques Laurent como argumento a favor da sua tese de que o râguebi espelha da vida: “Uma equipa de râguebi é composta por oito jogadores fortes e activos, dois ligeiros e espertos, quatro grandes e rápidos, e um último, modelo de fleuma e sangue frio, que é a proporção ideal entre os homens”.

Ainda estava a terminar o Técnico, quando o seu amigo Carqueijeiro, advogado no grupo Cuf, voltou a ter um papel decisivo na sua vida, ao subscrever a opinião do então presidente da Federação Portuguesa de Rugby, António Celeste, de recomendar aos Mello que o contratassem, argumentando que ele era “o Beckenbauer da engenharia química”.

Começou a trabalhar na metalurgia do cobre, no Barreiro, no final dos anos 60,  e não descansou enquanto não criou uma equipa de râguebi da Cuf, onde jogavam lado a lado, misturados, operários e engenheiros (como João Dotti). E, ao invés do que era normal, escalou rapidamente na hierarquia do que era na altura o mais poderoso grupo industrial português.

Um dia, tinha ele apenas 24 anos, houve um problema na fábrica. O director, José Frederico da Cunha, antigo jogador de râguebi, chamou-o e pôs-lhe em cima dos ombros a responsabilidade sobre 400 operários, quantificou-lhe objectivos em toneladas de produção de cobre e zinco. O argumento dado para a inesperada promoção foi demolidor: “Se, com essa idade, és capaz de treinar uma equipa de râguebi e ser seleccionador nacional, também és capaz de dirigir uma fábrica”. O tempo deu razão a Frederico da Cunha.

Quando, já após a turbulência do 25 de Abril e a nacionalização do grupo Cuf, passou da ferrugem para parte comercial, ele e Eduardo Catroga (à época administrador da CUF, no entretanto rebaptizada Quimigal)  resolveram criar a Quimibro, uma broker de metais, de que, no entretanto, veio a assumir o controlo e ainda mantém em actividade.

Correu o mundo. Comprava ouro, transformava cobre, transportava chumbo, vendia chumbo e zinco,. Tanto podia estar numa mina na Austrália como numa fábrica no Canadá  - ou a negociar à mesa no Tour d’ Argent em Paris. Curiosamente, a vida agitada de broker internacional de metais engraxou-lhe o sentido do gosto e o prazer pelo vinho e a comida. “A vida comercial presta-se muito a convidarmos e sermos convidados para os melhores restaurantes”, explica. Como sempre gostou de cozinhar, aproveitava todas as oportunidades para ficar até às tantas a conversar e aprender com os chefs.

Foi no negócio de metais que ouviu, da boca de um colega e amigo norte-americano, a frase que o levou a ser produtor de vinhos -  “a única commodity realmente escassez é a terra, pois só há a que existe e não cresce”. Um vizinho da casa dos pais em Alenquer tinha uma quinta que era uma jóia (“um bijou”, diz) mas estava alugada, pois o dono caíra doente. Mal o engenheiro soube que ele não estava satisfeito com o rendeiro, logo foi ter com ele fez-lhe uma proposta de compra e prometeu estimar a quinta. Foi assim que Bento dos Santos ficou proprietário dos 42 hectares da Quinta de Monte d’Oiro.

Estávamos no final dos anos 80 e ele queria fazer um vinho que não fosse apenas mais um vinho. Queria levar até ao limite toda a qualidade que o terroir lhe podia dar. Estudou os solos, experimentou as castas, nacionais e estrangeiras, até que em 1992 fez a primeira plantação. Mas só cinco anos depois, em 1997, fez o seu primeiro vinho.

A exigência compensou. Os elogios, criticas e prémios começaram a chover. Dois anos depois, o seu vinho foi eleito o melhor da Peninsula Ibérica. E não demorou até surgir uma distinção que teve tanto de grata como surpreendente. O Vinha da Nora 1999, da Quinta Monte d’Oiro, fez parte da ementa de apresentação à imprensa mundial do restaurante de Alain Ducasse em Nova Iorque.

“Não faço vinho para matar a sede, para as pessoas gostarem ou não gostarem - mas sim para viverem uma emoção, como experimentamos ao ouvir uma interpretação virtuosa das Variações Goldberg”, explica Bento dos Santos, que além de produzir vinhos excelentes, cozinhar comida requintada e ser um evangelizador do prazer e bom gosto, continua a negociar com metais (cobre, no seu essencial), a gostar de râguebi e a jogar golfe.

Ainda está apaixonado pelo râguebi, apesar de reconhecer que o profissionalismo mudou o jogo – e não necessariamente para melhor. “O campo é do mesmo tamanho, mas os jogadores correm o dobro. O espaço reduziu-se e por isso há mais choque. O mundo mudou. Hoje não seria possível ao Gareth Edwards fazer aquele que é considerado ensaio do século”, lamenta Bento dos Santos, que tem uma fabulosa colecção de livros e arte relacionada com o râguebi, onde avulta o modelo em resina de bronze de uma estátua daquele jogador galês.

O golfe é outra das prendar que o râguebi lhe deu, pois foi-lhe apresentado quando tinha 20 e tal anos e estava em Inglaterra a tirar um curso de treinador – quando acabavam as aulas, o pessoal ia todo dar umas tacadas. Ele ficou fã, e nunca mais deixou de jogar, se bem que variando que com a intensidade e frequência a vogar ao sabor do tempo que a sua vdia cheia lhe deixa livre.

“Durmo pouco mas vivo permanentemente entusiasmado”, declara José Bento do Santos, um golfista com 11 de handicap (já foi 9) e que tem como parceiros frequentes, no campo do Estoril, logo pelas 7h30, vários amigos, como o banqueiro Carlos Rodrigues (Big), o ex-ministro Manuel Pinho e o Rodrigo Costa, ex-vice da Microsoft e CEO da Zon.

Jorge Fiel

Esta matéria foi hoje publicada em O Jogo

Um país parecido com o Sporting

As contas do último exercício do Sporting deixaram-me muito preocupado com o futuro do país, porque o PEC confeccionado por Sócrates para trazer o défice orçamental de volta para baixo dos 3%  copia o modelo do plano traçado pela direcção leonina para pôr em ordem as finanças do clube.

Para endireitar as contas do Sporting, a direcção sacrificou o investimento, atirando o clube para um grave recessão, com as receitas e os resultados desportivos em queda livre. Os resultados do PEC leonino são tão devastadores como as visões do Inferno de Hieronimus Bosch.

No curto espaço de um ano, o prejuízo subiu de 8,6 milhões para 14,8 milhões de euros, o passivo assumido do grupo Sporting já vai nos 310 milhões e as receitas despenharam-se para 22,7 milhões, reduzindo-se em dez milhões. E é mais provável o Clark Kent e Super Homem aparecerem juntos do que as coisas melhorarem. Na próxima época não há Champions e não se perspectiva nenhum jackpot no capítulo das transferências. Mesmo bem vendidos, Moutinho, Veloso e Izmailov renderão menos do que o Benfica vai encaixar com a venda do Di Maria. É a catástrofe iminente sem meios para a esconjurar.

Ao olhar para o Sporting confirmamos que Joseph Stiglitz, Nobel da Economia, estava carregado de razão quando nos avisou que Portugal precisa de investir, pondo todas as fichas no crescimento e não na austeridade, lembrando que desde a Grande Depressão se sabe que o caminho que está a ser seguido é desastroso.

Ao ver o director financeiro do Sporting, José Filipe Nobre Guedes de chapéu na mão, a mendigar ao BCP e BES que aceitem renegociar 55 milhões da dívida (transformando-os em obrigações convertíveis) para retirar o clube da falência técnica, Teixeira dos Santos está a ter um flashforward da figurinha que vai fazer dentro de poucos meses para conseguir refinanciar a divida portuguesa e evitar que a República entre em incumprimento.

Agora é tarde, Inês é morta, mas tenho muita pena que antes de cozinharem um PEC igual ao do Sporting, o benfiquista Sócrates não se tivesse aconselhado com Luís Filipe Vieira (que arriscou elevar o passivo em 38 milhões, mas ganhou o campeonato, valorizou extraordinariamente os seus activos e comprou a entrada na Liga dos Campeões) e que o portista Teixeira dos Santos não tivesse consultado Pinto da Costa, para aprender como é que ele conseguiu fechar o exercício de 2009 com 10,7 milhões de lucro e ganhar três em cada quatro campeonatos nunca deixando de investir – e mesmo assim tem o passivo mais baixo dos três grandes. Tenho muita pena que Portugal esteja cada vez mais parecido com o Sporting.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias

 

Marinho Pinto

 

Nascido num família de camponeses, António Marinho Pinto aprendeu a ler e a escrever em português do Brasil, sonhou ser piloto de aviões, mas a mão de Deus desviou para Direito. Desembarcou em Coimbra em 1970, ainda estavam acesas as cinzas da Crise Académica, e não demorou muito até ser preso, e passar pela sede da Pide a caminho de Caxias onde esteve 34 dias no isolamento. Foi professor de Literatura e Filosofia, antes de ser advogado e jornalista do Expresso

 

Os filmes sobre a II Guerra Mundial que viu no Rio de Janeiro, ainda miúdo de calções, inspiraram-lhe um enorme fascínio pelos pilotos de caça e por isso, como nove em cada dez rapazes da sua geração, sonhou ser piloto de aviões. Já do lado de cá do Atlântico, foi a mão de Deus a empurrá-lo para o Direito.

Nascido a meio do século XX (10 Setembro de 1950) numa família de camponeses, em Vila Chã do Marão, Marinho cresceu na obediência aos mandamentos da Santa Madre Igreja. Foi baptizado, fez a catequese, o crisma, as duas comunhões, nunca faltava à missa de domingo, confessava-se e comungava. Desta educação ficou para todo o sempre com os valores da cultura judaico-cristã - a ideia do justo, a culpa, a expiação e o Juízo Final - tatuados no carácter.

Apesar de ter sido a religião a decidi-lo tornar-se um agente da justiça entre os homens, em 1970, quando se matriculou na Faculdade de Direito de Coimbra, já deixara de acreditar. “Aos 18 anos fiz perguntas para quais não encontrei resposta”, explica.

Os traços de carácter deste homem são fruto da sua circunstância de filho de camponeses, que viviam de uma agricultura essencialmente de subsistência. Os escudos amassados com a venda dos excedentes de vinho, milho, batatas e couves, eram aplicados na compra de açúcar, café, sardinhas e chicharros.

Era gente que trabalhava muito, mas não tinha patrões. O único patrão era o sol. Levantavam-se e deitavam-se com ele. O pai emancipou-se da terra, mas manteve a rebeldia de não querer estar às ordens de ninguém. Aprendeu o ofício de alfaiate e em 1951, era ele bebé de seis meses, meteu-se com a família num paquete e 18 dias depois desembarcavam na maravilhosa Baía de Guanabara.

Como a mãe não se deu com o calor e o bulício do Rio, regressou com o filho e a filha, em 1962, ainda a tempo dele ver pela primeira vez, na televisão a preto e branco, o seu Benfica a destroçar (5-3) o Real Madrid de Puskas e Di Stefano, na final da Taça dos Clubes Campeões Europeus. Do Brasil, trouxe a alcunha (o “brasileiro” que o acompanhou durante os estudos secundários, feitos entre Amarante e Vila Real), e um espírito empreendedor – já tinha ganho os primeiros cruzeiros, logo aplicados na compra de rebuçados e gelados, vendendo nas ruas, por altura do Carnaval, fogo de artifício e bichinhas de rabear.

Quando chegou a Coimbra, em 1970, ainda estavam bem acesas as cinzas da Crise Académica de 69, e ele já estava contaminado pelo germe da contestação ao regime. A sua consciência política amadurecera em longas conversas nocturnas, durante as férias grandes, em Vila Real, com transmontanos como João Botelho e Seixas da Costa, que já estudavam no Porto ou em Lisboa. Em 1969, já tinha sido um activista da campanha eleitoral da CDE, localmente lideradas por Montalvão Machado e Otílio Figueiredo.

Coimbra em 1970, era o paraíso para um espírito rebelde como o de António Marinho. No rescaldo da Crise Académica, o centro de gravidade da contestação deslocara-se das reivindicações académicas e pedagógicas para a luta política contra a guerra colonial e pela democracia. Logo em Novembro, na primeira assembleia a que foi, debateu-se a “Critica do Programa de Gotha”, de Marx, e  “O Renegado Kautsky”, de Lenine.

Instalado na República de Rapó-Táxo, não demorou muito até que o inevitável acontecesse. A 12 de Fevereiro, ele e o seu amigo Rodrigo Santiago são dois dos cinco estudantes presos numa manifestação que ocupou a sede da AAC (que tinha sido encerrada pelo regime), em solidariedade com dois camaradas angolanos detidos. Foi transferido para a sede da Pide em Lisboa, antes de dar com as costas em Caxias, onde permaneceu 34 dias no isolamento.

Três meses depois foi solto, mediante o pagamento de uma caução de dez contos, mas o incidente turvou durante 16 longos anos a sua relação com o pai, que, para continuar a enviar o cheque, pôs como condição que ele abandonasse a política. “Não abdiquei dos meus princípios e ideias”, afirma, acrescentando nunca ter chumbado a uma cadeira. Esta ferida aberta em 1971 só cicatrizou em 1987 quando ele foi ao Brasil fazer as pazes com o pai, que no entretanto morreu em 2003.

Para se aguentar em Coimbra sem financiamento paterno, Marinho foi tradutor, dactilógrafo, trabalhou na cantina (vendendo senhas ou empratando) e debutou como jornalista no Diário de Coimbra. Até que em 1974, o chamamento da Revolução o levou a interromper o curso, casou, teve a primeira das suas duas filhas (que vive em Londres e é realizadora, enquanto a mais nova, que tem 28 anos, é advogada como ele) e andou a dar aulas de Literatura e Filosofia e entre Aveiro, Feira e Abrantes.

Em 1978, estabilizou como jornalista em Coimbra, abrindo, com o seu amigo Fausto Correia, a delegação da Agência Anop, e reatou Direito, que concluiu em 82. O seu patrono foi o velho camarada Rodrigo Santiago. “Ao fim de seis meses com ele estava melhor preparado que agora com três anos de estágio”, desabafa.

Com apenas um ano de parêntesis, em que esteve em Macau como assessor jurídico de Galhardo Simões (“Não gostei de Macau. No Brasil tinha orgulho em ser português. Em Macau tinha vergonha”) passou os 17 anos seguintes como advogado e jornalista – a partir de 1988 como correspondente do Expresso em Coimbra, a convite de Joaquim Vieira.

“Na minha formação de advogado foi muito importante ter sido jornalista, pois deu-me outra maleabilidade para encarar a rigidez formal da justiça. Sempre tive um noção rigorosa até onde podia ir. Como jornalista, nunca fui meigo a falar ou a escrever mas nunca tive nenhum processo ou desmentido sério. Nunca fiquei prisioneiro dos muros da corporação jurídica e aprendi a dar alguns passos atrás para olhar para as coisas com a objectividade de um jornalista”, concluiu António Marinho e Pinto, que só entregou a carteira de jornalista quando em 2007 foi eleito bastonário.

 

Jorge Fiel

Esta matéria foi publicada na edição de Maio da Advocatus

 

 

Quanto está chateado lê um poema de Pessoa

Quando está chateado, abre numa página à sorte um grosso volume de Fernando Pessoa, lê um ou dois poemas e é remédio santo – fica logo mais bem disposto. Marinho adora poesia: “É alma dos homens”. Refere Rimbaud, Baudelaire, Régio, Camões e Bocage mas acima de todos eles está Pessoa. A seguir vem Jorge Sena e depois Torga, “mas o Torga rebelde dos anos 50, antes de se institucionalizar”. Filho de um alfaiate, tem no armário apenas quatro fatos e três blazers, todos comprados no pronto a vestir. “É raro gastar mais de 300 euros com um fato”.  Coimbrão adoptivo, vive durante a semana num hotel em Lisboa. Não comprou apartamento porque – explica – “não quero criar raízes por aqui”. Para além de poesia gosta de música (“Sou fã dos Doors e da melhor música que foi feita nos últimos 500 anos”) e de comer e beber bem com os amigos. “Tenho muito amigos, mas também muitos inimigos. É tão importante ter amigos como inimigos”.

Manuel Teixeira

 

Manuel Teixeira, 41 anos, é o presidente executivo da ANJE, a associação com sede no Porto que reúne cerca de cinco mil jovens empresários espalhados pelo país e que, entre outras coisas, organiza o Portugal Fashion. Licenciado em Gestão de Empresas pela Universidade do Minho, foi com as mãos no volante, em ralis e provas de velocidade, que aprendeu a gerir sob pressão. “Estar em stress é, para mim, o estado ideal para trabalhar. Foco-me mais e sinto que sou mais criativo. Sou viciado em adrenalina. Dá-me gozo viver sob pressão, mas não sem pára-quedas. Não é o abismo. Gosto de ter os meus trunfos”, explica o homem que conquistou o Troféu Starlet, em 1995, apesar de a meio do campeonato ter sofrido um grave acidente que por pouco não lhe custou a vida

 

Nasceu e cresceu em Famalicão e fez o curso de Gestão de Empresas na Universidade do Minho, mas não gosta do circuito de Braga. “É muito lento. Tem uma curva perigosa que faz a diferença”, analisa Manuel Teixeira, 41 anos, presidente da Comissão Executiva da ANJE, uma associação com sede no Porto e que reúne cerca de cinco mil jovens empresários espalhados por todo o país. Francisco Maria Balsemão é o outro presidente (o da direcção nacional) desta organização, de que o Portugal Fashion é provavelmente a mais vistosa das suas iniciativas.

A curva perigosa, no final da recta da meta e à entrada dos S, do circuito de Braga não tem segredos para ele: “Chega-se lá a 190 km/hora, dá-se um toque no travão, respira-se fundo e só se trava depois da primeira curva”.

Na segunda época em que disputou o Troféu Starlet, na categoria de Iniciados, o campeonato ia a meio e Manuel Teixeira ia na frente quando chegou a vez do circuito de Braga. No final da segunda volta, estava na liderança da corrida quando chegou à dita curva perigosa. Deu um toque no travão, respirou fundo e quando ia a travar o seu Toyota Starlet branco levantou voo, após ter sido tocado por José Ramos, neto de Salvador Caetano e o seu mais director perseguidor na luta pela vitória na corrida e no troféu.

“O carro ia todo desequilibrado, a andar em cima de três rodas. Com o toque levantou voo, deu três ou quatro voltas antes de estabilizar virado ao contrário, com as rodas para cima. Durante uns segundos fiquei ali parado, no meio do S, de cabeça para baixo, a ver os outros 20 e tal carros a passarem. Felizmente nenhum me tocou. Foi um susto! Foi tudo muito rápido mas lembrei-me que quatro anos antes, em Vila do Conde, num acidente parecido, um piloto morreu porque um dos concorrentes que vinha atrás não conseguiu evitá-lo e chocou contra ele”, recorda.

Ficou cheio de dores e, pior ainda, sem carro, o que era grave pois no entretanto tinha sido descontinuada a produção dos Starlet. Mas nem sequer lhe passou pela cabeça deixar de competir. Não descansou enquanto não desencantou um carro e o preparou a tempo de estar na grelha de partida na prova seguinte. Limpou o troféu apesar de ser um carro diferente (“não há dois carros iguais”) e de não o conhecer bem. Em dez corridas, fez cinco primeiros lugares e quatro pódios – só não pontuou na corrida de Braga em que o seu carro foi transformado em sucata na curva perigosa.

“Depois do acidente voltei à competição com uma vontade redobrada de vencer. Ainda com mais frieza, profissionalismo e rigor”, explica Manuel Teixeira, que logrou sagrar-se campeão ainda antes da última corrida, no que foi o maior feito da sua carreira de cinco anos como piloto de automóveis.

Depois, chegou a ter em cima da mesa a hipótese de correr no campeonato espanhol de Turismo. Mas a dimensão do orçamento necessário (rondava os 50 mil contos) obrigou-o a recuar e a apostar no Troféu Carina E, onde se demorou duas épocas, mas não foi feliz. Ao contrário do Starlet, que era extremamente fiável, o Carina era um carro que dava muitos problemas mecânicos. “Foi muito frustrante. Gastei rios de dinheiro e nunca acertamos com a preparação. Ganhei alguns pódios e alcancei bons resultados, mas com pouca regularidade”, confessa o presidente executivo da ANJE, que atirou a toalha ao chão depois de ter ficado num decepcionante 4º lugar na sua segunda presença no Grande Prémio de Macau: “A meio da corrida fiquei sem ABS nos travões, quando tinha todas as hipótese de ganhar. No final, ao falhar o pódio, conclui que assim não dava e desisti”.

Dos cinco anos nas corridas, Manuel Teixeira trouxe o hábito de conduzir depressa (elogia, por exemplo, o comportamento do seu Mercedes R 320 CDI familiar por “estabilizar bem a 240 km/h”) e de viver sob pressão: “Estar em stress é, para mim, o estado ideal para trabalhar. Foco-me mais, e sinto que sou mais criativo. Sou viciado em adrenalina. Dá-me gozo viver sob pressão, mas não sem pára-quedas. Não é o abismo. Gosto de ter os meus trunfos”.

Nasceu em Louro, Famalicão já com a mania das velocidades e bicho do empreendedorismo inscritos no ADN. Manuel Francisco Teixeira, o avô paterno, era o dono da Sedil. O pai, Lígio Teixeira, casado com Arminda Sousa Lopes, herdeira dos armazéns C. Lopes de Famalicão, ainda continua a ter uma palavra a dizer no comando dos negócios da família (cujos tentáculos se estenderam desde supermercados e cash and carry até às bombas de gasolina, passando pelo representação da Mobil), que está entregue a Marta 38 anos, a irmã mais nova de Manuel, que lhe dá uma mão sempre que a gestão da ANJE e da sua consultora na área têxtil lhe deixam tempo livre – ele vive em stress permanente mas até gosta disso!

Mal tinha começado a andar e já se deliciava com os primeiros passeios de carro, a bordo do Ford Taunus familiar do avô, e se entusiasmava com frenesim da preparação dos ralis pirata em que o pai participava, ao volante de um Ford Cortina Lotus ou de um Datsun 1200, e organizava com os amigos e a cumplicidade das autoridades locais, que não se limitavam a fechar os olhos a essas competições não autorizadas, quase sempre realizadas em troços de terra batida – também davam uma ajuda fechando os troços, para garantir a segurança daquelas provas improvisadas.

Ainda era analfabeto e já delirava com as narrativas, que o pai fazia à mesa, das facécias dos ralis (a que ele não assistia porque a mãe não deixava) de onde trazia troféus que o faziam sonhar. Nos gloriosos tempos do Rali TAP (depois Rali Vinho do Porto), andava ele na primária, era uma excitação quando ia com o pai ver as classificativas – e não raro ficavam hospedados no mesmo hotel dos pilotos. Marku Allen era o grande ídolo, à época, mas ele preferia Hannu Mikkola. Na velocidade, apreciava Pêquêpê nas corridas caseiras, e os brasileiros Piquet e Fittipaldi, na Fórmula 1.

“Lá em casa líamos tudo sobre o desporto automóvel. O Motor, depois o Volante, Autosport, e Turbo. A minha paixão pelos automóveis foi sempre muito racional. Eu gostava de analisar a trajectória que os pilotos usavam nas curvas, a sua condução debaixo de chuva”, diz, acrescentando não ser do género de ter posters de carros e pilotos nas paredes do quarto – até porque a mãe não aceitaria isso.

Tinha 11 anos quando recebeu o seu primeiro veículo motorizado, uma Solex, que estava apenas autorizado a usar no interior do perímetro da quinta da família ou no Mindelo, onde tinham casa de praia. As deslocações de ida e volta para as Caldinhas, em Santo Tirso, eram feitas a bordo da carrinha do colégio jesuíta onde completou o Secundário.

Aos 14 anos, ganhou a primeira motorizada, uma Yamaha DT, que logo adaptou para o motocrosse, praticado numa pista que improvisou na quinta, onde fazia corridas pirata com os amigos – quem sai aos seus. Tinha jeito, os pais sabiam disso (ele entrava em casa a fazer cavalo), mas nunca os conseguiu convencer a deixarem-no competir a sério no motocrosse, pois não queriam que ele se distraísse do essencial, que era fazer o curso. “O meu pai sempre me prometeu que não me faltaria com dinheiro e apoios para eu correr. Mas só depois de acabar o curso” disse.

Até ao 12º ano, a ideia era ir para Arquitectura. Mas na hora de decidir, seguiu o conselho do pai e foi para Gestão de Empresas. Como se portava bem e cumpria os objectivos, aos 18 anos tirou a carta (na verdade,  já sabia conduzir desde os 14 anos, ensinado pelo pai que o incentivava a guiar dentro da quinta, de forma controlada e vigilante) e teve o seu primeiro carro, um Opel Corsa GT amarelo (a única cor disponível), que ele mandou pintar de preto após três meses a ser gozado pelos colegas.

Durante o curso, iniciou-se na bolsa, comprando e vendendo acções, actividade que lhe seria útil no futuro (o primeiro emprego foi na dealer do Sottomayor), e ia dando vazão à sua paixão pelos automóveis. Como à época poucos estudantes tinham carro, os parques de estacionamento da Universidade do Minho eram o local ideal para treinar os piões que aprendera a dar, com 15 anos, na quinta da família, ao volante do Alfa Romeu do tio, prática que lhe seria útil nos rali paper onde invariavelmente se destacava nas gincanas.

Como o prometido é devido, mal acabou o curso, em 1992, o pai comprou, por 1800 contos, um R5 GT Turbo para ele poder disputar ralis. Manuel não tinha dúvidas de que conduzia bem. Mas não sabia como me comportaria em competição. A prova dos nove foi logo na estreia, no Rali de Famalicão, onde havia mais de 80 inscritos.

Cometeu o erro original de escolher para co-piloto um amigo, que gostava de ralis mas não percebia nada de notas. De manhã, no primeiro troço, da Vilarinha, isso não contou, porque ele conhecia o trajecto de cor e salteado, por isso aproveitava tudo quanto era metro, excitado pelo entusiasmo do público que lhe cortava a visão da saída das curvas, o que era assustador. Apesar disso, teve a grata surpresa e enorme alegria de fazer o 2º melhor tempo, apenas mais dois segundos que o primeiro. E na segunda passagem, igualou fez exactamente o mesmo tempo do primeiro.

O problema foi à tarde. Ele não conhecia o segundo troço, a meio o pendura confessou estar perdido, ele disse-lhe “Então está calado, não digas nada” e foi andando pró ali fora, às apalpadelas, o mais rápido possível, até que a 200 metros da meta fez uma curva rápida a fundo e o R5 GT Turbo foi em frente subiu o morro e desfez-se todo.

“Aprendi que além de andar rápido e sangue frio é preciso saber sempre exactamente quais são os limites - e que as corridas tinham de ser preparadas com mais profissionalismo”, conta Manuel, que não demorou muito até perceber que a sua actividade profissional no CITEVE (centro tecnológico da indústria têxtil) era incompatível com os ralis que exigiam muito mais tempo de preparação do que as provas de velocidade, onde meia hora de treino bastavam para aprender a tirar metros da pista. E mudou-se para o Troféu Starlet, onde, a meio da segunda época, no circuito de Braga,  ficou de pernas para o ar nos S, a ver vinte e tal carros a  passarem por ele, porque o neto de Salvador Caetano lhe deu um toque e fez o seu carro voar, quando, após a segunda passagem pela recta da meta, depois de ter chegado a 90 km/h à curva perigosa, deu um toque no travão e respirou fundo, preparando-se para travar apenas depois da curva…

Jorge Fiel

Esta matéria foi hoje publicada em O Jogo

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