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Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Eram pr'aí cinco e pico

No baile da D. Ester, foram dar com o chauffeur a dançar com a criada, enquanto a D. Inês, sequiosa, não resistiu ao whisky e partiu a coluna ao dançar o twist. Como uma desgraça nunca vem só, o D. José de Vicente, que é de S. Pedro da Cova, foi parar ao hospital depois de escorregar no soalho a dançar a bossa-nova.

Os mais velhos reconhecerão nesta sucessão de episódios o mais magnífico dos megaêxitos do Conjunto António Mafra, de que eu tomei emprestada a letra.

Voltei a ouvir o "Eram pr'aí sete e pico" na sessão de Discos Pedidos, em que a combinação iPad/YouTube fez de jukebox, que animou a nossa noite de sábado no Zavial, onde há mais de 15 anos passo a última quinzena de Agosto numa pequena casa, a não mais de 300 metros da areia.

A transparência cristalina da água do mar compensa amplamente o facto dela ser bem mais fria que a das mais concorridas praias do Sotavento algarvio.

Um areal asseado e desimpedido, que nos dispensa de estender a toalha a menos de dez metros do ser humano mais próximo, ajuda--nos tolerar o vento que às vezes pode ser chato.

E de bónus, recebemos ainda o zurrar dos burros, a bênção de noites estreladas que fariam Van Gogh morder-se de inveja, o doce aroma das figueiras onde petiscamos na ida e regresso das praias, e o coro monocórdico das cigarras.

A tranquilidade deste pedaço do Algarve intocado pela Via do Infante foi perturbada pela notícia do avistamento de tubarões, que forneceu ao Zavial Via Verde para os telejornais e a capa da imprensa sensacionalista.

Eram para aí cinco e pico quando alguém viu uma barbatana no mar, a uns 300 metros do areal. Foi o tempo de um fósforo até à praia estar toda de pé, a testemunhar o rápido desaparecimento da misteriosa barbatana.

Os nadadores-salvadores aconselharam prudência aos banhistas - que nem por isso deixaram de dar os seus mergulhos - e comunicaram o ocorrido às autoridades marítimas, enquanto que na praia se debatia o formato da barbatana - era de golfinho ou de tubarão? - e se exibiam os conhecimentos aprendidos no filme que catapultou Spielberg para a fama.

Nas horas seguintes, deu-se a matéria suficiente para o ditado "quem conta um conto acrescenta um ponto" ser convertido em tese de doutoramento, e o país foi (mal) informado de que dois tubarões, com quatro metros, foram avistados junto ao areal, no Zavial, gerando o pânico generalizado dos banhistas e obrigando à evacuação da praia - um relato ainda menos rigoroso e preciso que a indicação das horas (eram pr'aí sete e pico, oito e coisa, nove e tal) dos infaustos acontecimentos do baile da D. Ester, que terminou abruptamente quando faltou a luz, gerou-se a confusão natural, e a Locas, ao ver-se nos braços do Amaral, gritou aflita: Acendam o castiçal!

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

Fazer da tristeza graça

NUNCA me agradou o acto de proibir, mas ficaria satisfeito se a Póvoa de Varzim e outras câmaras seguissem o exemplo luminoso das de Viana e Braga e proibissem a realização de touradas

A única Tourada de que gosto é a de Ary dos Santos, assim mesmo , com t grande, pois trata-se do nome da canção que, na voz de Fernando Tordo, venceu o Festival RTP da Canção de 1973: "Não importa sol ou sombra, camarotes ou barreiras, toureamos ombro a ombro, as feras".

Um dos poetas maiores da geração de O' Neill, Natália Correia, David Mourão-Ferreira e Alegre, José Carlos Ary dos Santos (1937-84) dedicou-se a biscates diversos (entregador da Sociedade Nacional de Fósforos, vendedor de máquinas de pastilhas elásticas, escriturário do Caino do Estoril) antes de estabilizar a vida como publicitário.

Foi no mesmo Festival RTP da Canção que o retirara do anonimato em 1969 (com o poema Desfolhada, cantado pela outrora portentosa voz de Simone de Oliveira), que Ary causou polémica com Tourada, um poema ousado, onde usava a terminologia tauromáquica para, com a sua ironia mordaz, fazer uma chicuelina ao lápis azul da censura, criticando o regime marcelista e passando uma mensagem de esperança na proximidade da mudança: "Com bandarilhas de esperança, afugentamos a fera , estamos na praça da Primavera".

Gosto muita da Tourada (e de muitos outros poemas de Ary) mas nunca suportei a tourada. A embirração começou ainda eu era cachopo, nos tempos da ditadura do canal único e a preto e branco da RTP, quando nove em cada dez vezes a misteriosa Reportagem do Exterior anunciada para a noite de quarta feira se revelava uma maçadora tourada, em vez do desejado jogo de futebol.

Depois, quando comecei a politizar-me, racionalizei o ódio à crueldade das corridas de touros, uma luta desigual entre homem e animal, onde os espectadores se divertem e aplaudem cavaleiros e toureiros que fazem judiarias ao bicho, espetando-lhe ferros e bandarilhas no lombo.

Com a excepção da pega, o único momento de igualdade deste triste espectáculo (apesar do touro estar cansado da lide e a perder sangue), é tudo muito mau, até a idiosincrasia portuguesa de proibir o touro de ser morto na arena - uma rematada hipocrisia já que o animal é abatido logo após a corrida.

É muito nosso este tique d e adorar comer frango assado, massa chinesa com galinha ou caril de frango, nas não suportar sequer presenciar o "horrível" acto de cortar o pescoço à galinha - "que falta de gosto!".

Nunca me agradou o acto de proibir, mas ficaria satisfeito se a Póvoa de Varzim e outras câmaras seguissem o exemplo luminoso das de Braga e Viana do Castelo e proibissem a realização de touradas.

Nesta esquina da vida em que fomos apanhados, devemos inspirar-nos na única Tourada de que gosto, e, como nos aconselha Ary, "pegar o mundo pelos cornos da desgraça - e fazer da tristeza graça".

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

Sou filho único, talvez um pouco mimado

Modest Petrovich Mussorgsky

 

Sou filho único. Sei que os filhos únicos têm a fama de ser mimados - e dou de barato ter recebido o proveito correspondente a essa má fama.

Não ter de partilhar a atenção dos pais tanto pode ser bom como pode ser mau. Depende. Todos os filhos sabem que os pais podem ser muito chatos. Regra geral, quando olham para nós lembram-se sempre do tempo em que nos mudaram as fraldas ou em que nós éramos adolescentes rebeldes e inconscientes, com o cabelo pelos ombros.

Deriva da condição de pai (ou mãe) ter uma enorme dificuldade em actualizar a imagem dos filhos. Isso só mudará quando for possível implantar no cérebro humano um botão de refresh.

Na infância e alta adolescência, lamentei ser filho único à míngua de alguém lá em casa com quem brincar. Na baixa adolescência, lamentei não ter uma irmã que me apresentasse umas colegas e amigas. Depois racionalizei. Constatei que a maioria dos irmãos se dão mal uns com outros, dando razão ao pedacinho de sabedoria popular que nos recorda que os amigos se escolhem - os irmãos não.

Para compensar o facto de não ter irmãos, apostei nos amigos e fiquei satisfeito com essa opção. Estou 100% de acordo com a tese defendida por Sérgio Godinho numa das mais bonitas das suas canções: "Hoje fiz uma amigo e coisa mais preciosa no mundo não há".

Sucede que há gente para quem não chega ter amigos e por isso resolvem adoptar irmãos, organizando-se em lojas, que, presumo, são um sucedâneo das famílias tradicionais.

Como sou um fã de histórias de espionagem e thrillers (adoro Le Carré, Daniel Silva e Martin Cruz Smith), mal vi a manchete do último "Expresso" - Governo prepara razia nas secretas - não descansei enquanto não acabei de ler toda essa matéria.

Fui informado que os principais protagonistas desta intriga de Verãopertencem àquela categoria de homens que não se contentam em ter amigos - querem ter irmãos. Fiquei, por exemplo, a saber que Nuno Vasconcelos (o enfant terrrible dos media, e não só...), e Jorge Silva Carvalho (o mais público e polémico de todos os nossos agentes secretos) além de trabalharem juntos na Ongoing também são irmãos adoptivos na loja Mozart da Grande Loja Regular de Portugal, ramo maçónico a que também pertence João Paulo Alfaro, outro ex-espião que consta da folha de salários da proprietária do "Diário Económico".

Não precisei de ouvir o António Variações ("Porque eu só estou bem aonde eu não estou"), para ser íntimo da insatisfação humana, mas continuo a achar que para navegar nesta vida bastam-me amigos. Posso continuar a ser filho único. Nao é indispensável andar por aí a adoptar irmãos. Mas para me divertir sou capaz de baptizar cada núcleo de amigos. A um deles vou chamar-lhe Círculo Mussorgski. Sou doido pela peça "Uma noite no Monte Calvo"

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

Não preciso de nascer duas vezes

Experiências com ratos demonstram que é possível estar acordado e ter o cérebro parcialmente a dormir. Essa é a explicação mais bondosa para o facto de o governador do Banco de Portugal ter demorado sete anos a perceber que algo de muito errado e ilegal se passava no BPN.

Podem aventar-se outras explicações para o facto de Vítor Constâncio ter ignorado as reservas que os auditores da Deloitte levantavam às contas do banco e os alertas constantes do trabalho publicado em 2001 na capa da "Exame", denunciando irregularidades e levantando bem fundamentadas dúvidas sobre a gestão de Oliveira e Costa.

Falar na desadequada graduação das lentes dos óculos de Constâncio pode ser uma piada de gosto duvidoso. Considerar que se tratou de uma letal combinação de negligência e incompetência é uma hipótese mais plausível, mas também muito dolorosa, pois ele não só não está arrolado como cúmplice involuntário desta gigantesca burla como, ainda por cima, acabou recompensado com uma vice-presidência do Banco Central Europeu.

Enquanto Portugal dormia sossegado, na doce ignorância, uma data de gente conhecida arruinava o BPN, como está documentado nos 70 volumes e 700 apensos que constituem o processo legal de uma catástrofe financeira, que apesar de ainda não ter conhecido o seu epílogo já nos custou, grosso modo, o equivalente a um 13.º mês para todos os contribuintes.

Da longa lista dos beneficiários da catástrofe consta o clássico Vale e Azevedo, que urdiu um ardiloso esquema para sacar dois milhões de euros ao BPN.

Dias Loureiro não poderá devolver um dólar sequer dos 71 milhões USD que gastou a comprar duas tecnológicas em Porto Rico (que faliram logo de seguida...) porque não tem nada em seu nome, nem mesmo o famoso taco de golfe que mandou fazer no Japão e ele garante ser o melhor do Mundo.

Duarte Lima, outro nome do Gotha cavaquista, comprou uma off-shore ao BPN e sacou um empréstimo de dois milhões de euros ao Insular, o banco fantasma de Cabo Verde do grupo.

Cavaco e a sua filha Patrícia lucraram, em menos de dois anos, 375 mil euros (mais ou menos o que ganha numa vida um português médio), num negócio com acções da SLN (a holding que controlava o BPN), vertiginosamente valorizadas em 140%.

Tenho a certeza de que Cavaco e Vale e Azevedo não são madeira da mesma árvore. Sei que o PR deve estar arrependido da amizade e protecção que deu a Dias Loureiro e Duarte Lima. E acredito que se soubesse o que sabe hoje não aceitaria o negócio de favor que lhe foi proporcionado pelo seu ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

Mas estamos a viver aqueles tempos em que "já não é possível dizer mais, mas também não é possível ficar calado" (cito Manuel António Pina). Por isso declaro que não sinto a necessidade de nascer duas vezes para ser tão honesto como Cavaco.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

 

A falta de sorte de Balsemão

Outubro de 1982. Chamado de urgência a S. Bento, o ministro dos Assuntos Parlamentares, Marcelo Rebelo de Sousa, entra no seu passo apressado pelo gabinete do primeiro-ministro e dirige-se-lhe tratando-o pelo primeiro nome.

"Francisco, não. Faça o favor de me tratar por senhor primeiro-ministro", corrige um Balsemão possesso com mais uma patifaria do seu protegido, um jovem que adorava pregar partidas e exibir em público a sua imensa genialidade - em simultâneo, escrevia um artigo e ditava outro pelo telefone.

Marcelo acompanhara o primeiro-ministro na fundação do "Expresso" e do PSD. Quando a morte trágica de Sá Carneiro o atirou para a chefia do Governo, Balsemão entregou-lhe o "Expresso", que se revelou um feroz crítico do Governo constitucional liderado pelo dono, que foi dado como estando "lelé da cuca" na secção Gente.

Talvez para afastar Marcelo do "Expresso", talvez por querer aproveitar o seu talento nas negociações parlamentares, talvez pelas duas coisas, Balsemão chamou-o ao Governo.

Não demorou a arrepender-se. Na semana das autárquicas de 1982, decisivas para o futuro do moribundo Governo, Marcelo comunicou ao seu amigo Francisco que iria demitir-se do Governo.

O primeiro-ministro não gostou de ver o protegido abandonar um barco que se estava a afundar, mas não pode fazer mais do que pedir-lhe para manter a saída em segredo até ao dia seguinte às eleições. Marcelo jurou que manteria a boca calada, para não fragilizar o Governo. Dois dias depois a notícia estava escarrapachada na capa do DN.

Balsemão chamou-o logo a S. Bento, impôs-lhe o tratamento formal e com ele de pé à sua frente ("Quem é que o autorizou a sentar-se?", perguntou-lhe rispidamente), deu-lhe um violento raspanete. Marcelo defendeu-se argumentando que o considerava como um pai, e respondeu com uma graçola ("É o Édipo") à pergunta: "Se me considera como um pai como é que foi capaz de fazer-me uma canalhice destas?"

Vem este episódio a propósito da guerra das secretas, que opõe dois grupos de Comunicação Social (a Impresa, de Balsemão, e a Ongoing, de Nuno Vasconcellos), e que apanhou o Governo Passos Coelho no seu fogo cruzado - e de que Bairrão foi um dano colateral.

É curioso notar que Nuno Vasconcellos é filho de Luís Vasconcellos, o eterno lugar-tenente de Balsemão, e que o crescimento da Heidrick & Struggles (a empresa que criou com o seu amigo Rafa Mora) foi diligentemente regada com fartas encomendas pelo grupo liderado pelo melhor amigo e sócio do seu pai.

A sorte existe, como Woody Allen magistralmente demonstrou em "Match Point" (num jogo de ténis, quando a bola bate na rede, tanto pode cair para o outro lado do court, e nós ganhamos, como para o nosso - e perdemos). E obviamente Francisco Balsemão não tem sorte nenhuma a escolher os seus protegidos.

Jorge Fiel

Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias

 

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