Alexander Tchekov dedicou toda a vida à titânica e mal sucedida tentativa de ensinar as suas galinhas a entrarem sempre pela mesma porta e saírem por outra. Esta grotesca tentativa do irmão mais velho de Anton, o genial escritor russo, faz-me lembrar os não menos vãos esforços de tentarem fazer o país andar para a frente apostando todos os recursos em Lisboa.
A Grécia, o mais acabado dos exemplos da falência da macrocefalia, iniciou, a instâncias da troika, um processo de desconcentração do poder e descentralização dos recursos, deixando-nos sozinhos, como o único país não regionalizado da zona euro.
Estarmos orgulhosamente sós não preocupa os filhos das fábricas partidárias que nos desgovernam, pois infelizmente eles partilham o egocentrismo daqueles lisboetas que estão convencidos que não têm sotaque (pois tomam o deles como cânone) e a indigência de raciocínio do automobilista que segue na auto-estrada a tentar evitar os carros que lhe aparecem pela frente e que ao ouvir na rádio que há um carro a circular em contra-mão na A5 comenta para os seus botões: "Um?!? São às centenas!".
O nó do problema reside na incapacidade demonstrada pelos nossos governantes - de Soares a Passos, passando por Cavaco, Guterres, Durão, Lopes e Sócrates - em sequer verem que o pecado original está na estratégia de concentrar todos os recursos na capital, na esperança que essa locomotiva reboque o resto do país, o que nunca acontecerá porque Lisboa já há muito que está desengatada das outras carruagens do comboio português.
Quando se está no Terreiro do Paço perde-se a perspectiva do resto do país, que passa ao estatuto secundário de paisagem (ou província). O resultado é o acentuar das desigualdades internas.
Quem olha para o país de fora de Lisboa já percebeu que a chave para o desenvolvimento consiste em repensar tudo e apostar numa cobertura equilibrada do território nacional.
Por que é que Espanha tem dez cidades com mais de meio milhão de habitantes e Portugal só tem dez cidades com mais de 40 mil almas? A diferença de população entre as duas nações não é a resposta, que encontramo-la se olharmos para 1992, o ano em que Madrid foi Capital Europeia da Cultura, Barcelona teve os Jogos Olímpicos e Sevilha recebeu a Expo Universal - e nos lembrarmos que o magnífico Guggenheim, riscado por Gehry, foi para Bilbau.
Chegamos a esta crise devido a uma administração desonesta da riqueza - o alerta não é meu, mas antes do padre Manuel Morujão, o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa.
A macrocefalia de Lisboa é um problema estrutural do país - o diagnóstico não é meu, mas sim de D. Manuel Clemente, que é bispo do Porto mas cresceu e fez-se homem em Lisboa.
O que nos vale a nós, portugueses da província e figurantes da paisagem, é que a questão política deixou de ser central, pois a incompetência dos políticos que só têm ideias com rugas gerou a vitória da economia - e o primado do económico e social.
Quando pioram, as coisas ficam mais claras.*
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
Por trás de um grande homem como Rui Rio não há apenas uma grande mulher (a minha ex-colega e amiga Lídia) mas também outro grande homem - no caso Manuel Teixeira, o todo-poderoso chefe de gabinete do presidente da Câmara do Porto.
A todos quantos se dão à maçada de ler estas palavras, peço já desculpa por abusar da vossa paciência e deste espaço para falar deste meu ex-colega e amigo, mas parece-me que ele merece ser tirado da sombra discreta a que se remeteu e beneficiar um pouco das luzes da ribalta, pelo menos uma vez sem exemplo.
Natural de Tarouquela, Cinfães, estudou no seminário em Évora, onde debutou no jornalismo como correspondente do saudoso "O Comércio do Porto", diário em que viria a fazer carreira, chegando a director - e onde tive o prazer de o conhecer.
"Três tiros e uma mulher a menos" - que ocupa por direito um lugar no top ten dos meus títulos favoritos de primeira página - saiu da cabeça imaginativa e sintética do Manel Teixeira, um dos mais eficientes chefes de Redacção com quem trabalhei, amigo e apoiante da primeira hora de Cavaco, senhor de boas ligações aos sociais-democratas de Fafe (onde pontificava a família Marques Mendes) e apaixonado pelo Direito e o Jornalismo.
A vida dá as suas voltas, e após ter desempenhado um papel activo na privatização de "O Comércio do Porto", acabou a sua passagem pelo jornalismo na Radiopress, sem nunca concretizar o sonho de ultrapassar a circulação do "Jornal de Notícias".
Estava na TSF como administrador quando Rui o foi buscar para o seu lado, formando uma dupla que entrará seguramente para a história da cidade do Porto, não interessa agora para o caso se pelos bons ou maus motivos.
Antes de começar a alinhar estas frases, pensei em duplas famosas, que pudesse dar como exemplo para a dupla Rio/Teixeira. Afastei a hipótese Sherlock/ Watson, pois nenhum deles é tão brilhante como o detective ou tão leve de ideias como o médico.
Descartei as duplas Astérix e Obélix (nenhum deles teve a sorte de cair no caldeirão da poção mágica quando era bebé) e D. Quixote/Sancho Pança - apesar de reconhecer que mais frequentemente do que seria desejável o presidente da Câmara e o seu chefe de gabinete ficam com o pensamento enevoado e envolvem-se em investidas estéreis contra moinhos de vento imaginários.
Concluí, por fim, que a dupla mais parecida é a outrora formada pelo rei Luís XIII e o cardeal Richelieu - com Teixeira no papel do primeiro-ministro que foi o arquitecto do absolutismo francês e combateu sem tréguas os protestantes.
O Direito e o Jornalismo foram sempre as grandes paixões do Richelieu à moda do Porto, pelo que não me espanta que ele abuse do recurso a processos e se exceda a escrever para os jornais - nomeadamente para o JN (cisma que deve vir dos seus tempos de director d'"O Comércio do Porto").
Como tenho pena que o talento de Teixeira para a escrita esteja a ser desperdiçado em peças secas, vou sugerir à Direcção do nosso jornal que o convide para escrever no JN. Até já arranjei um nome para a coluna: Direito de Resposta. Seria uma bela prenda de Natal!
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
A nossa vida divide-se em três fases. Primeiro, acreditamos na existência do Pai Natal. Depois, já percebemos que não há lá em casa uma chaminé por onde possa descer um velho pançudo e de barbas, vestido de vermelho e com um saco às costas - mas fazemos de conta que acreditamos nessa patranha porque beneficiamos dela. Por fim, passamos a ser contribuintes líquidos para a manutenção do esquema. Estou nesta última fase há uma data de anos. Ou seja, sou o Pai Natal e sei que a esmagadora maioria das preclaras e preclaros leitores partilham essa minha condição.
Eu adoro dar. Não sou um Pai Natal forreta, ao contrário da Maria Cavaco e do Pedro Passos Coelho, que no ano passado, ainda a crise ia no adro e o pessoal tinha agasalhado o 13.º por inteiro, adoptaram medidas excessivas de contenção.
No Possolo, no Natal de 2010, os adultos (PR incluído) ficaram a seco. Só as criancinhas tiveram direito a prenda. Este miserabilismo natalício do casal Maria e Aníbal contaminou a Laura e o Pedro - após a consoada, em Massamá, só a mais nova das quatro filhas de Passos Coelho teve um presente para desembrulhar.
Vá lá que neste ano, Belém e S. Bento optaram por guardar de Conrado o prudente silêncio neste particular das prendas de Natal. Fizeram bem, porque mesmo sem sinais exagerados de pânico por parte de quem manda, estão a fechar em média cem lojas por dia, de acordo com a Confederação de Comércio e Serviços de Portugal.
Como o período do Natal representa metade da facturação anual para a maioria das lojas, não podemos ficar indiferentes ao impotente desespero de quem naufraga, fechando as portas do seu estabelecimento, com a praia à vista.
Nas voltas que dei pela Baixa, para investir a metade que sobrou do 13.º em prendas (no seu essencial livros, música, DVD e vinhos) impressionou-me o esforço de muitas lojas para se aguentarem, antecipando os saldos/reduções que tradicionalmente só faziam depois do Natal.
Vítor Bento avisou-nos de que um dos riscos da actual crise é as pessoas deixarem de gastar. "Isso seria muito mau", adverte o sério e reputado economista que em boa hora Cavaco escolheu para substituir Dias Loureiro no Conselho de Estado. Vai daí, apelo a todos os colegas pais e mães natais para que, na medida das suas possibilidades, continuem a demonstrar o afecto pelas pessoas que gostam, dando-lhes presentes.
Não desperdicem, nem exagerem. Mas, por favor, não se intimidem. Não tenham medo de consumir - com moderação. Esta vida são dois dias e o primeiro está a acabar-se. E se não falarmos no entretanto, desde já vos desejo um óptimo Natal, deixando-vos, a título de prenda, um pedacinho do nosso Eça:
"As desgraças públicas nunca impedem que os cidadãos jantem com apetite: e misérias da pátria, enquanto não são tangíveis e não se apresentam sob a forma flamejante de obuses rebentando numa cidade sitiada, não tirarão jamais o sono ao patriota".
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
Há alguns anos (não muitos), com os ânimos incendiados pela vã tentativa do estado-maior benfiquista de quebrar a hegemonia portista com manobras na secretaria, esteve em voga a palavra de ordem "Nós só queremos Lisboa a arder".
A provocação não caiu no goto da generalidade dos residentes na capital, pelo que amiúde alguns lisboetas, meus amigos ou conhecidos, perguntavam-me se também eu achava bem a ideia de pegar fogo à sua cidade.
"Não. Lisboa é uma bela cidade. O que defendo é o uso de uma bomba de neutrões, de modo a preservar o magnífico património edificado". Foi esta a resposta que formatei para dar nessas ocasiões. Quando a pergunta não é séria, sinto-me desobrigado de responder a sério.
Neste novo século, trabalhei oito anos em Lisboa, uma das mais bonitas cidades do Mundo, pela qual é muito fácil uma pessoa ter uma paixão fugaz e à primeira vista.
Estou imensamente feliz por o JN me ter proporcionado voltar a viver na cidade que amo e onde nasci, mas não posso negar que, de vez em quando, ainda sinto uma pontinha de saudade de alguns pequenos prazeres que Lisboa pode oferecer, como um fim de tarde no miradouro da Graça, petiscar ao almoço uma sanduíche de rosbife e um copo de branco no terraço do Regency Chiado, ou tomar o café matinal na esplanada da Ponta do Sal, em S. Pedro do Estoril.
Quando alguém é incapaz de diferenciar se estamos a falar em sentido estrito ou figurado, geram-se situações embaraçosas e terríveis mal-entendidos. Ninguém quer mesmo Lisboa a arder. O que queremos a arder, num fogo purificador, é a governação centralista que empobrece o Norte e desgraça o país.
O modelo centralista de pôr todas as fichas em Lisboa, partilhado por todos os partidos do arco da governação, é o responsável por 2000-2010 ter sido a pior década de Portugal desde 1910-20 - anos terríveis em que vivemos uma guerra mundial, golpes de Estado e a epidemia da gripe espanhola.
Na primeira década deste século, o crescimento médio anual da nossa economia foi de 0,47%, apesar do afluxo diário médio de seis milhões de euros de Bruxelas, que valiam todos os anos 2% do PIB.
Já ultrapassado pelo Alentejo e Açores, o Norte é a região mais pobre do país, apesar de ser a que mais contribui para a riqueza nacional, com 28,3% do PIB, logo a seguir a Lisboa e Vale do Tejo, com uns 36% enganadores, já que aí está contabilizada a produção feita noutras partes do país pelas grandes companhias nacionais e multinacionais com sede na capital.
Quando leio que ao abrigo do famoso efeito de dispersão - uma vigarice inventada para desviar para Lisboa fundos comunitários - dinheiro destinado às regiões mais pobres está a ser usado pelos serviços gerais e de documentação da Universidade de Lisboa, dá-me vontade de ir para a rua gritar "Nós só queremos Lisboa a arder".
Não. Nós não queremos mesmo Lisboa a ser consumida pelas labaredas. O que queremos é dizer que estamos fartos de ser chulados e já é tempo de impedir que Portugal continue a arder em lume brando, por culpa de governantes incompetentes ou corruptos.
Jorge Fiel
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O aviso de que um homem tem sempre dois motivos para aquilo que faz - um bom motivo e o verdadeiro motivo - é um dos mais importantes legados à Humanidade do falecido John Pierpoint Morgan.
Estribados neste pedacinho de ouro do fundador do célebre JP Morgan,, jornalistas e comentadores desconfiam que os políticos raramente dizem o que pensam e pensam no que dizem. Marcelo protagonizou um clássico desta trampolinice quando disse que nem que Cristo descesse à Terra seria candidato à liderança do PSD, na véspera do congresso do Europarque, em 99, que o elegeu presidente.
Embora saiba que a capacidade em aldrabar o próximo, com competência, seja um dos requisitos fundamentais para quem quer progredir na coisa pública, acredito na existência de políticos honestos e bem intencionados, - apesar de não me achar um crédulo (não acredito em OVNIs).
Peguemos, por exemplo, no caso de Rui Rio, que tem preconizado com insistência a eleição directa do presidente da Área Metropolitana do Porto e o reforço dos poderes da Junta.
O bom motivo para a defesa deste sucedâneo da Regionalização seria, de acordo com Rio, beneficiar as duas grandes concentrações urbanas do país com um governo metropolitano, mais ágil e eficaz que o central.
Mas, de acordo com cínicos analistas, o verdadeiro motivo de Rio é assegurar o seu futuro imediato (está proibido por lei de se recandidatar à Câmara do Porto) ao mesmo tempo que tenta impedir o seu arqui-rival Menezes de assumir as rédeas de uma região que tem sofrido por estar órfã de liderança.
Sei que Rio não gosta de Menezes. Mas custa-me a crer que tenha apresentado aquela proposta com o duplo e maquiavélico objectivo de arranjar um emprego para ele e tramar o seu inimigo figadal.
Sei que Rio inscreveu no Orçamento da Câmara para 2012 a dotação para pagamento dos subsídios de férias e 13º mês. Custa-me crer que a explicação que ele deu (acautelar uma eventual declaração da inconstitucionalidade do Orçamento que prevê a suspensão ou redução do pagamento desses subsídios) seja tão só o bom motivo - e que o verdadeiro motivo seja demarcar-se publicamente e uma vez mais de Passos Coelho.
Sei que devemos estar sempre de pé atrás com os políticos, mas temo que uma vez mais a desconfiança seja exagerada. O Rui é mesmo assim. Cauteloso e prudente, do tipo de usar cinto e suspensórios ao mesmo tempo.
É por isso que nunca arriscou candidatar-se à liderança do partido. É por isso mesmo que seria um óptimo reforço para a equipa de Vítor Gaspar que tem em mãos a hercúlea tarefa de baixar até 0,5% o défice orçamental.
Seria uma transferência magnífica, em que todos ganhavam. Ganhava o Porto e ganhava o país. E nem oneraria muito os cofres do Estado, porque o Rui ainda não se desfez da casa que tem em Lisboa.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
Algures no Verão do ano passado, visitei um call center, na Infante Santo (Lisboa), e fiquei espantado. Num vasto open space, 200 pessoas falavam ao telefone, ao mesmo tempo e em 19 línguas diferentes, resolvendo problemas tão diversos como a do finlandês que não sabia mudar o pneu do seu Peugeot ou de um português que queria obter informações suplementares sobre um PPR.
Cheirava a trabalho naquela sala espaçosa, que tresandava à generosa ideia europeia (que ultimamente tem gaguejado), pois o idioma em vigor em cada grupo de estações de trabalho era assinalado por uma bandeira.
O que mais me impressionou foi saber que era inferior a mil euros o salário médio daquelas pessoas, fluentes em pelo menos uma língua estrangeira e altamente treinadas - os que atendem as chamadas para a linha verde de um banco são frequentemente chamados para dar formação ao pessoal dos balcões.
Uma questão ficou a bailar na minha cabeça enquanto esperava pelo eléctrico na 24 de Julho. Por que raio é que os largos milhares de operadores dos call center, que ganham pouco e trabalham muito em condições bem longe das ideais, ainda não constituíram um sindicato?
Não precisei de chegar ao Cais do Sodré para resolver esta intriga e achar a resposta certa a esta questão pertinente. Os operadores de call center não fundaram um sindicato pela mesma razão que nenhum esquimó compra um frigorífico ou um guineense pede ao Pai Natal um aquecedor - porque não precisam de um sindicato para nada.
A ideia de criar um sindicato também não atravessou a cabeça de gente com novas profissões, como webdesigners, djs, trabalhadores de help desk, personal trainers ou mesmo celebridades, sejam elas mais ou menos duráveis, como a Cinha ou a Cláudia Jacques, ou instantâneas e voláteis, como o Zé Maria, do primeiro Big Brother, a Cátia, da Casa dos Segredos, ou o falso Estripador de Lisboa, da dupla Felícia/Sol.
E se nos dermos ao trabalho de pesquisar nas estatísticas, confirmamos que este alheamento também se apoderou das profissões tradicionais. Um estudo do ISCTE garante que 2/3 dos trabalhadores portugueses não estão sindicalizados - e que quatro em cada cinco nunca fizeram greve.
A situação não está a melhorar. Na última década, a taxa de novos sindicalizados na CGTP caiu mais de 40%. E, de acordo com a OCDE, a percentagem de sindicalizados sobre o total da nossa mão-de-obra recua todos os anos 2,3%.
O problema não é dos trabalhadores. O mundo virou do avesso desde que os sindicatos foram inventados para proteger a classe operária dos excessos da exploração patronal, filha da Revolução Industrial.
O mundo mudou, mas os sindicatos não. Continuam a usar a mesma linguagem, discurso, atitude e formas de luta que eram boas no séc. XIX quando era mal-educado andar na rua com a cabeça descoberta (e ainda não tinham sido inventados o automóvel, a televisão e as férias pagas), mas que no séc. XXI apenas conseguem mobilizar os funcionários públicos.
Jorge Fiel
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Os meus amigos já o sabem há muito tempo, mas agora tenho de o dizer em voz alta para a mobília ouvir: não vou à bola com o fado e está a fazer-me um nervoso miudinho a histeria, disfarçada de consenso nacional, gerada pela gentileza da UNESCO em incluir a canção de Lisboa na lista de 90 obras-primas consideradas património oral e imaterial da Humanidade, em que figuram as festas funerárias dos indígenas mexicanos, o teatro de marionetas siciliano e os tambores da aflição, uma dança de cura popular entre os tumbuka, uma tribo do Norte do Malawi.
O fado, que bebe a alma e mergulha as raízes na indolência dos cânticos mouros, veste-se de negro para cantar o luto, o sofrimento, a dor, a desgraça, o amor perdido, o ciúme doentio, a miséria e a saudade, ou seja, é uma canção em permanente marcha atrás, uma antologia de valores que detesto e de sentimentos perniciosos que abomino.
Ao apregoar a submissão aos ditames do destino, o fado foi, de braço dado com Fátima e o futebol, uma das fundações do aparelho ideológico do Estado Novo, que reabilitou e integrou um género musical que medrou nas casas de prostituição dos bairros pobres da Mouraria e Alfama.
No tempo em que o vinho dava de comer a um milhão de portugueses, o fado era a peça fundamental da doutrina da resignação de um povo anestesiado pelo religião e que, na sua doce e alimentada ignorância, rejubilava com as vitórias internacionais da nossa selecção no hóquei em patins, modalidade a que mais ninguém ligava pevas.
Sei que o fado se renovou, com a transfusão de vozes novas como as de Camané, Aldina Duarte, Ana Moura, Mariza ou, mais recentemente, de Carminho. Sei que mesmo nos tempos da Outra Senhora o choro da guitarra acompanhou belíssimos poemas do Ary dos Santos, do David Mourão Ferreira ou do O'Neil. Não me atrevo a beliscar sequer o tremendo talento de Amália. E se me oferecerem o Fado, do Malhoa, vou logo a correr pendurá-lo na parede da sala. Mas isso não chega para me fazer gostar do fado, uma canção triste que não rima comigo.
Não gosto do fado, como também não gosto do Benfica - clube cujo fado, desde a maldição de Bella Gutman, é não ter imagens a cores dos seus êxitos europeus para mostrar aos adeptos que não os puderam viver por terem 50 anos ou menos. Mas isso não me impede de reconhecer o talento de Eusébio, elogiar a liderança de Borges Coutinho ou admirar a resistência dos seus adeptos às adversidades.
Tenho um enorme pó à fatal e indolente resignação face ao destino que é o programa de vida do fado. Em vez de nos agarrarmos ao passado e de fazermos uma festa com a bondade da UNESCO em acolher o fado numa lista étnica (uma distinção de importância equivalente à vitória do Benfica na Taça Latina), devemos olhar para o futuro. O povo está coberto de razão quando diz que tristezas não pagam dívidas. E nós temos uma data delas para pagar.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
Entre férias e trabalho, passei fora do Porto a maior parte do mês de Agosto. Quando regressei a casa, a 1 de Setembro, entre a correspondência e entulho que me enchia a caixa do correio, estava o extracto do cartão Visa Universo a lembrar-me que tinha a pagar 220 euros.
Atrasei-me no pagamento. E a culpa foi só minha. Estar fora não é desculpa. Podia e devia ter telefonado para a linha Universo a saber o montante em dívida, entidade, referência e prazo de pagamento - e liquidar a dívida a tempo e horas num multibanco em Vila do Bispo.
O castigo por este pequeno delito veio no extracto de Setembro. Os cinco dias de atraso iriam custar-me 15,60 euros. Em contas de cabeça rápidas, à Guterres, concluí que, se convertidos em juros, representavam uma taxa exorbitante na casa dos 400% ao ano - ou seja, agiotagem - pelo que expus telefonicamente a situação, sugerindo duas saídas para a sua ultrapassagem.
O BPI optou pela segunda - perder-me como cliente, mas não abdicar dos 15,60 euros - pelo que, após cumprir até ao último cêntimo as minhas obrigações com o banco, entreguei o cartão Universo no balcão de Sá da Bandeira.
Nada me move contra o BPI. Antes pelo contrário. Tenho um enorme respeito e tremenda admiração pelo seu fundador, Artur Santos Silva, e acho muita graça à maneira desempoeirada como comunica o seu sucessor, Fernando Ulrich.
Apenas resumi a história deste divórcio (após ter ganho 1327,53 euros em descontos, de acordo com as contas do banco) porque ela me veio à cabeça durante o almoço que tive na sexta-feira, em Coimbra, com a Catarina Frade, cujo relato é publicado na última página deste jornal.
A propósito da divulgação de um estudo da MasterCard, revelador de uma atitude muito responsável dos consumidores portugueses, que estão a ajustar os seus hábitos e a mudar do crédito para o débito (o decréscimo acumulado do uso de cartão de crédito é de 15% nos últimos quatro anos), a Catarina contou um episódio saboroso a propósito da tese de Filipa Moreira, uma economista e professora no IPAM em Aveiro que é sua aluna de doutoramento.
Para fazer a demonstração de que as pessoas gastam mais quando em vez de pagarem com dinheiro o fazem com cartão de crédito, a Filipa pegou nos dois bilhetes que atempadamente adquirira para o concerto dos U2 em Coimbra e pô-los em leilão em duas turmas. Na que exigiu que o pagamento fosse feito em dinheiro, o lance mais alto foi de 150 euros. Na outra, em que obrigava ao pagamento com cartão de crédito, o valor máximo atingido foi de 600 euros - que coincidia com o limite de crédito da licitante.
Ao ouvir esta história, curiosa apesar de não surpreendente, dei por mim a pensar que há males que vêm por bem - e que tenho de estar grato ao BPI por, com a sua intransigência, me ter levado a deixar de usar cartão de crédito.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias