O problema era na caixa de velocidades, mas isso só foi apurado três dias depois do final desta história, que, no seu essencial, se passou há cinco anos na A1, na tarde quente de uma sexta-feira de maio, e foi protagonizada pelo Mini Clubman branco, de 1974, que comprei no início do século, na segunda vez que tive de emigrar para Lisboa.
Já há um par de meses que o carro se queixava. E para o fim era o cabo dos trabalhos para ele vencer, em primeira!, a ligeira rampa da garagem do edifício da Impresa, em Paço de Arcos.
Decidi esperar, porque o meu regresso ao Porto, que eu acreditava ser o definitivo, estava por semanas e preferia entregar o carro aos cuidados do António Santos, o mecânico de Arcozelo que é provavelmente o maior especialista vivo em Minis.
Sexta acordei mais cedo, atulhei o carro com roupa, livros e CD, acondicionados naquelas caixas vermelhas dos CTT. Ao início da tarde, após ter fechado pela última vez o caderno de Economia do "Expresso", guiei devagar pela Marginal até Santa Apolónia.
Fiquei para a minha vida e sem saber o que fazer depois de ter sido informado por um papelinho, colado no portão do serviço auto, que o transporte ferroviário de viaturas tinha sido descontinuado em abril.
Apesar de estar careca de saber que o Mini não estava com saúde para a grande viagem, não havia outra solução senão fazer-me à estrada. Não o podia deixar ficar para trás, abandonado numa rua em Lisboa, com a tralha acumulada durante três anos e meio à vista dos olhares gulosos dos amigos do alheio.
Aguentou com garbo até à Serra dos Candeeiros. Ao km 104 claudicou. O motor trabalhava, as velocidades entravam, mas o Mini não se mexia. O reboque demorou apenas mais uns minutos que a meia hora prometida pela menina da Assistência em Viagem. Estava eu a começar a fazer conversa com o condutor do reboque, que julgava me iria levar ao Porto, quando ele virou para a área de repouso de Fátima, onde deixou parte da carga (eu e as caixas) e me disse para esperar por um táxi que me viria buscar - e avisou que o Mini só na segunda estaria em Arcozelo.
O taxista, que demorou uns 20 minutos a chegar, era uma tagarela que me alarmou logo de entrada, ao dizer que estava com problemas nos travões, e me surpreendeu ao sair da autoestrada em direção a Leiria. "Tenho instruções para o levar a uma rent-a-car", respondeu quando eu protestei dizendo que o meu destino era o Porto.
Foi ao volante de um carro coreano (talvez tão pequeno como o meu Mini mas que tinha a enorme vantagem de tratar as subidas por tu) que fiz a última etapa desta atribulada viagem, que recordo a propósito desta edição do nosso JN em que o verbo confiar é conjugado em todas as secções. O moral que tiro desta aventura é duplo. Apesar de não ser simples, o serviço de Assistência em Viagem revelou-se confiável. Apesar de não ser de confiança, eu continuo a gostar muito do meu Mini Clubman, fabricado no ano da Revolução dos Cravos.
Jorge Fiel
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O mais provável é que a primeira vez não esteja longe, mas a verdade é que nunca votei no PSD. O que, visto a frio, e atendendo ao facto de já ter acontecido votar no PS, comporta uma grande dose de irracionalidade porque na ação, quer estejam no Governo quer estejam no Oposição, PSD e PS são iguais, além de previsíveis.
Reconheço desde já que nunca ter votado PSD e ter posto a cruzinha na mãozinha é tão irracional como eu comer com gosto o sangue nos rojões e não conseguir levar à boca uma garfada de arroz de cabidela.
Apesar de, na ação, serem como Dupont e Dupond, os dois partidos do Bloco Central têm personalidades muito distintas.
O PSD é um partido difícil de domar, possuído por um caráter autofágico, que o levou a devorar 16 líderes em 38 anos. No mesmo período, o PS gvernou-se com apenas sete (Soares, Constâncio, Sampaio, Guterres, Ferro, Sócrates e Seguro).
Passos é o 17º - faz hoje exatamente dois anos e um dia que foi eleito em Carcavelos, desmentindo assim a previsão de Marcelo, que na altura disse que ele não iria durar dois anos - e está prestes a atingir a idade média de vida dos líderes laranja, que é de 26 meses (estatística deformada pela década de Cavaco), pelo que não demorará a substituir Balsemão (25 meses) no pódio de longevidade, onde Marques Mendes, que se aguentou à bronca 29 meses, está em 2º lugar.
O PSD é um partido irrequieto que não dá vida boa aos seus líderes, principalmente se eles não conseguirem ser pródigos na distribuição de benesses. Olhando para a galeria de retratos de ex-líderes que preenche as paredes da escadaria principal da sede, na São Caetano à Lapa, reparamos que três deles morreram em circunstâncias trágicas - Sá Carneiro, Mota Pinto e Soares Franco.
Partido do tipo albergue espanhol, onde convive gente tão diferente como Alberto João e Pacheco Pereira, capaz de dar ao país modelos de autarca tão diversos como Isaltino, Rio e o major Valentim, o PSD é geneticamente tão diferente do PS que até custa a crer como é que conseguem atuar como irmãos gémeos.
Este mimetismo comportamental dos dois partidos que governaram o país nos últimos 35 anos só pode ter a ver com a sua incapacidade em, chegados ao Poder, afrontar os interesses instalados, deixar de satisfazer as ávidas clientelas e de agirem sem ter as sondagens como astrolábio. É o caráter de máquinas de conquista e administração de poder que faz com que PSD e PS sejam ao mesmo tempo tão diferentes e tão iguais.
Olhem para Passos Coelho, tão bem-intencionado, e que, apesar de escoltado pelos rigorosos Gaspar e Moedas, deixou derrapar para setembro a entrada em vigor da Lei das Rendas (que a troika queria ver rapidamente em execução), atolou-se nas exceções ao teto salarial para os gestores públicos, enredou-se no dossiê PPP e não deu ainda passos decisivos no sentido da urgente reforma da Justiça.
Jorge Fiel
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Lembro-me como se fosse hoje. Após uma primeira fase impecável, em que despachámos com chapa três os nossos três adversários (Brasil de Pelé incluído), aos 25 minutos já estávamos a perder por uns incríveis 3-0 com os fracotes da Coreia do Norte.
A épica reviravolta ficou tatuada na memória da minha geração, que por muitos anos que viva nunca esquecerá onde estava no dia dos 5-3 à Coreia e no 25 de Abril.
Eu estava em casa, no 2.º andar do 304 da Avenida de Rodrigues de Freitas, junto ao Jardim de S. Lázaro, em frente ao enorme televisor Nordmend que o meu pai tinha acabado de comprar a prestações à D. Delfina, da Rádio Mundial, a loja de eletrodomésticos que ocupava o primeiro andar do nosso prédio.
Tinha acabado a primária e andava com dores de barriga por causa dos exames de admissão ao liceu e à escola industrial, quando desembarcou na nossa casa o primeiro exemplar da caixa que mudou o mundo.
Nos últimos 50 anos, mundo e pais mudaram - e de que maneira! - por causa da televisão, mas não só. Hoje, quando chega à primária, para o seu primeiro dia de aulas, uma criança leva a sua cabecinha desorganizada pelas quatro mil horas de televisão que, em média, já leva no papo.
Num mundo em que a atenção humana passou a ser o fator escasso, as crianças crescem em frente à televisão, a verem 26 mil anúncios por ano e a viciarem a cabeça na agressiva linguagem do videoclip inventada pelos publicitários para tentarem fazer ouvir a sua mensagem no meio do ruidoso bombardeamento de informação a que estamos submetidos.
A lamentável falta de capacidade de concentração da geração Internet é filha do malefício do zapping e tem de ser combatida pelo sistema de ensino logo no início, nos bancos da escola primária, para evitar que a generalidade dos estudantes chegue à Universidade com dificuldade em acompanhar um raciocínio mais elaborado e incapaz de seguir uma exposição que dure mais de dez minutos.
Nestes tempos em que adolescentes e jovens adultos são exímios em usar os polegares para enviarem 150 SMS por dia, a missão da Escola é ensiná-los a usar a cabeça para pensar - e treiná-los para ganharem capacidade de concentração e sacrifício.
Nestes tempos em que muitos estudantes - muito mais do que seria razoável e desejável - têm dificuldade em levar a cabo, na vida real (que é muito diferente da dos videojogos), uma tarefa que envolva um desafio mais complicado, o mais complicado e decisivo desafio da Escola não é ser eficaz a transmitir-lhes conhecimentos, mas sim a ensinar-lhes a procurar e aprender os conhecimentos de que vão precisar para se desembrulharem ao longo da vida.
Jorge Fiel
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Sou um escritor, um desempregado de longa duração. Era assim, com esta frase caraterística do seu peculiar sentido de humor (adjetivado de "desmanchado" por Maria João Seixas), que Alface se via ao espelho.
Autor de um imperdível quinteto de curtas histórias juvenis, que me fazem escangalhar a rir logo a começar pelos títulos - "Um pai porreiro ganha muito dinheiro", "Uma mãe porreira é para a vida inteira", "Avó não pises o cocó", "Filhos assim dão cabo de mim" e "A prima fica em cima" - Alface atravessou a vida a desafiar as convenções e morreu em conformidade, aos 58 anos, de AVC, na Culturgest, a meio de uma leitura do livro "O fim das bichas".
Adoro o Alface, mas também gosto de Chopin, prodigioso pianista e compositor polaco que se perdeu de amores pela George Sand e acabou nacionalizado pelos franceses e sepultado no Père Lachaise.
Saber que Santana Lopes está disponível para deixar de andar por aí e que passou a incluir o anafado lote de presidenciáveis desencadeou na minha cabeça uma associação de ideias aos falecidos Alface e Chopin.
Em 1995, quando presidia ao Sporting, Santana foi à televisão queixar--se de que andava a ser ameaçado, presumivelmente pelos Super Dragões, e exibiu como prova uma carta anónima que recebera e que continha o aviso: Cuidado com os rapazes!
Veio a saber-se que "Cuidado com os rapazes" é o título de um livro de Alface e a carta anónima, com a frase ameaçadora, era tão-só um convite para a apresentação da obra.
Ex-secretário de Estado da Cultura de Cavaco, Santana não brilhou quando respondeu "os concertos para violino de Chopin" à pergunta sobre as obras do repertório erudito que mais lhe agradavam.
Entre as 264 peças que nos deixou o versátil polaco contam-se sonatas, noturnos, mazurcas, valsas, estudos, improvisos, polonesas, etc., mas, lamentavelmente, nenhum concerto para violino.
A proto-candidatura de Santana engrossa uma lista já bem composta de presidenciáveis (Marcelo, Durão, Guterres, Costa, Carvalho da Silva) apesar de estarmos a quatro anos do ato e de antes ainda termos autárquicas e legislativas.
Intriga-me este entusiasmo precoce, que contrasta vivamente com a maçada e desinteresse da última campanha presidencial e o facto de, em Portugal, o PR ter muitos votos mas poucos poderes. A queixa de Cavaco de que o que ganha não lhe dá para as despesas (e ele optou por receber a pensão, maior que o salário presidencial!) não afugentou a freguesia.
Como estou intrigado com este entusiasmo, deixo à vossa consideração duas perguntinhas apenas, uma retórica (a primeira) e outra nem tanto:
Para que serve o PR?
(Não vale responder: Para torrar 17 milhões de euros/ano, que é quanto custa manter a Presidência, cujos gastos subiram 31% nos cinco anos do 1º mandato de Cavaco)
Por que raio continuamos nas meias tintas e não optamos por um regime parlamentarista, como o alemão, ou presidencial como o francês, e poupamos uma eleição e uma data de intrigas de baixo coturno?
Jorge Fiel
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Se excluir o futebol e alguns (poucos) noticiários, é raríssimo eu ver televisão em direto. Faço a minha própria programação. Enquanto aguardo, ansioso ao ponto de estar quase a começar a roer as unhas, pela 3.ªº temporada de Downton Abbey e a 2.ª de Homeland (segurança nacional), tenho a gravar três séries (Body of proof, The Protector e Rizzoli & Isles), que me entretenho a ver quando me apetece, nas folgas ou à noite. De vez em quando, faço um raide pela programação dos Fox, AXN, Discovery, Travel e História e ponho a gravar, avulso, um episódio, filme ou documentário.
Sei que não sou o único com este perfil. Em Inglaterra, mais de metade do consumo de televisão não é feito em direto. Quer isto dizer que está seriamente desfocado qualquer retrato das audiências que não leve em conta a nova realidade do espetador programador.
Durante 13 anos, a verdade a que tínhamos direito sobre as audiências televisivas foi-nos fornecida pela Marktest a partir de uma amostra cansada e contaminada pelo pecado original de ser constituída com base em entrevistas para telefone fixo, o que excluía logo à partida sensivelmente metade dos lares portugueses e grupos sociais tão significativos como os jovens urbanos e as classes mais pobres. A amostra da Marktest estava velha também porque não media o consumo de programas em diferido e não contabilizava os sistemas de receção de televisão por satélite.
Como a amostra estava velha e cansada e a tecnologia usada não permitia captar as novas formas de consumo, em 2010, a CAEM, que reúne os três protagonistas da indústria televisiva - anunciantes, agências de publicidade e meios (RTP, SIC, TVI, Zon e Meo) - achou por bem abrir o concurso para a mediação de audiências, que foi ganho pela GfK. A importância desta questão reside no facto da audiência ser a moeda padrão do negócio da televisão - cada ponto vale dinheiro.
O normal funcionamento do mercado na indústria dos Media exige um retrato mais verdadeiro do consumo de televisão que seja pelo menos quase tão exato como o dos jornais, onde se conhece, com precisão até à unidade, a tiragem, circulação paga, vendas em bloco e vendas em banca de cada título.
Já sabíamos que as audiências televisivas estavam a fragmentar-se a grande velocidade e que, nos dias de semana, os portugueses passam o dobro das horas na Internet (cinco horas) do que do ecrã de televisão (duas horas e meia).
O novo e mais verdadeiro retrato do consumo de televisão que está a emergir revela-nos que a caixa que mudou o Mundo já não é a determinante no sistema de constituição de opinião pública - e confirma o fracasso da estratégia da RTP de, apesar do seu duplo financiamento (público, do nosso bolso, e privado, dos anunciantes), teimar em apostar na luta pelas audiências imitando a natureza e conceito dos canais privados e generalistas, em vez de construir uma identidade e personalidade própria.
Jorge Fiel
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Sou careca. É de família. O meu pai era calvo. E o meu io não é exatamente um Beatle. Há uma dúzia de anos, ao reparar que em vez de ficarem brancos os meus cabelos caíam, desistindo da vida, jurei que nunca seria daqueles carecas envergonhados que recorrem a complicadas obras de engenharia para encobrir as misérias.
Sempre me incomodaram as vãs tentativas de mascarar um crânio calvo usando um único e enorme cabelo (que às vezes suspeito ter origem no sovaco) que se desenvolve em infinitas circunvalações que só uma poderosa laca pode manter intactas e coladas a um couro cabeludo desprovido de cabelo.
No âmbito desta decisão de ostentar uma política capilar de verdade, comprei uma máquina de cortar o cabelo à escovinha, Philishave HQ C241, que ainda se mantém ao serviço desbastando, de 15 em 15 dias, os cabelos remanescentes.
Sempre que me falam em dinheiro bem gasto, vêm-me logo à cabeça os seis contos (cerca de 30 euros) investidos na boa e velha Philishave que me pouparam mais de 300 idas ao barbeiro (minhas e dos meus filhos Pedro e João) - mas também o pornográfico desperdício de dinheiro pelos nossos governos.
A apertada curva em que fomos apanhados deve-se essencialmente ao facto de termos malbaratado a chuva de dinheiro da UE, que beneficiou capitalistas sem capital, empresários de água doce que vivem e prosperam à custa de jeitos, favores e influências - em vez de ser aplicado a financiar empreendedores que não temem o risco e as exigências das apostas de longo prazo.
O conúbio de interesses e a partilha de despojos elevaram os serviços e a construção à condição de favoritos do regime, como o demonstram os dados do Banco de Portugal - em cada cinco euros de crédito concedido, 3,5 euros foram para a construção, habitação, imobiliário e obras públicas, e apenas 30 cêntimos para o setor transformador - e a vergonhosa derrapagem das obras da Parque Escolar, em que cada escola custou cinco vezes mais que o previsto.
O dinheiro de Bruxelas foi desperdiçado em áreas não produtivas, com destaque para infraestruturas (os 386 milhões gastos na A32, que está às moscas, são o exemplo mais recente), em vez de ser investido no setor transformador.
Desde a entrada na CEE, os governos PS e PSD construíram uma sociedade cada vez mais desigual na distribuição de riqueza, com o Poder Político, Económico e Administrativo cada vez mais concentrado na capital, e diferenças abissais de desenvolvimento entre as várias parcelas de um país falido.
Não temos muito tempo para arrepiar caminho. Neste contrarrelógio, gastar bem significa corrigir os desequilíbrios regionais e investir os escassos recursos que nos restam no apoio à exportação, apostando na produção de bens transacionáveis, em energias limpas e numa rede eficaz de transportes públicos. Tudo numa lógica low cost, sem luxos, nem desperdícios.
Jorge Fiel
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Vou morrer. Só não sei quando, nem como, sabe-se lá se de uma maneira tão prosaica e inopinada como a falecida colega Marie Colvin, a repórter de guerra do "Sunday Times" que usava uma pala à Moshe Dayan sobre o olho esquerdo e foi desta para melhor a tentar recuperar os sapatos durante um bombardeamento das forças do regime sírio ao centro de Imprensa de Homs.
O Grande Criador, na sua infinita bondade e sabedoria, achou por bem organizar a nossa vida como um thriller, ou seja cheia de suspense e de imprevisto relativamente ao momento do passamento.
Nós, tal como as empresas, nascemos, crescemos, amadurecemos e morremos, sendo que a duração do ciclo da vida se prende não apenas com fatores subjetivos, que podemos gerir, mas também com fatores objetivos, que nos escapam ao controlo - e nos podem levar a perecermos subitamente, vítimas de doença mortal, como um cancro letal, para o ser humano, ou da invenção do computador pessoal, para o fabricante de máquinas de escrever.
Pessoas e empresas podem viver cada dia como se fosse o último, como se não houvesse amanhã, sacrificando a longevidade no altar do prazer e lucro imediatos. Ou podem poupar-se, optando por uma gestão prudente de corpo, alma e recursos, reinvestindo em vez de estar sempre a distribuir pingues dividendos.
Podemos ter uma vida mais longa ou mais breve, mas ninguém, pessoas ou empresa, logrará escapar à Grande Ceifeira. É à luz desta inevitabilidade que temos de pensar a evolução das falências.
Apesar de estar em curso um violento ajustamento das nossas vidas e costumes, a subida das falências acusada pelas estatísticas é relativamente modesta, situando-se em cerca de 2% do universo total de empresas, enquanto que a média nos países desenvolvidos ronda os 8% por ano.
Esta discrepância significa que as 4731 falências registadas em 2011, apesar de serem mais 14% que em 2010, não são necessariamente um motivo de preocupação. O que é dramático é que a lentidão da justiça esteja a retardar o processo natural de regeneração do tecido económico e a atrapalhar o normal funcionamento do mercado, prejudicando concorrentes, fornecedores, credores e trabalhadores (os da Nórdica das Caxinas demoraram mais de 12 anos a receber as indemnizações a que tinham direito).
Aproveito esta reflexão sobre falências para chamar a atenção para as oportunidades de negócio na indústria da morte, um setor onde a procura é superior à oferta (a escassez de crematórios tem obrigado à deslocação até à Figueira da Foz de cadáveres nortenhos para serem incinerados) e o risco é quase nulo.
Só na ficção de Saramago (o magistral "Intermitências da morte") é que as pessoas deixam de morrer. Na vida real, com o envelhecimento da população, estão a cair como tordos.
Jorge Fiel
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A Manuela e o Luís, um casal de amigos nossos de Lisboa, já tinham as ideias bastante arrumadas quando chegamos, ligeiramente atrasados, para jantar, na Cozinha do Manel. Pareceu-nos bem a ideia de partilharmos tripas e rojões, tanto mais que a seguir, para ajudar a digestão, íamos dar um grande passeio a pé pela Baixa, a espreitar a movida (era sexta-feira). Pensei no Duorum, do Zé Maria Soares Franco (ex-Barca Velha), quando me deram a tarefa da escolha do vinho, condicionada a tinto do Douro.
"E que tal se trouxesse um pratinho de tripas para cada um e depois, em vez dos rojões, viesse um galo espetacular com arroz no forno, que não está na lista?", contrapropôs o Zé António que, simpático e solícito como sempre, fez questão de pessoalmente tomar conta dos pedidos.
O frango, XXL (as sobras alimentaram quatro bocas em minha casa ao almoço do dia seguinte), estava realmente delicioso, tal como o Vallado ("Anda muito bom", recomendou o Zé António) que se mostrou à altura dos acontecimentos.
Recordei este jantar memorável a propósito de um artigo, publicado na "Nature", onde se defende a tese de que as nossas escolhas não são tão livres como parecem. Baseado em experiências concretas, o neurocientista John-Dylan Haynes conclui que em 60% a 80% das situações é possível prever ntecipadamente o que vamos escolher.
Os progressos neste domínio têm sido muito bem aproveitados pelas marcas para convencerem os consumidores - e reforçaram a componente científica do marketing e a publicidade. Nestes tempos do bombardeamento cirúrgico, seria imediatamente despedido quem se atrevesse a repetir uma das mais clássicas frases de Henry Ford: "Sei que metade da publicidade que faço é inútil. Só não sei qual é essa metade".
Nascida no terreno da filosofia, a questão da liberdade de escolha tem de ser reavaliada à luz dos avanços das neurociências e não pode ser encarada como um problema menor.
Há escolhas condicionadas mas inevitáveis. Ninguém, no seu perfeito juízo, teima em encomendar a dourada se o dono do restaurante o desaconselha ("Não está em condições"), ou recusa a sua sugestão de ir pelo rodovalho ("Está fresquíssimo. Foi o meu almoço").
Há escolhas facilmente previsíveis. Como sabe que eu nunca comi coelho, a Isabel é capaz de prever, com 100% de certeza, a minha decisão se me der a escolher entre atum de cebolada e coelho à caçador.
A questão da liberdade de escolha afeta não só as pequenas coisas do nosso quotidiano mas também as coisas grandes da política. Como cidadão e eleitor sinto-me como, há um século, os clientes do Ford T, que podiam escolher a cor preferida para o seu automóvel, contanto que fosse a preta. Não havia mais nenhuma disponível.
Qual é a liberdade que temos de escolher quem nos governa, se na realidade só podemos optar entre o atum de cebolada do PS e o coelho à caçador do PSD? A liberdade de escolha é uma treta. Porque aquilo que me apetece mesmo não é nem atum nem coelho, mas sim pataniscas de bacalhau. Ou então bacalhau à Dilma.
Jorge Fiel
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O Porto é a minha religião. O Porto cidade/região e o Porto clube, de que não me posso gabar de ter envergado a camisola pois quando tive a honra de o representar o fiz em tronco nu, vestido apenas com uns Speedos azuis e brancos - na minha adolescência fui atleta (medíocre, para grande pena minha) de natação do FCP, secção dirigida à época por um jovem engenheiro chamado Belmiro, que era a menina dos olhos do presidente Afonso Pinto de Magalhães.
Nesta minha dupla qualidade de portuense e portista, o Boavista sempre me mereceu sentimentos contraditórios. Tem coisas boas, como as camisolas (além de originais são bonitas) e o Bessa, um estádio à inglesa, adequado às raízes de um clube fundado pelos britânicos da antiga fábrica Graham.
Tem, porém, coisas menos boas, como ter servido de biombo onde se abrigaram portuenses de confissão benfiquista ou sportinguista, o que conferiu ao Boavista a fama de ser um clube de conveniência.
O facto de Valentim Loureiro, o mais provável pai do Boavistão, ser sportinguista, foi uma fatalidade suplementar que ajudou a colar ao clube a imagem de ser uma espécie de segunda escolha ou prémio de consolação.
Feito o desabafo, declaro acreditar sinceramente que os anos de ouro dos axadrezados, no dobrar do século - em que além de terem sido campeões nacionais foram passageiros frequentes dos 2.o e 3.oº lugares da tabela, botaram figura na Liga dos Campeões e alcançaram as meias-finais da Taça UEFA - , tenham ajudado o clube a definitivamente deitar corpo, cimentando identidade e apetrechando-se com clientela própria de apoiantes em regime de exclusividade.
O drama foi que os suspeitos e invejosos do costume (a saber, os donos da bola no tempo da Outra Senhora) não perdoaram o grito do Ipiranga do Boavista e ficaram nervosos com a emergência a Norte de mais um grande. E assim, há quatro anos, o Boavista foi compulsivamente empurrado para uma injusta descida aos infernos, como dano colateral da conspiração para arrumar o F. C. Porto, montada por quem tentava desesperadamente obter na secretaria o que era incompetente para conseguir no relvado. Ou seja, quem se lixou foi o mexilhão, como bem diz o povo na sua imensa sabedoria.
O tempo tem vindo a provar que foram de pólvora seca todos os tiros furiosamente disparados pela dupla Mizé Morgado (realizadora do "Apito Dourado") e Ricardo Costa (encenador do "Apito Final"), os organizadores de uma série lamentável de fiascos e derrotas.
Nesta semana, em que o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa declarou ilegal a reunião fantasma do Conselho de Justiça da FPF que despromoveu o Boavista, todas as pessoas de bem devem juntar a sua voz ao coro que exige justiça para o Boavista.
Queremos as camisolas axadrezadas de volta à primeira Liga. Até isso acontecer, somos todos boavisteiros! Justiça para o Boavista!
Jorge Fiel
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