A troika só cá está há pouco mais de um ano, mas acho que quase todos nós já nos começámos a habituar a esta nova normalidade, em que o emprego passou a ser um bem precioso, escasso e irremediavelmente precário, recebemos menos, os bancos deixaram de nos querer impingir dinheiro e passaram a interessar-se pela nossa poupança, e pagamos mais pelos bens (por cortesia dos aumentos do IVA) e serviços, como a eletricidade, água, transportes, educação, saúde e comunicações, etc.
O grande trambolhão do consumo interno privado - que registou, em 2011 , a maior queda desde que há estatísticas e continua a cair - é a prova dos nove de que as famílias portuguesas se estão a ajustar e a começar a entender, se bem que à força (se calhar não não podia ser de outra maneira), que o importante não é aquilo que temos, mas antes aquilo que somos.
Eu próprio já despi os hábitos de consumo desenfreado, ganhos nos tempos do dinheiro fácil e barato, em que fui acumulando furiosamente livros que não sei quando vou conseguir ler e discos que não sei quando vou conseguir ouvir, em regime de dedicação exclusiva.
A vida ensinou-me que o mais importante não é a propriedade das coisas, mas antes o seu usufruto. E até estou, confesso-vos, um bocadinho orgulhoso com esta minha capacidade de adaptação a um novo normal, onde os nossos hábitos em relação às despesas contam mais que o salário.
O problema é que o Governo está bastante atrasado em relação a nós neste esforço de ajustamento. Não dá mostras sérias de ter percebido que os hábitos do Estado em relação às suas despesas têm de contar mais que o esforço desesperado para meter a mão nos nossos bolsos na vã tentativa de aumentar as receitas fiscais.
Os empresários privados já compreenderam que o luxo de manter empregados com mau desempenho é uma coisa do passado. O milhão de desempregados é a verdade de sangue que documenta esta compreensão, que lamentavelmente ainda não foi realmente assumida por um Governo que ainda não deu sinais de saber o que há-de fazer para eliminar os grotescos passivos das empresas públicas de transportes e emagrecer um Estado balofo e ineficiente que parece não saber viver sem gerar enorme desperdício.
Eu sei perfeitamente que pensar é fácil, agir é difícil - e agir em conformidade com o que pensamos ainda é mais difícil. Mas é indispensável regressarmos aos princípios básicos. Deve ser o Governo a trabalhar para os cidadãos e não os cidadãos a trabalhar para o Governo. E os cidadãos têm de perceber que o Estado não dá nada, apenas distribui o que recebe - e tem de reduzir drasticamente as comissões que cobra para alimentar um aparelho enxameado por sucessivas camadas de filhos das fábricas partidárias.
O Governo está a ficar para trás e infelizmente nós não podemos dar- nos a esse luxo.
Jorge Fiel
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“Hey Jude" está muito longe de ser uma das minhas canções favoritas dos Beatles. As minhas preferências neste domínio têm variado, com a idade e os humores do momento. Agora estou numa fase em que me apetece ouvir as canções de George Harrison, como "While my guitar gently weeps" (White Album) ou "Here comes the sun" e "Something" (ambas do Abbey Road).
Claro que estou sempre com disposição para ouvir todas as músicas do Sgt Peppers. Mas se me perguntarem neste preciso momento qual é, para mim, a melhor canção dos Beatles, o mais certo era eu responder a "Eleonor Rigby", uma balada curta (2m03s), triste e enigmática, que antes de constar do álbum Revolver (que o Miguel Esteves Cardoso considera o melhor de todos) foi o lado B do single Yelow Submarine, uma canção divertida mas simplória, como sempre foi o seu autor, Ringo Starr, incontestadamente o menos dotado dos Beatles.
Amar "Eleonor Rigby" (atenção que não sou o único, Bill Clinton também a elegeu como a melhor dos Beatles) não me tolda o espírito ao ponto de achar que Paul McCartney devia ter escolhido essa canção estupenda para o encerramento da abertura dos Jogos. Um hino à solidão não seria a música adequada para ser o fecho da abóbada de uma cerimónia épica, de grande arrebatamento e muito fervor patriótico.
No Outono de 1968, "Hey Jude" esteve nove semanas no top britânico. Single mais vendido dos Beatles, foi eleito pela Rolling Stone a oitava melhor canção de todos os tempos. Mas apesar destas credenciais, depois de ter visto na televisão a cerimónia inaugural de Londres 2012 adormeci intrigado a pensar nas razões que levaram McCartney a escolher esta canção para a sua última marcante exibição em público.
Acordei convencido que ele escolheu bem. Hey Jude é uma música inspiradora, fácil de trautear (parece que não, mas o "na na na na na na Hey Jude", ajuda muito) e tem uma letra otimista, que nos convida agirmos para conseguir o que queremos ("you were made to get out and get her", ou seja, deixa-te de merdas e arrisca ser feliz) e a não baixarmos os braços face à adversidade - "take a sad song and make it better", um convite explícito a nunca desistirmos de sermos e fazermos melhor.
Mas acima de tudo, os 7 minutos e 11 segundos de duração de "Hey Jude", um single lançado numa altura em que as rádios se recusavam a passar canções que durassem mais que os canónicos três minutos, são uma enorme lição. Ensinam-nos que há momentos na vida das pessoas e das sociedades em que é preciso ousar romper com as regras estabelecidas, ter a atitude aberta de responder "E por que não?" em vez de "Não" quando nos apresentam sugestões heterodoxas - e nunca temer experimentar soluções novas e diferentes. Como nos avisou o sábio Leonardo da Vinci, não se descobrem terras novas com mapas velhos.
Jorge Fiel
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Eu sou do tempo em que o futebol era um divertimento barato. Jogava-se aos domingos à tarde, o único dia da semana livre de trabalho. Os sócios não pagavam para ir aos jogos. Os campos, tal como os comboios, dividiam-se em três classes - o peão (a pé), as superiores (a segunda classe, atrás das balizas) e as bancadas - todas com lugares expostos ao sol, ao vento e à chuva.
O futebol cresceu como uma espécie de novo ópio do povo e era o desporto favorito dos operários até que a televisão se meteu no assunto e lhe mudou a alma.
A televisão começou por aproveitar a bela campanha dos Magriços no Mundial 66 para se massificar. Milhares de famílias portuguesas aproveitaram a ocasião para comprarem o seu primeiro televisor.
Mais tarde, a explosão, um pouco por toda a Europa, de canais privados de televisão, que na sua voracidade por audiências e novas estrelas se apoderaram deste desporto, fez-se sentir em Portugal quando, em 1991, a SIC usou o futebol na campanha para que os portugueses sintonizassem o terceiro canal nos seus televisores, ao comprar os direitos para a transmissão de jogos entre F.C. Porto, Benfica e Sporting.
O futebol deixou de ser o jogo de domingo à tarde. Uma jornada em que todos os desafios se jogam ao mesmo tempo é um enorme desperdício. Por causa da televisão, passou a haver futebol à sexta à noite, ao sábado à tarde, ao sábado à noite, ao domingo ao fim da tarde, ao domingo à noite e à segunda à noite.
Ao inundarem-no de dinheiro, transformaram o futebol num negócio. O futebol ao vivo deixou de ser um espetáculo barato. Os antigos utentes do peão e da superior foram atirados para o sofá de sua casa ou a mesa de um café com Sport TV.
Agora, o futebol joga-se em estádios modernos, com lugares marcados e protegidos dos rigores dos elementos, onde as empresas alugam camarotes, ao preço de T3 com vistas para o mar, onde os convidados beberricam um copo de vinho branco enquanto apreciam a partida.
A caixa que mudou o Mundo foi a gasolina que alimentou a inflação louca que se apoderou do futebol.
Em 1980, Laurie Cunningham, a vedeta número 1 do Real Madrid, ganhava 55 salários mínimos. Hoje, Ronaldo recebe mensalmente o equivalente a 168 salários mínimos.
O futebol viciou-se nas receitas extraordinárias, em particular nas provenientes da venda dos direitos televisivos. É isso que explica a teimosa irracionalidade do Benfica em pedir 40 milhões de euros pela transmissão de 14 jogos.
O problema é que o dinheiro passou a ser um fator escasso, a publicidade está a mirrar, os patrocinadores a falir ou a apertar o cinto, os canais de televisão estão com os bolsos vazios e os Al Mansour e Abramovich já não chegam para disfarçar a crise, que inevitavelmente acabaria por chegar ao futebol. A bolha começou a rebentar. A maré começou a descer - e é só quando a maré desce que se vê quem anda a nadar nu.
Jorge Fiel
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Primeiro foi o autoclismo da casa de banho que começou a verter. Não era sempre. Tinha os seus humores. Se pressionado de determinado jeito, enchia normalmente o depósito, depois da descarga. Mas se o ativássemos de forma descuidada era capaz de ficar para ali a verter, a desperdiçar água e engrossar a conta do SMAS.
Depois foi a vez da canalização da banca da cozinha que começou a pingar e nos fez ganhar a consciência que tínhamos um problema cuja resolução não podíamos adiar mais. Pedimos ao Hélder, o vizinho arquiteto que não se importa de tratar da gestão do condomínio, se fazia o favor de nos arranjar um picheleiro.
O diagnóstico foi rápido e exigente em material. O sifão do autoclismo já dera o que tinha a dar e precisava de ser substituído, tal como a torneira e a canalização da banca. A obra afigurava-se dispendiosa, o que se confirmou: a soma de todas as parcelas da conta tinha três dígitos. De mão de obra foram 60 euros, o que dá cerca de 20 euros à hora, ou seja mais ou menos quatro vezes mais que o SNS se propõe a pagar a enfermeiros tarefeiros.
Como o meu filho mais novo, o João, que nasceu no ano 2000, está a revelar-se pouco interessado nos estudos fiquei muito seriamente a pensar que se calhar o melhor é começar a encaminhá-lo para o ensino profissional, onde pode aprender uma arte que lhe permita desembrulhar-se na vida.
É preferível ter um filho picheleiro a ganhar 20 euros à hora do que um filho advogado desempregado - ou a ganhar cinco euros à hora na caixa de um supermercado. Além de tudo, dá mais jeito.
Nem de propósito, no dia a seguir à visita do picheleiro, o nosso JN vinha confirmar a justeza das minhas ideias sobre o futuro profissional do João, ao noticiar que nas ofertas de emprego existentes no IEFP, há, em Lisboa, vagas para mecânicos a ganhar 1500 euros e para engenheiros civis com um salário de 700 euros - igual ao oferecido a um serralheiro no Marco de Canaveses.
Os dados do IEFP confirmam o enorme desajustamento entre as profissões procuradas e os profissionais que o sistema de ensino forma.
O mercado pede mecânicos, serralheiros, picheleiros, montadores de tubos e torneiros. A escola dá-lhe professores, especialistas em relações internacionais, gestores de empresas e jornalistas.
Um ano depois do bastonário dos Advogados ter apelado aos estudantes do Secundário para fugirem dos cursos de Direito, por o mercado estar saturado, não deixa de ser curioso que os dois cursos públicos com mais vagas no próximo ano letivo serem Direito de Lisboa (450 vagas) de Coimbra (330).
O que se espera do Governo, em matéria de Educação, é que, no quadro do esforço de qualificação da mão de obra nacional, use o poder que tem para conciliar a oferta e a procura. O que exige uma maior e mais séria aposta no ensino profissional.
No futuro, posso garantir, continuará a haver canos rotos, torneiras a pingar e autoclismos a verter.
Jorge Fiel
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Mal nascia, a criança era logo submetida a um rigoroso exame. Se lhe detetassem sinais de doença física ou mental (ou não fosse julgada suficientemente robusta), era pura e simplesmente eliminada. Na velha Esparta não se brincava em serviço. Os pais espancavam regularmente os filhos, com o objetivo de os tornar mais fortes. Se eles não aguentavam e morriam, o mal era deles. Desde o nascimento até à morte, os espartanos eram pertença do Estado. Rigor, frugalidade e disciplina eram a marca de água desta cidade-Estado que governou a Grécia após ter vencido Atenas nas guerras de Peloponeso. De tal forma que espartano passou a ser sinónimo de austero.
Na Grécia antiga, os espartanos não eram os únicos a menosprezar a vida humana. Na "República", Platão defende a eliminação física dos velhos, fracos e inválidos, argumentando que esse sacrifício seria proveitoso para o fortalecimento da economia e do bem-estar coletivo.
Os tempos espartanos em que vivemos exigem aos governantes que temperem com enormes doses de bom senso e respeito pela dignidade humana o urgente esforço de racionalização dos gastos públicos e de combate ao desperdício.
Se, por absurdo, os portugueses com mais de 65 anos fossem privados do acesso aos cuidados de saúde públicos, isso iria imediatamente aliviar o défice do SNS. Abreviar a vida dos idosos teria ainda efeitos benéficos para a sustentabilidade da Segurança Social e inverteria a preocupante tendência para o envelhecimento da nossa população.
Mas apesar dos tempos de austeridade em que vivemos, ninguém no seu perfeito juízo teria a lata de sugerir impedir o acesso dos mais velhos a cuidados de saúde públicos como medida tendente a diminuir o défice. E ainda bem que assim é.
Do estrito ponto de vista da racionalidade económica, as contas públicas beneficiariam se pegássemos nos 430 habitantes do Corvo e os realojássemos num empreendimento que o senhorio do dr. Relvas (o benfiquista e promotor imobiliário Vítor Santos, também conhecido por Bibi, que se celebrizou ao gabar-se que não pagava IRS) eventualmente tenha vago em Almada.
Mas apesar dos tempos espartanos em que vivemos, ninguém no seu perfeito juízo teria a lata de propor despovoar o Corvo, abandonando a ilha a ocasionais observadores de pássaros. E ainda bem que assim é.
Pena é que sob o louvável pretexto da racionalização dos serviços públicos, governantes com um fraco conhecimento da realidade do país estejam a fechar o interior norte e centro do país, transformando--o numa imensa reserva natural desabitada, que se for bem promovida internacionalmente será visitada por muitos turistas estrangeiros - já que os de Lisboa, esses continuarão a preferir passar os tempos livres nos montes alentejanos ou nas praias ou campos de golfe algarvios.
Jorge Fiel
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Como não percebo nada de automóveis, reenviei logo para o meu primo Fernando, que é um especialista neste e noutros assuntos, a lista de marcas e modelos em que eu poderia escolher o carro que o JN estava disponível para pôr ao meu serviço. Na volta do mail, veio a resposta de Cracóvia, onde o Fernando está emigrado. Se fosse para ficar com o carro, recomendava o Golf. Senão aconselhava o Opel Astra.
Escolhi o Astra. Perguntado pela cor que preferia , respondi qualquer uma menos preto, cinzento ou branco. Uma semana depois, num misto de pragmatismo e resignação, disse "venha branco" (e não me estava a referir a vinho...) quando me disseram que havia um Opel Astra branco pronto para entrega.
Acho muito triste e sintomático que as nossas ruas, estradas e praças estejam cheias de carros pretos, cinzentos e brancos - e que quase ninguém arrisque salpicar a paisagem urbana com automóveis pintados de cores alegres. O cinzentismo do parque automóvel é revelador do do receio dos proprietários e de uma sociedade deprimida.
Nem sempre foi assim. No tempo em que não havia auto-estradas e as viagens para o Algarve demoravam mais de oito horas, para matar o tempo, divertiamo-nos a apostar, tentando adivinhar de que cor seria - vermelho, azul, amarelo ou verde - o próximo carro com que nos cruzaríamos nas longas retas alentejanas. Hoje em dia reeditar esse passatempo seria, por várias razões, uma absoluta idiotice.
A coisa atingiu tal ponto que as marcas já praticamente deixaram de pintar os carros de outras cores que não os fatídicos e incontornáveis preto, cinzento e branco, pois têm de fazer grandes descontos para se livrarem deles. A minha colega Margarida tirou partido desta situação e poupou uns milhares de euros na compra de um vistoso Fiat Panda cor de laranja metalizado.
Estou em crer que este cinzentismo automóvel (e convém não esquecer a importância que o carro tem na nossa sociedade como revelador do sucesso e progressão na vida do seu proprietário) sinaliza o despertar do pessimismo e espirito de impotência face à fatalidade do destino, que afinal é a marca de água da canção nacional - "Almas vencidas, noites perdidas, sombras bizarras, na Mouraria, canta um rufia, choram guitarras, amor ciúme, dor e pecado, tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado," cantava Amália.
Ora, o pior que neste momento nos pode acontecer é deixarmo-nos embalar pelo fado e cruzar os braços - em vez de reagir.
O que é preciso é combater a depressão e animar a malta. Nem que para isso seja necessário misturar Prozac na água da torneira - e, já agora, e por que não?, adicionar também um bocado de Viagra, pois no primeiro semestre nasceram menos quatro mil bebés que no mesmo período de 2011.
Jorge Fiel
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Um amigo de Miguel Relvas encontra-o a jantar sozinho num restaurante e pergunta-lhe: "Então pá, estás a comer sozinho?". Ao que o ministro lhe responde: "Nãooooo, estou no meu jantar de curso". Esta é provavelmente a melhor anedota que recebi a propósito da turbolicenciatura. E só tive a cautela de escrever provavelmente porque também adoro aquela em que ele nos faz uma confidência: "Tive relações sexuais pela primeira vez aos 13 anos! Bem, na verdade só me masturbei, mas deram-me a equivalência".
Neste intervalo entre o final de um Euro que nos correu bem melhor do que esperávamos e as férias de verão, os desenvolvimentos picarescos da licenciatura de Relvas e a novela da contratação de Rojo pelo Benfica (e de mais uns 70 jogadores que vão desfilando pela capa dos desportivos como seus prováveis reforços) chegavam e sobravam para nos entreter até chegar a hora de irmos para a praia apanhar sol e dar uns mergulhos. Não era preciso o pessoal do Tribunal Constitucional (TC) ter-se incomodado em arranjar animação suplementar.
Eu até sou capaz de perceber que os juízes do Constitucional andassem chateados por lhes terem sacado o 13.o mês e o subsídio de férias.
Pondo-me no lugar deles, também teria ficado muito aborrecido com a degradação de imagem do tribunal provocada pela forma desajeitada como os partidos cozinharam as listas de candidatos à eleição de novos juízes pelo Parlamento, uma trapalhada que esteve meses em cartaz.
Os juízes do TC estavam mesmo precisados de fazer uma prova de vida e uma demonstração de poder - e não resistiram a esta oportunidade, apesar de se exporem à crítica de que julgaram em causa própria, já que são funcionários públicos e por isso parte interessada na matéria de saber se é ou não constitucional privar dos subsídios apenas os empregados do Estado.
Ainda não consegui entender por que é que temos tantos tribunais (Supremo Tribunal de Justiça, Tribunal Constitucional, Supremo Tribunal Administrativo, Tribunal de Contas e por aí adiante) e até desconfio que a inevitável compressão das despesas públicas passará pela supressão de alguns deles.
Mas ser capaz de compreender por que é que os juízes do Constitucional deram um murro na mesa não significa apoiar (antes pelo contrário) a decisão que obriga Vítor Gaspar a desencantar mais uns dois mil milhões de euros de receitas para o Orçamento de 2013.
Para compensar o ministro das Finanças e a generalidade dos contribuintes da maçada que lhe causaram, os juízes do TC brilhariam a grande altura se declarassem inconstitucionais os contratos ruinosos das parcerias público-privadas.
Não frequentei o curso de Direito (um dos vários em que parece que o camarada Relvas esteve inscrito), mas estou convencido que acordos secretos com os concessionários, para driblar o Tribunal de Contas, e contratos em que o risco é todo assumido pelo Estado, devem violar alguma coisa na Constituição.
Jorge Fiel
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Sabes por que é que o Salgueiros não tem basquetebol? A resposta ("Porque não se pode estar mais de três segundos no garrafão") a esta adivinha é um clássico. Ao longo do século de vida atribulada que o clube leva, os salgueiristas ganharam a fama de abusar da pinga por causa da língua afiada e maledicente dos adeptos dos clubes rivais.
Outro dos clássicos deste almanaque é afirmar ser preciso ter cadastro e uma cirrose para se poder ser um bom salgueirista , uma insinuação torpe que não resiste à confrontação com a realidade. Só para citar um exemplo, o meu amigo Augusto Santos Silva é um bom salgueirista e não só nunca esteve preso como eu era capaz de jurar que apesar dos 56 aninhos tem o fígado de um rapaz de 16 anos.
Fundado em 1911, por um grupo de catraios (um deles, o Henrique Medina, que se celebrizaria como pintor, tinha apenas dez anos), que se reuniam à luz do candeeiro 1047 na Rua da Constituição, o Salgueiros tornou-se um clube popular, mergulhando as suas raízes entre as gentes de Paranhos.
Costa Cabral, a Arca d'Água e a zona onde agora está o Polo da Asprela da Universidade do Porto foram o oxigénio que alimentou a alma de um clube que não se importou de ser tomado de ponta por Salazar ao ousar ser o único da cidade a atrever-se a ceder o seu campo para Norton de Matos, o candidato de oposição, fazer um dos mais impressionantes comícios da campanha presidencial de 1949.
Afogado em 20 milhões de euros de dívidas e vítima das trampolinices e vigarices de um presidente que não merecia, o clube de Vidal Pinheiro entrou em coma no ano em que, ironia das ironias, o país vivia a euforia do Euro 2004 e o F.C. Porto festejava uma Champions conquistada por uma equipa de sonho, cujo maestro, Deco, o Salgueiros ajudara a resgatar ao Benfica.
Com o velho estádio transformado em estação de metro, o sonho do novo campo na Arca d'Água desfeito num negócio imobiliário abortado e de contornos duvidosos, impedido de inscrever jogadores, o Salgueiros renasceu quando já ninguém dava nada por ele.
Com um novo nome (Salgueiros 08) para contornar impedimentos legais, começou uma vida nova a partir o escalão mais baixo, a II Divisão da A.F. Porto. E de então para cá, sem aventuras, com um passo firme e seguro, foi-se tornando mais forte e subindo de escalão. Na época que está prestes a iniciar-se estará de volta aos Nacionais - vai disputar a III Divisão.
Nesta curva apertada e difícil que atravessamos, ajuda muito aprendermos com exemplos luminosos de humildade e sucesso como o do Salgueiros 08.
No filme Rocky Balboa, o pugilista tinha toda a razão quando explicava ao filho que neste Mundo, que não é um mar de rosas, triunfar significa ter a capacidade de irmos encaixando os golpes fortes e traiçoeiros que a vida nos prega e continuarmos a seguir em frente. Essa é também a lição da Alma Salgueirista.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
Quando era miúdo, eu era uma peste. Logo nos primeiros dias, na Maternidade Júlio Dinis, berrava tanto e portava-me tão mal que enfermeiras e auxiliares diziam que eu era pior que o Jaburu, o que suponho era uma alusão ao temperamento irascível do homónimo avançado do F.C. Porto.
Cresci a ouvir que, às vezes, eu era pior que o tio Nica, que não conheci mas era o padrão de excelência nos domínios da maldade para a minha família do lado materno.
Com a paciência de quem, para suavizar os finais do mês lá em casa, confecionava as asas que os anjos usavam nas procissões (colando e cosendo penas brancas em moldes de papelão), a minha mãe foi-me aturando as birras e arredondando as arestas do meu feitio.
Em 1975, com 19 anos, preparava--me para deixar os estudos, após um ano de experiência fracassada no ISPA, em Lisboa, quando a minha mãe me convenceu a matricular-me em História (UP), com o argumento de que o canudo me iria ser sempre muito útil.
Foi por mérito dela que a intensa participação cívica que mantive, antes e depois do restabelecimento da democracia, não se revelou incompatível com as obrigações académicas, como sucedeu, por exemplo, com Miguel Relvas.
O meu curso teve um desfecho curioso. Nas férias grandes a seguir a ter passado para o 5.0 ano, fui surpreendido pela notícia de que a sua duração tinha minguado para quatro anos. Ainda me interroguei sobre se já estaria licenciado. Mas não. Foi providenciada uma época intercalar em janeiro para os do meu ano poderem acabar o curso sem serem apanhados pelos do ano anterior.
Não pensem que estou aborrecido por ter sido obrigado a gastar quatro anos e meio - e a fazer exames a todas as disciplinas - para ter o canudo, enquanto o Miguel Relvas resolveu o assunto num ano, na Lusófona (grande Universidade!), e o José Sócrates num par deles, na Independente (outra grandíssima Universidade).
Eu compreendo. O Relvas, além de já ter sido secretário de Estado da Administração Interna, já frequentara três cursos (Direito, Relações Internacionais e História) e cometera a proeza de completar com dez valores um cadeirão (Ciência Política e Direito Constitucional). E não nos esqueçamos que, apesar de já ter sido ministro do Ambiente, Sócrates ainda foi obrigado a marrar para o exame de Inglês Técnico.
Eu compreendo o Miguel e o Zé, apanhados sem curso a subirem na política, com toda a gente a tratá-los por doutores e engenheiros - e eles, com medo de passarem por impostores, resolverem conceder-se uma nova oportunidade e arranjarem à pressa um canudo.
Compreendo o charme de ser doutor - é por isso que trato todos os meus colegas por doutores. Só acho que a paciência com que a minha mãe me aturou e a sabedoria com que fez de mim um homem justificam plenamente que lhe atribuam, a titulo póstumo, uma licenciatura, em Ciências Pedagógico-Educativas e Teoria do Comportamento. Vou já tratar de descobrir se tenho um amigo na Lusófona, Independente ou Livre.
Jorge Fiel
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Sempre fiz questão que os meus filhos deem uma mão nas tarefas domésticas, mesmo que apenas simbólica, circunscrevendo-se ao pôr e levantar a mesa e à obrigatoriedade de depositar a roupa para lavar no respetivo cesto e não no chão do quarto ou da casa de banho.
Presumo que poucos discordarão se eu disser que os nossos queridos filhos, bem como a generalidade das crianças e jovens adolescentes, são encantadores, mas que se nascem inocentes e desprovidos de maldade, como pretende Rousseau, a verdade é que a aprendem depressa e ainda bebés de colo já estão completamente apetrechados com um vasto arsenal de truques e manhas.
A manha mais usada para se furtarem a uma tarefa não é insubordinação (ou seja a recusa formal e assumida em desempenhá-la) mas antes adiá-la, indefinidamente, sob os mais vários pretextos. Primeiro fazem de conta que não ouvem. Depois seguem-se as desculpas "estou só a acabar um trabalho", "estou só a desligar o computador", "estou na casa de banho", "primeiro tenho de ir à casa de banho" ou o curto mas demolidor "vou já".
Estas táticas - a que os advogados chamam "manobras dilatórias" e que também dão um resultadão nos tribunais como se comprova pelo facto de Isaltino continuar livre como um passarinho - são altamente eficazes, sobretudo se acompanhadas de frases, como "não stresses", ou "tem calma!!!", destinadas a elevar o nível da nossa tensão arterial e fazer-nos perder a paciência, ao ponto de desistirmos de fazer cumprir a ordem e executarmos nós mesmo uma tarefa que não nos competia.
Uma das morais desta história é que não basta a jura de que estamos dispostos a assumir um compromisso se não conseguirmos adicionar a esta manifestação de vontade - saída boca fora ou passada a escrito e assinada - a credibilidade de que o efetivamente o vamos fazer e dentro do prazo acordado. Nesta questão das dívidas, o mentiroso "pago-te amanhã" é o equivalente ao "vou já" dos filhos manhosos.
Os prazos nunca são um pormenor. Salazar sabia isso melhor do que ninguém e a prova dos nove da sua esperteza de velha raposa foram as emissões de obrigações perpétuas, que vencerão a 31 de dezembro de 9999, para financiar o défice das contas públicas nacionais entre 1940 e 1943.
O busílis é convencer os credores de que poderá ser para eles um bom negócio emprestar-nos dinheiro a um prazo muito dilatado.
Já agora que estamos a falar disso, se souberem de alguém que esteja interessado em fazer-me um empréstimo de 100 milhões de euros, a vencer a 30 de maio de 2956 (faço mil anos nesse dia), fiquem desde já a saber que estou disponível para pagar uma taxa anual líquida de 5% e não vou gastar o dinheiro mal gasto - nem tão-pouco usá-lo para bater a cláusula de rescisão do Hulk.
Jorge Fiel
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