Viver abaixo da nossa inteligência
Sou hipertenso e ando sempre com o nível do colesterol mau perigosamente encostado ao máximo aceitável. Uma porra. Apesar disso, considero- -me um tipo calmo, sem mal-entendidos com a vida, capaz de rir das minhas próprias asneiras e defeitos, que não se leva demasiadamente a sério. Sou moderadamente otimista e confiante no futuro. Não sou daqueles que olham para os dois lados antes de atravessar uma rua de sentido único.
Peço muita desculpa por vos estar a maçar com este resumo da maneira como me vejo ao espelho, mas antes de comunicar que começo a ficar intranquilo relativamente ao rumo que as coisas estão a levar no nosso país, achei importante garantir-vos que não sou daquelas pessoas excitadas e nervosas, que desatam aos berros por tudo e por nada. Pelo contrário. É preciso alguém ser muito irritante, uma sumidade na arte da arreliação, para me fazer elevar a voz e tirar o sorriso.
Estamos a viver a ressaca dolorosa dos excessos de crédito e a tentar pôr em ordem as finanças públicas depois da sua fragilidade ter sido brutalmente exposta pelo rebentar da crise financeira internacional.
Quem já alguma vez abusou do álcool sabe que no essencial há duas maneiras de aliviar o mal-estar de uma ressaca. E o caminho mais adequado e correto não é o mais fácil, que consiste em beber para restabelecer um determinado nível de álcool no sangue.
É muito chato, mas o que é válido para a ressaca dos excessos de consumo de álcool também é para a ressaca dos gastos excessivos - apesar de ser tentador e extremamente popular atenuar as dores da violenta austeridade draconiana a que estamos sujeitos.
Compreendo perfeitamente a raiva dos desempregados e reformados, dos funcionários públicos e dos trabalhadores do privado, para quem é cada vez mais duro e difícil chegar ao fim do mês, e que hoje vão sair à rua para manifestar a sua revolta e descontentamento. Não só os compreendo, como também os apoio.
Mas não posso compreender - e muito menos apoiar quem tenta capitalizar em seu proveito este justo descontentamento, apesar de ser tão (ou até mais) responsável pelo dramático aperto em que vivemos. Tanto mais que desconfio seriamente de que se estivessem no Governo não teriam outro remédio senão aplicar receitas de austeridade - talvez com mais competência e dourando melhor a pílula, mas nem disso tenho a certeza.
Começo a ficar intranquilo porque desconfio de que depois de termos vivido acima das nossas possibilidades começamos a viver abaixo da nossa inteligência.
Por isso, devemos escutar a voz do bispo do Porto, que sugere tiremos partido da sabedoria dos mais velhos, criando um Senado de Seniores que aconselho o Governo.
É já muito claro que faltam cabelos brancos que aconselhem quem manda, quer no Governo quer na Oposição, lembrando a Passos que estratégia sem tática é o caminho mais lento e difícil para se alcançar a vitória e a Seguro que tática sem estratégia não passa de ruído.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no JN