Estou quase a apanhar o Belmiro
Sempre tive a mania de saber o lugar que ocupava na sociedade. Lembro-me perfeitamente do dia em que, ainda miúdo, perguntei ao meu pai se nós éramos ricos ou pobres. Ao que ele me respondeu que nem uma coisa nem outra. Éramos remediados.
Com a catequese ainda fresca, imaginei esse nosso estado de remediados como uma espécie de purgatório, onde penitenciávamos em trânsito, a caminho do céu dos ricos ou do inferno dos pobres.
Mais tarde, já no liceu, percebi que estava errado pois a viscosidade doutrinária do Estado Novo favorecia o imobilismo social, e nem fazer 13 no Totobola ou ter comprado o vigésimo premiado garantia a entrada definitiva no clube dos ricos.
Como aos pobres, no final do mês, sobravam-lhes apenas dias, não dinheiro, e os ricos olhavam o futuro com ligeireza, a tarefa de aforrar repousava quase inteiramente em cima da nós, os remediados.
A preocupação de poupar para acudir a uma eventual aflição ficou--me tatuada no caráter, por ter sido educado nos tempos da "Outra Senhora", antes da generosidade democrática, a que o 25 de Abril abriu as portas, ter implantado um Estado Social no nosso país.
Depois de ter concluído o curso, cumprido o serviço militar obrigatório e arranjado emprego, senti--me apto a assentar vida, pelo que me casei, comecei a fazer filhos e a comprar certificados de aforro.
Nunca mais deixei de poupar, porque tive a dupla sorte de nunca me ter faltado trabalho, mesmo das três vezes em que perdi o emprego, e de ter escolhido esta profissão de jornalista, que me permitiu progredir dentro dos diferentes segmentos em que se subdivide a classe média, que é como se passaram a designar os outrora remediados.
A minha transformação de contribuinte em tanso fiscal (expressão roubada ao saudoso Leonardo Ferraz de Carvalho), consumada sem margem para dúvidas a partir de janeiro, vai obrigar-me a diminuir a quantidade de dinheiro que mensalmente ponho de lado. Mas garanto-vos que não me vai impedir de continuar a poupar, por pouco que seja.
Além de ajudar a acautelar o futuro da minha família, neste momento em que a Segurança Social treme por todos os lados, sei que poupar é a melhor maneira de ajudar o meu país, pois o dinheiro que aforramos poderá ser usado para financiar os investimentos público e privado, indispensáveis ao crescimento e à criação de emprego e riqueza, sem maltratar ainda mais as nossas já pobres contas externas.
E tentando descortinar o lado bom do assalto fiscal à mão armada, de que vamos ser vítimas todos nós, tansos fiscais, que não conseguem escapar ao IRS, chamo a atenção para o facto não negligenciável de que já estou no escalão imediatamente anterior ao de magnatas como Ricardo Salgado, Soares dos Santos ou Américo Amorim.
Estou quase a apanhar o Belmiro e a ser declarado oficialmente rico. Nada mal para um ex-remediado.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no JN