O Estado Downton Abbey
Ando viciado na Downton Abbey. Não perco um episódio desta fascinante série que mostra como em apenas um século o Mundo e a vida privada viraram do avesso. A história começa em 1912, com o naufrágio do Titanic a lançar um salpico de perturbação no invejável ramerrão da vida dos Crawley, uma família aristocrática inglesa que caminha para a falência, imperturbável e com pompa.
Downton Abbey é o castelo do Yorkshire onde os Crawley - Lord Grantham, a mulher (Cora, uma americana rica), as três filhas, e a mãe (a fabulosa professora McGonagall da saga Harry Potter) - vivem ociosa e alegremente acima das suas possibilidades.
Uma legião de criados, comandados com punho de ferro pelo mordomo Mr. Carson, permitem aos Crawley levar a vida sem mexer uma palha. A principal canseira no seu dia a dia é, quando acordam, decidirem se tomam o pequeno-almoço na cama ou descem à sala - onde lareira e candeeiros foram acesos com antecedência para tornar o ambiente confortável.
Mrs. Patmore, a cozinheira, é a minha personagem preferida do populoso andar de baixo, onde habitam a austera governanta Mrs. Hughes e um número infindável de valets, footmen, maids, motoristas e ajudantes de cozinha, que trabalham para que nada falte aos Crawley.
Lord Grantham é um inútil simpático que após ter torrado na Bolsa o dote da mulher só evitou a bancarrota porque Downton Abbey foi resgatada pela infusão da fortuna que Matthew (um primo viúvo e afastado que se tornou seu genro ao casar com Mary, a mais velha das três filhas) herdou do sogro.
Downton Abbey faz-me lembrar o Estado português, que depois de ter vivido ociosa e alegremente acima das suas possibilidades, a contratar criadagem a eito (só entre 95 e 05, engordou a folha de salários com mais 100 mil novos funcionários públicos), apenas evitou a bancarrota ao ser resgatado pela troika.
E apesar da situação ser triste, dá--me vontade de rir quando vejo o debate sobre o nosso futuro situado em termos da escolha entre um Estado social ou um Estado liberal.
As despesas com o Estado social (pensões, saúde, subsídios de desemprego, etc.) representam apenas 25% do PIB. E Portugal é o terceiro país da OCDE onde os gastos sociais menos subiram desde o início da crise.
Em saúde, mesmo antes dos cortes, investíamos apenas 7% do PIB, menos que a média da OCDE (7,5%). Idem aspas nos apoios sociais: levam 18,7% do PIB, bem abaixo da média de 20,5%. Em contrapartida, só o Chipre (que vive em estado de guerra latente) gasta mais (4,7% do PIB) que nós (4,1%) em defesa e segurança.
A alternativa não é entre um Estado social e um Estado liberal. A alternativa é entre um Estado Downton Abbey - com 1182 empresas públicas, 29 mil carros, 356 institutos públicos, 343 empresas municipais e 1.3740 instituições sentadas à mesa do Orçamento - e um Estado bem gerido. O resto é conversa.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no JN