A moral do bacalhau cozido
Parece que não, mas se espremermos as meninges, até do bacalhau cozido com batatas, couves, ovo, cebola, etc. (a cenoura e o nabo, que eu, por norma, dispenso, estão compreendidos no perímetro deste etc.), podemos aprender e tirar lições para a vida.
Das 1001 receitas para confecionar pratos de bacalhau, o cozido é provavelmente a que exige mais do peixe e menos do(a) cozinheiro(a). Cozer não requer grande arte, mas antes belas postas do lombo, de preferência altas, com um estágio mínimo de cinco meses no sal e demolhadas a preceito.
A tarefa do cozinheiro fica muito facilitada quando trabalha com matéria-prima de boa qualidade. E não me refiro apenas ao bacalhau. Se tenho nas mãos uma magnífica peça de carne, o meu papel é não a estragar. Basta temperá-la com sal, passá-la um bocado de um lado, virá-la e já está.
A criatividade do chef só é convocada quando a matéria-prima é de deficiente qualidade, o que obriga a puxar pela imaginação para apresentar um prato decente e atraente. Os franceses inventaram as natas para disfarçar o drama de uma peça de carne pouco saborosa e tão dura como a sola de um sapato. Os espanhóis abusam da cebola, tomate e alho para camuflar as misérias de um bacalhau anémico.
Nós, portugueses, para resolvermos uma refeição a partir de uma daquelas embalagens de bocados de bacalhau que estão à venda, a preços módicos, nos híper e supermercados, temos à mão uma série de recursos, como as pataniscas, os bolinhos, bacalhau à Braz, à Gomes de Sá, arroz de bacalhau, e por aí adiante - as punhetas, essa espécie de sushi à portuguesa, estão integradas no âmbito deste por aí adiante, apesar de carecerem de uma matéria-prima de qualidade irrepreensível para atingir o patamar da excelência.
O grande problema, neste plano inclinado em que vivemos, é que a uma matéria de qualidade mais do que deficiente se junta um cozinheiro pouco imaginativo que teima em tentar aplicar uma receita que não agrada a ninguém.
Tudo tem uma moral. É só preciso encontrá-la. Em abril de 1985, a Coca Cola surpreendeu o Mundo ao anunciar uma nova receita para o refrigerante mais vendido em todo o Mundo. O problema foi que o sabor mais doce que os consumidores tinham adorado nos testes acabou por ser liminarmente rejeitado no mundo real. Ao fim de três meses, a Administração da multinacional teve a inteligência e flexibilidade para reintroduzir no mercado a Coca Cola clássica. E só precisou de mais alguns meses para deixar de produzir a New Coke.
Espero que o chef Passos Coelho tenha a inteligência, flexibilidade e sabedoria necessárias - que já nos deu a ideia de ter ao recuar no dossiê TSU - para mudar rapidamente de receita. A matéria-prima é fraca, pelo que o sucesso do prato depende muito da sua capacidade e audácia.
A ver se daqui a um ano já não vivemos com esta sensação de vazio em tudo igual à que eu sentia no final do Natal quando era miúdo e ajudava a minha mãe a apanhar o papel dos presentes abandonado e espalhado debaixo da árvore.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no JN