É preciso ter boca boca
Aproveitei as folgas de 5.ª e 6.ª para uma escapada a Santiago de Compostela, que correu muito bem, pois no segundo dia não choveu e, ainda por cima, vi o futuro - bênçãos que só podem resultar da bondade do apóstolo, talvez uma maneira dele me retribuir a visita ao seu túmulo, na cripta da catedral, e o abraço que dei à sua figura, que domina o altar-mor.
Comecei a ver o futuro logo na 5.ª, não nas folhas de chá, nem na bola de cristal, mas numa gasolineira da Repsol, na pessoa da trintona com rabo de cavalo que sozinha assegurava todo o expediente - atestava o depósito, depois ia até ao interior do posto receber o pagamento, antes de voltar à bomba para atender o cliente seguinte - , sempre com um sorriso nos lábios.
Engracei logo com a Susana, a rapariga da receção do hotel Altair, pelo despacho com que solucionou as minhas duas preocupações do momento. Assinalou no mapa o local onde estávamos e riscou com esferográfica o trajeto mais curto até ao parque de estacionamento La Salle (vizinho do Centro Galego de Arte Contemporânea, projetado por Siza), onde - acrescentou -, com o carimbo do hotel no bilhete do parque, eu beneficiaria de um desconto de três euros (de 12 para nove euros) na tarifa diária, se pagasse ao guarda e não na máquina. E não hesitou um segundo quando lhe perguntei pela melhor livraria de Santiago. Pegou no mapa, fez uma cruz e escreveu Follas Novas, onde comprei um guia de Santiago, uma História de Espanha e três livros de Vasquez Montalban, a biografia da Pasionaria e duas aventuras do Pepe Carvalho.
Na manhã seguinte, lá estava a Susana de volta, com ar divertido, a dar-nos à escolha café, chocolate ou chá, bem como croissants ou "tostadas", e a trazer o sumo de laranja e o resto dos pedidos, depois de os ter confecionado à nossa vista, na cozinha ao fundo da sala do pequeno-almoço.
Na hora do regresso, o gabinete do guarda do parque de estacionamento estava deserto, apesar da janela aberta, indiciava a primeira mancha na eficiência galega.
Começava a desesperar quando reparei num papel colado no vidro onde estava escrito "timbre" e apontava para a campainha. Toquei e o guarda apareceu logo, de vassoura e apanhador, muito simpático, a pedir desculpa, "andava nas limpezas".
A escapada a Santiago correu bem. Os mexilhões ao vapor do Gato Negro e o pulpo à feira da Maria Castaña estavam divinos. E que bem que sabe descansar das voltas pelo Casco Velho nos sofás do Café Casino, na rua do Vilar.
Mas acima de tudo foi muito bom ter visto o futuro e confirmado que os maquinistas da CP e os trabalhadores do Metro de Lisboa (só para citar dois exemplos) são uma espécie de amish, parados no tempo e prisioneiros do passado.
A trintona da Repsol, a Susana e o guarda do parking La Salle ensinam-nos que neste século XXI é imprescindível ter boa boca.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no JN