O envelope e a mala cheios de notas
Um envelope com dinheiro. A olhómetro, diria que tinha uns 30 milímetros de espessura. As notas são muito finas, mas não faço a mínima ideia de quantas seriam. Se fossem todas do valor máximo em circulação à época (cinco contos) poderia estar dentro do envelope o equivalente a dois ou três salários.
Estas contas, fi-las depois. Na altura, nem sequer me passou pela cabeça tocar no envelope que me puseram à frente, acompanhado da legenda: era uma forma de agradecer a cobertura noticiosa que eu fizera de um caso.
Apesar de embaraçado, penso que consegui explicar com clareza as razões da recusa do envelope. Não só já era pago pelo meu jornal para fazer notícias como as referidas, como ainda por cima eu é que estava grato ao meu candidato frustrado a benfeitor por me ter fornecido, em exclusivo informações, verdadeiras e relevantes, sobre um caso palpitante.
Rematei a conversa com um conselho – “Os jornalistas comprem-se com notícias” - e sossegando o homem do envelope com a promessa de que eu não faria cerimónia se um dia precisasse de um favor dele. Até agora não precisei.
Num país que acaba de dar um trambolhão de quatro lugares no ranking dos países menos corruptos elaborada anualmente pela Transparency International (caímos para o 19º lugar na Europa e 32º entre os 180 países analisados), se calhar não é muito lisonjeiro para mim o episódio do envelope tenha sido a coisa mais parecida com uma tentativa de corrupção de que fui alvo ao longo de 30 anos como jornalista.
Com toda a certeza teria tido muitas oportunidades para me deixar corromper se fosse presidente de Câmara e tivesse o toque de Midas de transformar um terreno que só servia para plantar batatas, comprado por um milhão de euros pelo meu filho, o meu vice-presidente e o meu advogado, numa peça imobiliária sexy e com capacidade para ser uma estação de recolha de autocarros, ao ponto de ser vendida, um ano depois, por quatro milhões de euros.
Teria oportunidade para enriquecer ilicitamente se fosse funcionário da Segurança Social e o sistema fosse (como é) vulnerável ao ponto de eu poder vender, por conta própria, anos de descontos para a reforma, à razão de 500 euros cada.
Não estou a lamentar-me. Apenas gostaria de dar uma ajuda para que todos pudessem ser como eu, de modo a que Portugal suba no ranking da Transparency International, aproximando-se da Dinamarca (a líder mundial) e distanciando-nos de Angola e Guiné-Bissau, que partilham o 158º lugar.
Na sua sabedora, o povo diz que a ocasião faz o ladrão. Deve ter razão. O que ser dizer que em vez do parto burocrático do Conselho de Prevenção da Corrupção, seria mais eficaz exterminar as ocasiões – e não criá-las. Legalizar de novo o financiamento dos partidos com malas de notas não é um passo no bom sentido.
As pessoas são como a água, que por norma é liquida, mas em circunstâncias extremas pode transformar-se em vapor ou gelo. Por isso o mais avisado é poupá-las às circunstâncias extremas.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias