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Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Bússola

A Bússola nunca se engana, aponta sempre para o Norte.

Laurentina Gomes

Laurentina Gomes, 45 anos, é sócia e administradora do grupo Listopsis, que tem origem no departamento da Hoescht onde ela começou a trabalhar no armazém. Reconhece que foi uma grande passada aventurar-se a passar de empregada a patroa. “Sai-se de uma zona de conforto. Mas o atletismo tinha-me ajudado a fortalecer a personalidade e a ter a confiança, persistência e motivação extra que são indispensáveis para ultrapassar as dificuldades”, explica a ex-fundista do Mem Martins e do Campolide, que nunca na vida desistiu: “Sempre levei muito a sério tudo em que me meto. Sair da caminha ainda noite e calçar os ténis molhados para ir correr, não é para qualquer um. O que se aprende no desporto é a ser competitivo e ambicioso, a querer ganhar e fazer sempre mais e melhor”

 

Uma iogurteira. Por junto e atacado, uma iogurteira foi a única coisa simultaneamente útil e tangível que ela ganhou durante as duas épocas (82/83 e 83/84) em que disputou, ao serviço do Mem Martins e do Campolide muitas dezenas de provas de estrada e corta mato.

Após alguns anos em actividade, a iogurteira avariou e foi parar ao lixo. Ficaram as três ou quatro dúzias de taças e medalhas que Laurentina guarda no gabinete em Benfica, onde gere o grupo Listopsis, um grupo que fornece soluções, conselho e equipamentos na área da informação e impressão,  facturando 10,5 milhões de euros e empregando 70 pessoas.

O seu hall of fame privado partilha a mesma parede com as distinções acumuladas pela empresa (os três anos em que foi PME Excelência, as certificações de qualidade, as placas de PME Líder, etc) e ainda com fotografias que documentam diversas etapas da vida dos seus mais valiosos troféus, os três filhos: a Cláudia, 19 anos, que estuda Gestão na Católica (quer trabalhar em Hotelaria e Turismo) e dois gémeos, o Guilherme e o Miguel, que apesar dos 13 anos se interessam de uma forma muito apaixonada por tudo quanto diga respeito à política nacional e internacional.

“O que de mais importante trouxe do atletismo para a vida foi a resistência, a capacidade de trabalho e o querer estar sempre a superar-me. Mantenho essa competitividade ao longo do meu dia de trabalho em que compito comigo própria para conseguir fazer tudo quanto planeei”, afirma Laurentina - Tina para os amigos.

Naquele início da década de 80, Portugal corrigia os excessos do pós 25 de Abril e preparava-se para dar um grande salto em frente para o futuro do país: a adesão à CEE. No atletismo, a prata de Carlos Lopes nos dez mil metros nos Jogos de Montreal, pré-anunciava um período de ouro para o fundo e meio nacionais.

Tina nasceu em 1965 no Hospital de Sintra, a segunda de quatro filhos (das quais todas as três raparigas praticaram atletismo), do matrimónio entre uma auxiliar de educação e um trabalhador de ferro para a construção civil.

Cresceu feliz em Algueirão, num ambiente semi-rural, habituada a brincar na rua, explorar as redondezas em grandes passeios de bicicleta, e a jogar futebol ou râguebi com os miúdos da vizinhança. “Era um bocado traquinas”, reconhece Tina, que recriava com os seus amigalhaços os ambientes e aventuras dos Cinco e dos Sete, inventadas por Enid Blyton e que ela devorava em casa. Como é óbvio, não descansaram enquanto não construíram uma casa no cimo de uma árvore.

Filha de um benfiquista ferrenho, era fã de desporto, gostava de futebol e até simpatizava com o clube da Luz. “Mas não se esqueça de dizer que desde que, há dois anos e meio, compramos a CVCIC no Porto, passei a interessar-me também pelo FC Porto”, pede Tina, que guarda da infância aquele ar e modos de miúda espevitada que nunca desperdiça uma boa oportunidade de ganhar dinheiro.

Aos onze anos, andava ela na escola das Mercês, o atletismo passou a ser a sua modalidade preferida. O clique deu-se quando viu na televisão o sportinguista Carlos Lopes ganhar o Mundial de Corta-Mato.

O fascínio por Lopes e por Rosa Mota, com quem se cruzaria em 1983 num Nacional de Corta Mota, em que ela ainda alinhou como júnior, empurram-na para o atletismo, onde debutou com 16 anos no Mem Martins o clube da sua terra.

Mal a viu, o treinador, o sr Medeiros, apostou logo nela. Era pequena (1m56) e magrinha (46 kg), ou seja tinha as características físicas ideias para ser uma boa fundista. E ainda por cima era aplicada. “Sempre fui muito persistente. Nunca desisti”.

Treinava todos os dias, nunca menos de uma hora e meia, correndo ao chuva e sol, por essas estradas, montes e vales, sempre com o Carocha do sr Medeiros atrás a controlar e a dar indicações.  

A sua enorme determinação e resistência levaram o treinador a inscrevê-la numa prova de 30 km de estrada, entre o Guincho e Lisboa, onde conseguiu aquela que foi provavelmente a mais retumbante vitória da curta carreira no atletismo.

“Gostava mais de estrada. No corta-mato os percursos eram tão difíceis que muitas vezes até os ténis saíam dos pés”, recorda Tina, que após entrar para o ISCPSP, onde se licenciaria em Gestão, trocou o Mem Martins pelo Campolide, pois assim podia treinar na pista do CDUL em pista. Tinha de acordar em Sintra às cinco horas da manhã, para poder ir treinar antes das aulas, mas era recompensada no final pelo luxo de um banho quente. 

Naquela altura, o atletismo tornava-se de dia para dia mais popular e, num avant la lettre do profissionalismo que as vedetas já abraçavam, os organizadores das provas ofereciam electrodomésticos como prémios para atrair a inscrição dos atletas mais credenciados. Além da já referida iogurteira, Tina ganhou prémios menores como o voucher de um almoço para duas pessoas no Nuno, o mais célebre e caro restaurante das redondezas.

O atletismo acabou por indirectamente influenciar toda a sua carreira profissional, já que foi uma amiga do atletismo que a poupou, para todo o sempre, à maçada de ter de andar à procura de emprego.

“Olha que na Hoescht andam à procura de uma pessoa para a gestão de stocks”. Quando uma amiga do atletismo lhe disse isto, Tina estava a milhas de adivinhar que aquela informação iria ser decisiva para o resto da sua vida.

Foi à entrevista, entusiasmada com a perspectiva de se tornar financeiramente independente. Contrataram-na para trabalhar no DEPSI, o departamento de sistemas de informação, instalado em Benfica, que constituía uma idiossincrasia nacional da sucursal portuguesa da multinacional alemã de produtos químicos.

A trabalhar de dia e estudar de noite teve de deixar o atletismo, mas isso era um preço muito baixo a pagar por ter passado a ganhar 30 contos/mês, mais dinheiro do que a mãe - e dez vezes o valor da bolsa de estudo com que vivia.

Desde gaiata que se habituara a nunca pensar duas vezes quando lhe surgia uma boa hipótese de ganhar dinheiro. Quando andava no liceu, em Sintra, era normal passar as férias grandes como monitora em colónias de férias e outros programas camarários de animação e ocupação dos tempos livres da pequenada.

“Era boa, mas não sentia que pudesse vir a ser uma nova Rosa Mota”, explica Tina, que quando deixou de correr estava a treinar para se dedicar à maratona.

No DEPSI da Hoescht gostaram dela e não demorou até lhe passarem para as mãos uma carga de trabalhos, ao fazerem-na acumular a gestão de stocks com a da importação dos equipamentos – computadores, faxes, fotocopiadoras, etc, vindos de sítios tão diversos como Japão ou Holanda. Um trabalho árduo naqueles tempos em que as barreiras alfandegárias ainda não tinham desabado.

“As pessoas hoje não imaginam como era complicado tratar de toda aquela papelada para desalfandegar as mercadorias”, recorda Tina, que depois de acabar o curso, em 1989, viveu uma revoada de intensos acontecimentos: foi promovida a adjunta da direcção financeira, casou com um colega do marketing e comprou o seu primeiro carro, um Alfa Romeu 33 vermelho que lhe permitiu deitar para trás as viagens de comboio da linha de Sintra e os trajectos nos autocarros da Carris.

Nunca deixou de seguir o atletismo. Sempre que podia, nunca perdia uma competição nos Jogos Olímpicos, em particular as estafetas e provas de velocidade. “No fundo e meio fundo trabalha-se e sofre-se muito. Mas sempre me fascinaram as provas de velocidade e as corridas de estafeta, não só pela sua beleza estética mas também pela coordenação, espírito de equipa e grandes competências técnicas que exigem”, explica Tina, que admirava Carl Lewis e Florence Griffith-Joyner.

Em 1992, o ano zero do desarmamento alfandegário e da constituição grande mercado único, os alemães decidiram por termo à originalidade da sua filial portuguesa de vender computadores e faxes, dando ordens a Lisboa para se concentrar no core business do grupo (os produtos químicos) e por à venda o DEPSI.

Onde a maioria dos mais de cem trabalhadores da empresa viram uma ameaça, Laurentina, o marido e os directores comercial e de pós vendas identificaram uma oportunidade que agarraram com ambas as mãos, aproveitando o solavanco para se tornarem empresários ao protagonizarem  um MBO da divisão da Hoescht em que trabalhavam, que deu origem à Listopsis.

“Foi um risco, pois sai-se de uma zona de conforto. Mas o atletismo tinha-me ajudado a fortalecer a personalidade e a ter a motivação extra, confiança e persistência que são indispensáveis para ultrapassar as dificuldades”, afirma Laurentina, que passou os últimos 17 anos a construir um grupo que oferece soluções integradas e globais de sistemas de informação.

“Sempre levei muito a sério tudo em que me meto. No Inverno, quando o equipamento não secava de noite, cheguei a treinar com roupa e ténis molhados. Sair da caminha e calçar os ténis molhados para ir correr, não é para qualquer um. O que se aprende no desporto é a ser competitivo e ambicioso, a querer ganhar e fazer sempre mais e melhor ”, afirma Tina, que todos os dias, às 7h20 da manhã, entra no Solinca do Colombo para fazer 50 minutos de bicicleta e bodypump – e como não consegue deixar de competir com ela própria, está sempre a acrescentar mais peso quer na bicicleta quer nas barras.

“No desporto, continua a pensar que tenho 20 anos…”, explica esta mulher  que acredita que se aplica a tudo na vida “o princípio de que o sucesso é 20% de inspiração e 80% de trabalho, persistência e confiança”. 

Jorge Fiel

Esta matéria foi publicada hoje em O Jogo

João Dionísio

 

João Dionísio, 43 anos, é o o chief operating officer da Strat, agência de publicidade que tem em carteira marcas tão sonantes como a Super Bock, CTT, Galp e Jerónimo Martins.  Licenciado em Psicologia e especializado em Terapia Familiar, tem 1m78, um peso na casa dos três dígitos e apresenta um tão longo quanto inesperado curriculum em modalidades tão diversas como a ginástica desportiva, basquetebol, karaté, andebol, pesca e tiro. Determinação, vigor e rigor são alguns dos ensinamentos que lhe ficaram tatuados no carácter durante os 13 anos em que foi guarda redes da equipa de andebol do Olivais e Moscavide

 

 

O pior eram as boladas na cara. Mas não foi difícil perder-lhes o medo. “Isso treina-se”, explica João Dionísio, que durante os 13 anos em que defendeu a baliza da equipa de andebol do Olivais e Moscavide foi conhecido por Constantino – o seu nome do meio.

No final do treino, viravam a baliza ao contrário. Para proteger a cara, ele punha-se atrás das redes e os colegas iam disparando a bola com toda a bolina, fazendo pontaria à sua fronha. O objectivo era ele habituar-se e deixar de piscar os olhos – pela simples razão de que com os olhos fechados não conseguia impedir a bola de o atingir.

“É um clássico. Quando um guarda redes está a defender tudo, começam a tentar acertar-lhe na cara, para ver se lhe criam medo”, explica João, 43 anos, licenciado em Psicologia Social, professor na Escola de Gestão do Porto e, desde o início do ano, o chief operating officer  que está a reposicionar e reinventar a Strat, uma agência de publicidade portuguesa que  trabalha para marcas como a Super Bock, CTT, Hyundai, Robbialac, Nívea, Galp, Jerónimo Martins e Hotéis Tivoli.

Com 1m78 e um peso na casa dos três dígitos, apresenta um tão longo quanto inesperado curriculum em modalidades tão diversas como a ginástica desportiva, basquetebol, karaté, andebol, pesca e tiro.

A responsabilidade pela sua iniciação precoce no desporto foi o pai, um marceneiro natural de Abrantes que emigrou para Lisboa para trabalhar nos TLP mas que nunca deixou de polir móveis, pelo que ele cresceu no meio de um cheiro a vernizes, bioxene e cera de abelhas.

A mãe, doméstica, teve-o em casa, no Poço dos Negros, mas não demorou muito até mudarem para Moscavide, onde, aos cinco anos, o inscreveram na classe de ginástica do Atlético Clube local, porque o Joãozinho, apesar de grande para idade, era de compleição frágil e atreito a anemias.

Divertiu-se à ganância durante os cinco anos que passou a fazer arrojados mortais encarpados e ousadas cambalhotas na cama elástica. “A ginástica foi uma poderosa componente da minha formação. Aprendi a respeitar a autoridade e a lidar com as minhas imperfeições e incapacidades. Ao ser obrigado a enfrentar exercícios perigosos, ganhei auto-confiança e noção do risco. E ajudou a disciplinar-me desde cedo, pois tinha de organizar a minha vida de maneira a apresentar-me no ginásio, todas as 2ª, 3ª e 5ª feira, às seis horas, com o equipamento completo”.  

Enquanto na escola aprendia a desembrulhar-se no mundo dos números, e num atelier de pintura adestrava a mão e o olhar, no ginásio iniciava-se na noção do espectáculo e da performance. “As pessoas não falam muito disso, mas o desporto trabalha muito o ego. Começamos a gostar de ser o melhor do bairro e a ter muita gente a assistir às nossas exibições. Aprende-se a gostar de ter o pavilhão cheio no dia do Sarau”.

Aos cinco anos felizes na ginástica sucederem-se dois anos tristes no basquetebol. Ele andava na Gaspar Correia e o casting até fazia sentido, pois ele era maior que a média dos miúdos que andavam no ciclo. O problema é que era descoordenado, como todos os rapazes que aos 11/12 anos são grandes para a idade.

Após dois anos frustrantes, em que não chegou a tratar o cesto por tu, aproveitou o fantástico ecletismo do Atlético Clube de Moscavide para fazer uma incursão de três anos pelo karaté, que muito apreciou e onde chegou a cinto azul. “As artes marciais são o supra-sumo do desporto. Uma coisa muito filosófica que trabalha a nossa agilidade física e mental - e ensina a superar-nos e a controlar a intensidade da força. Gostei muito”.

João estava já no secundário, que fez com uma perna às costas na ES Vasco da Gama (“Sempre tive facilidade na escola. O rigor que trouxe do desporto ajudou muito. E estava com atenção nas aulas), quando o andebol surgiu na sua vida.

Ele não se lembra muito bem de como tudo começou. Mas a verdade é que, a páginas tantas, um grupo de amigos, que o incluía, decidiu fazer uma equipa de andebol e o Olivais e Moscavide, que não tinha essa modalidade, recebeu-os de braços abertos. Por causa do físico e da experiência (no ciclo tinha defendido a baliza da selecção da escola), o João, nome de guerra Constantino, foi para a baliza.

Sportinguista, por herança do pai, logo havia de calhar estrear-se em competições oficiais contra o clube do seu coração, que infligiu aos tenros juvenis do Olivais e Moscavide uma pesada derrota: 36-9. Estava dado o tom para a primeira época, em que perderam os jogos todos.

Na segunda temporada, as coisas começaram a endireitar-se e a primeira vitória, por 32-20, face à União Desportiva de Oeiras, ficará para todo o sempre gravada na memória de João Dionísio, tanto mais que nesse dia marcou um golo de baliza a baliza.

Os 13 anos que passou no andebol, como guarda-redes do Olivais e Moscavide, não foram sublinhados por medalhas, troféus ou retumbantes vitórias. “A nossa glória era jogar contra o Benfica, o Sporting e o Belenenses, e conseguir discutir o resultado e levantar-lhes dificuldades”, explica João que perdeu a titularidade da baliza após um par de épocas como sénior, quando o paradigma do andebol começou a mudar no nosso país.

“O andebol era uma modalidade muito democrática, em que todos tinham lugar. Os gordos iam para a baliza, os pequenos para pontas e havia pivots gordinhos, como o Hernâni, que jogava com uma enorme elegância e aparecia sempre no sítio certo. Isso mudou. Hoje no andebol são todos gigantes. Não há lugar para nem para os pequenos nem para os gordos.  Com menos de 1m80 não jogam. O Maradona e o Messi não tinham lugar no andebol”. 

Apesar de ter perdido a titularidade, jogou até ao final do curso, raramente faltando ao treino diário, entre as 20h30 e as 22h30, no pavilhão da ES Fernando Pessoa, apesar de além de estudar ter tido quase sempre trabalhos em part time.

Tinha 15 anos quando ganhou o primeiro dinheiro, fazendo, sob a supervisão do chefe Silva, o inventário completo das armas existentes na esquadra da PSP de Moscavide. Recebeu 4.500 escudos por 15 dias de trabalho. Nada mau. “Sempre fiz desporto e sempre trabalhei”, esclarece.

Nas férias grandes, foi monitor na Colónia Balnear do Século, em S. Pedro do Estoril, ocupando-se de miúdos carenciados. “Uns nunca tinham visto o mar. Outros não sabiam comer, ou seja sentar-se regularmente à mesa para tomar uma refeição. E muitos não estavam habituados a tomar banho. Aprendi a ser pai, a não dar pêssegos à noite às crianças porque senão elas ficam mal dispostas”, conta João, que tem dois filhos rapazes, o Tiago, de 13 anos (que desde os seis anos toca violino) e o mais novo com quatro.       

A mulher e mãe dos seus filhos, educadora do Ensino Especial, conheceu-a na Cruz Vermelha, onde João trabalhou durante três anos, dando cursos de adaptação a ambulância (em corporações de bombeiros e grandes empresas, como a Galp e a Caixa) enquanto frequentava a faculdade.

Medicina foi a sua primeira opção, mas ditada por razões única e exclusivamente racionais, pois garantia emprego bem pago e socialmente prestigiado no final do curso. Não entrou por umas décimas.

Psicologia foi a sua segunda e última opção. Quando acabou o curso em Psicologia Social, com uma especialização em Terapia Familiar, esperava-o trabalho com famílias disfuncionais e toxicodependentes. Não se sentiu capaz. “Aos 24 anos ninguém está preparado para fazer terapia familiar. Eu nem sequer família tinha. Tudo o que mete relacionamento humano tem de meter tempo para amadurecer. Foi mais fácil e sério seguir a paixão pela comunicação, estudar e aprender o consumo”.

Acabou o curso em Julho de 1991 e em Setembro foi estagiar para a Multivaria, empresa de estudos qualitativos de mercado, e ficou por lá. “Tenho andado a vida inteira a aplicar o que aprendi na faculdade: olhar em profundidade para as coisas e pessoas. As pessoas são a mais valia das empresas. Os negócios são pessoas. Qualquer processo de venda tem a ver com vender ideias a pessoas e quem tem as ideais são pessoas, As pessoas são o tema, claramente”.

Cinco anos depois já era partner da Multivária, onde se demorou 18 anos, até aceitar o desafio para liderar o reposicionamento da Strat, subordinado ao mote “Criatividade com Estratégia”.

No final do curso, casou-se e deixou de levar boladas na cara. Deixou de ter tempo e disponibilidade de espírito para treinar todos os dias. Acabou o Constantino. Trocou por isso a bola de andebol pela cana de pesca. Neste momento é atleta, disputando o campeonato da 1ª Divisão da Associação de Lisboa em representação do Clube Amadores de Pesca de Lisboa. E mais recentemente, por influência da mulher que é atiradora, anda entusiasmado com o Field Target, ao ponto de ser o presidente do Clube de Tiro de Campo.

Do desporto trouxe para a vida muitas lições. Faz questão de recordar uma delas, aprendida com Vitor Paiva, seccionista do andebol do Olivais e Moscavide, que ele homenageia apelidando-o “um formidável formador de caracteres”:

“Uma vez, teria eu uns 15 anos, cheguei a uma reunião sem nada nas mãos. O Vítor Paiva chamou-me de lado e ensinou-me: Nunca vás para uma reunião com as mãos a abanar; deves trazer sempre papel e caneta para demonstrar às outras pessoas que dás importância ao que elas vão dizer, ao ponto de tomar notas”.

Determinação, vigor e rigor são alguns dos ensinamentos que lhe ficaram tatuados no carácter dos 13 anos em que praticou andebol, uma modalidade em que há muito contacto físico.

“Por haver muito contacto físico permitido, ao contrário do que acontece, por exemplo, no futebol e no basquete, o andebol exige-nos um grande controlo, auto-disciplina, e termos uma noção muito exacta da nossa força. É como nas empresas, em que se somos grandes temos de ter a noção do nosso poder; e e se somos pequenos temos de ter a noção da grandeza da nossa pequenez”, concluiu João Dionísio, o homem que treinou para deixar de ter medo de levar boladas na cara.

 

Jorge Fiel

Esta matéria foi hoje publicada em O Jogo

Luis Filipe Carvalho

 Luís Filipe Carvalho, 43 anos, é sócio da ABBC e candidato a Bastonário da Ordem dos Advogados. Figura conhecida dos telespectadores, já que é visita frequente da Sic, onde comenta e explica os casos de justiça mais mediáticos, moldou o seu carácter a jogar hóquei em patins no Alverca. “Como temos de manter o domínio coordenado da patinagem e da bola, o hóquei é de uma enorme complexidade e obriga-nos a nunca parar de aprender e evoluir. É um desafio grande porque temos de estar em constante progressão e aperfeiçoamento”, afirma este sportinguista ferrenho que adora velocidade, seja ela em cima das rodas de uns patins ou de um kart, modalidade em que participa regularmente em provas de resistência

 

 

Ainda mal sabia andar de patins, mas apaixonou-se à primeira vista pela modalidade no preciso dia em que acompanhou uns colegas da escola a um treino de hóquei dos infantis do Alverca. Estávamos em 1978. Transmitido pela televisão, um Portugal-Espanha em hóquei em patins parava o país. Para ele, que acabara de fazer dez anos, Livramento era o ídolo e modelo, o mesmo que representa agora Cristiano Ronaldo para os miúdos que estão na antecâmara dessa idade dos sonhos que é a adolescência.

O jeito para o desporto, já manifestado na Primária - feita entre Luanda (onde nasceu e deixou de ser analfabeto) e Alverca (onde cresceu e se fez homem) -, nas aulas de ginástica e nos jogos de futebol de cinco (“rematava e driblava bem”), facilitou-lhe a iniciação a este desporto, disputado sobre rodas, a altas velocidades e com muito contacto físico, que lhe foi moldando o carácter.

As travagens, as viragens em velocidade e o stop and go logo começaram a deixar de ter segredos para ele. O hóquei em patins era uma modalidade de primeira linha, com enorme presença mediática, e todos os miúdos se esforçavam para copiar as habilidades que viam os Livramentos e os Júlios Rendeiros fazer na televisão.

“Como temos de manter o domínio coordenado da patinagem e da bola, o hóquei é de uma enorme complexidade e obriga-nos a nunca parar de aprender e evoluir. É um desafio grande porque temos de estar sempre em progressão e aperfeiçoamento, ao contrário de outras modalidades em que se estabiliza a partir de momento em que se atinge um determinado patamar técnico”, reflecte Luís Filipe Carvalho, 43 anos, candidato a Bastonário da Ordem dos Advogados e uma cara conhecida da maioria dos telespectadores, pois é presença frequente nos espaços informativos da SIC, onde comenta e dá opinião sobre casos de justiça.

Ao habituá-lo a estar sempre a progredir, a adaptar-se e a aguentar a dureza dos choques com os adversários, principalmente junto às tabelas, o hóquei foi uma extraordinária escola que o preparou para ser advogado, profissão com o que sonhava ser desde miúdo, movido pelo impulso quixotesco de ajudar a fazer justiça aos mais necessitados e pela pragmática vontade de resolver problemas – e confirmada durante o Secundário onde sentiu uma maior vocação para as Humanidades.

O equipamento ser caro (patins, caneleiras, coquilha, luvas, stick) era o problema maior que o hóquei em patins levantava à entrada, o que o obrigou a desenrascar-se, pois o dinheiro não abundava, nem em casa, nem no país, que estava a acordar com a ressaca da festa do 25 de Abril. Começou com equipamento emprestado por miúdos mais velhos a quem tinham deixado de lhes servir e assim que podia ia fazendo upgrades. “Os sticks fornecidos pelo clube eram fracos e partiam com muita facilidade”, recorda.

Os pais apoiaram-no sempre, apesar de estarem a refazer a vida, pois a guerra civil angolana obrigou-os a voltar a Portugal. “Foi uma saída com pressa. O meu pai ainda ficou mais um ano, a ver o aquilo dava, mas explicou-nos muito claramente que eu e minha mãe tínhamos de partir, porque Angola já não era mais um local seguro”, conta Luís Filipe, que nasceu em Luanda no ano do Maio francês e aterrou em Lisboa, em 1975, com sete anos, idade suficiente para lhe ficarem gravadas na memória as primeiras e fortes recordações do seu novo país: “Vivia-se um momento especial. Fiquei com a impressão de que reinava um enorme caos e grande desorganização, misturados com uma indisfarçável alegria. Nós tivemos de recomeçar tudo de novo, de nos virar. A minha mãe, que era funcionária pública, arranjou um lugar no Ministério da Educação. O meu pai, que estava no ramo automóvel, arrancou com outro negócio. Foi difícil”.

O pai ia levá-lo e buscá-lo aos treinos, que nos dias frios e molhados de Inverno entravam pela noite dentro. A princípio, nos infantis, treinavam apenas duas vezes por semana. Mas a frequência foi-se intensificando. E aos fins-de-semana havia sempre jogos. O Alverca era uma equipa do meio da tabela, num campeonato muito competitivo, que para além dos tradicionais Benfica e o Sporting, era disputado pelas fortíssimas equipas da Linha – Cascais, Paço de Arcos e Salesianos.

Com o número 7 nas costas, jogava sempre à frente, no lado direito do quadrado, e apesar da baliza ser pequena e os guarda redes grande, cedo se revelou um avançado goleador, dando nas vistas ao ponto de ser chamado à Selecção Nacional. “Os muitos golos que marquei são a melhor recordação que guardo dos meus tempos de hoquista. Como era difícil fazer um golo, era um momento muito electrizante, uma vibração muito especial que contagiava todos os jogadores, incluindo os que estavam no banco”, diz Luís Filipe que treinava afincadamente os remates ao ângulo e para cima do ombro de guarda redes – precisamente os de mais difícil defesa.    

Um dia, estavam a treinar ao ar livre, a chuva era tanta que o ringue ficou todo alagado, ele escorregou, caiu e sentiu-se a deslizar a uma velocidade vertiginosa com a cabeça em direcção à tabela - e não se lembra de mais nada, pois perdeu os sentidos. Ficaram todos preocupados, levaram-no ao hospital, mas não tinha sido nada de grave, apenas uma pancada. “Esta é a pior recordação que tenho do hóquei, devido à sensação de impotência de saber o que me ia acontecer mas não poder fazer nada para o evitar”.

Pendurou os patins quando entrou em Direito. “Tive muita pena. O desporto, de preferência de competição, é uma componente imprescindível na formação humana”, diz, criticando o facto de em Portugal não ser fácil praticar desporto fora do enquadramento clubístico. Está arrependido de ter deixado o hóquei, mas faltava-lhe o tempo. Teve se se aplicar para vencer o cabo dos dois primeiros anos, excessivamente maçudos e teóricos. E a partir do 3º ano começou a dar aulas, primeiro na Escola Secundária Forte da Casa, em Vila Franca de Xira, depois como monitor de Finanças Públicas na faculdade e finalmente como assistente em várias cadeiras, entre as quais Direito Comercial.

A competitividade e força de vontade aprendida nos ringues de hóquei ajudou-o a chegar até ao gabinete no 5º andar do edifício do Largo de S. Carlos, em Lisboa, ocupado pela ABBC  - a firma com mais de 50 advogados de que é sócio, sendo o C (de Carvalho) final  -  e que há cerca de um século foi habitado por Fernando Pessoa, antigo inquilino cuja memória é homenageada no átrio do prédio por um trabalho de Alexandre Farto.

A velocidade sobre rodas continua a seduzi-lo. Dantes eram as rodas dos patins. Agora são as dos karts, pelos quais se apaixonou à primeira vista (tal como tinha sido com o hóquei) há uma dúzia de anos, quando os amigos o convenceram a alinhar numa prova por equipas de endurance (24 horas) em Baltar. “Exige uma grande capacidade de resistência física, técnica, respeito pelas regras e elevadíssimos níveis de concentração porque um erro pode atirar pela água abaixo o esforço da equipa”, esclarece Luís Filipe, que regularmente participa em provas de resistência (seis, 12 ou 24 horas) por equipas, em que cada piloto faz, de cada vez, percursos máximos de 50 minutos e se atingem velocidades na ordem dos 90 km/hora.

“Teria gostado de ser piloto de corridas”, confessa o advogado, que tem no Sporting outra das suas grandes paixões, herdada do pai, que desde pequeno o levava a Alvalade. Yazalde foi o seu primeiro ídolo, mas também recorda com saudade a época extraordinária da dupla Jardel/João Pinto. A mais antiga e grata lembrança que guarda do futebol é Benfica-Sporting em que Vítor Baptista perdeu o brinco.

Luís não só não falha um jogo do Sporting, como tem uma estratégia para o futuro da equipa de futebol, que consiste em fazer uma mistura entre jovens valores oriundos da formação, com uma três/quatro futebolistas experientes, em cuja escolha não pode haver erros. “Têm de ser todos tiros no alvo, não só pela posição que ocupam em campo como também pelo exemplo que dão aos mais novos e à capacidade de liderança no balneário”, explica o candidato a Bastonário do Advogados e sócio da ABBC onde tem como colega Rogério Alves, seu amigo, sportinguista e antigo Bastonário.

“O Sporting tem um problema de equilíbrio. Aos excelentes resultados da formação é preciso agregar jogadores com mais experiência, vindos de fora, e isso não tem corrido bem. Acresce que na figura do treinador temos apostado no modelo de treinador jovem, pouco conhecido e sem curriculum. Foi assim com o José Peseiro e Paulo Bento. E volta a ser assim com o Paulo Sérgio. Eu acho que depois de este modelo se ter esgotado, em termos de liderança e de resultados, devíamos ter apostado num treinador mais velho e com mais experiência, que podia ser português, como o Manuel José, que acalmasse o turbilhão do balneário. Serei o primeiro defensor e apoiante da equipa. Mas temo que as coisas possam descarrilar se não começarmos bem a época. Não estão em causa as pessoas mas o modelo”, conclui Luís Filipe Carvalho, que guarda como pior sensação das sete épocas em que hoquista do Alverca aquela sensação de impotência que, de saber o que vai acontecer mas não poder fazer nada para o evitar, que se apoderou dele quando um dia estava a treinar ao ar livre, o ringue ficou todo alagado, ele escorregou, caiu e sentiu-se a deslizar a uma velocidade vertiginosa com a cabeça em direcção à tabela.

Jorge Fiel

Esta matéria foi hoje publicada em O Jogo

 

António Vaz Carneiro

António Vaz Carneiro, 59 anos, é fellow do American College of Physicians, editor português do British Medical Journal e o responsável pelo Centro de Estudos da Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina de Lisboa. Com a camisola às listas amarelas e pretas do XV desta faculdade, ganhou uma Taça de Portugal e foi por duas vezes vice-campeão nacional de râguebi, desporto que ele considera ter sido fundamental na sua formação. “Ajudou-me a focalizar e ensinou-me a não desistir perante as dificuldades”, afirma o professor, que agora, para se manter em forma, joga ténis no CIF e corre à beira do Tejo

 

Dois dias depois do jogo, ainda lhe saía lama dos ouvidos. Aquela meia final da Taça de Portugal em râguebi, entre Medicina e a Cuf, foi mesmo um jogo épico.

Para começar não havia balneários. “Tivemos de nos ir equipar no café”, conta Vaz Carneiro, o número 5 do XV de Medicina, acrescentando que ainda estavam todos com um bocado de sono pois o encontro estava marcado para as nove em ponto da manhã, na Outra Banda.

Depois, não há que esconder, o campo pelado, no Lavradio, não oferecia as melhores condições para a prática da modalidade e, como agravante, o S. Pedro não ajudou – ou seja, as condições atmosféricas não colaboraram.

“A lama era tanta que a meio da segunda parte o árbitro deixou de reconhecer as equipas. Apitava para parar o jogo, dirigia-se para o jogador faltoso e retirava-lhe um bocado da lama da camisola para ver se era verde ou amarela e preta”, recorda António Vaz Carneiro, 2º linha de Medicina.

Como se não bastasse o campo da batalha estar transformado num imenso lamaçal, ainda por cima havia a componente política a toldar os espíritos e elevar a tensão. Naquele pós 25 de Abril, a luta de classes estava condensada ali naquele jogo entre o David - a equipa de operários da Cuf, da 2º Divisão -  e o Golias, personificada no quinze primo-divisionário de Medicina, constituído por futuros doutores que presumivelmente tinham pela frente uma vida airada.

“Cada vez que placávamos um jogador da Cuf, chamavam-nos fascistas”, recorda o professor. Nesta versão da história, Golias ganhou a David (mas por poucos). No final do jogo, operários (e alguns - poucos – engenheiros) da Cuf e os futuros doutores, unidos pela lama que os cobria, acabaram todos juntos no café, a deitar abaixo umas cervejolas e umas fêveras, antecipando o suave clima de aggiornamento que se não demoraria muitos anos a apoderar-se da sociedade portuguesa.

“Só ao fim da tarde, quando cheguei a casa, é que pude tomar banho. E dois dias depois ainda me saia lama dos ouvidos” relembra Vaz Carneiro, 59 anos, sentado na secretária do seu gabinete na Biblioteca da Faculdade de Medicina de Lisboa, onde dirige o Centro de Estudos da Medicina Baseada na Evidência e donde avista o estádio universitário onde treinou e jogou râguebi durante os dez anos da década de 70, até partir para o outro lado do Atlântico onde se demorou seis anos, fazendo a especialidade de Medicina Interna no Mount Sinai, em Nova Iorque, e de Nefrologia na Universidade de Califórnia, em S.Francisco (mais tarde voltaria aos Estados Unidos para preparar, em Washington, o doutoramento em Cuidados Intensivos que defendeu em 1994).

Medicina ganhou na batalha da lama, mas acabou por perder a final da Taça de Portugal com o Belenenses. Dois 2º lugares no Nacional da I Divisão – uma vez atrás do Benfica (“uma equipa mais física”) e outra do CDUL (“tinham um jogo mais táctico, mais fino, e beneficiavam do seu campo de recrutamento não estar limitado aos estudantes de uma só faculdade, como nós, Agronomia, o Técnico ou Direito”) – e uma Taça de Portugal foram os momentos mais vistosos dos dez anos em que jogou, sem nunca ter sofrido uma lesão importante, apenas partiu um dedo duas vezes.

Mas o que de mais importante trouxe do râguebi, não foi a taça, os dois 2º lugares, as recordações, ou até mesmo os amigos (“creio que uns 20% dos meus amigos actuais ainda são desse tempo”), mas o que lhe ficou tatuado no carácter. António era um segunda linha, número 5 nas costas, ou seja integrava o sector da equipa a quem se pede uma enorme solidez, pois repousa nos seus largos ombros a tarefa de aguentar a estrutura. “Estamos numa zona de contacto, de muita percussão, em que é o espírito de sacrifício é fundamental”, explica.

“O râguebi é um jogo de equipa em que não há muita margem para o brilho individual. Se um tipo está a correr isolado é sinal de que a sua equipa está a jogar mal. Para se ganhar é preciso muito espírito de entreajuda e uma equipa sólida, coesa e disciplinada. Um exemplo? Com a excepção do capitão, está toda a gente proibida de falar com o árbitro. Ninguém protesta, porque se o fizer sabe que vai prejudicar a equipa. O râguebi foi fundamental na minha formação porque me ajudou a focalizar e ensinou-me a não desistir perante as dificuldades”, afirma o professor, que nunca perdia a transmissão televisiva de um jogo do Torneio dos Cinco Nações.

Sempre gostou mais do jogo francês (“ninguém agarra os franceses quando estão inspirados”), mas reconhece que os mais completos são, de longe, os All Blacks. “As equipas do Hemisfério Sul aliam um poder físico notável a apuradíssimo sentido técnico. Já do ponto de vista táctico, os ingleses são insuperáveis”, afirma, acrescentando que o seu jogador preferido era o arrière John Davies.

No seu tempo, eram 110% amadores. Não só cada um pagava e tratava do seu equipamento como, ainda por cima, contribuía com 30 escudos por mês para a caixa que financiava as deslocações da equipa. António acabou o curso em 1976, mas mesmo quando estava a fazer a periferia em Portimão, apesar de ainda não haver A2, aos fins de semana metia-se no Honda 600 em segunda mão que o pai lhe oferecera de prenda de licenciatura (que, para teve de transformar, diminuindo drasticamente a oferta de lugares de passageiros, para ele próprio caber lá dentro) e vinha por aí acima, pelas estradas nacionais, para alinhar pela equipa de Medicina, primeiro, e depois do CDUL (onde fez as suas duas épocas).

Só abrandou só nos últimos três anos, entre os 26 e os 29 anos, porque tinha de se preparar para os exigentes exames que lhe dariam acesso a fazer a especialidade e exercer a profissão de médico nos Estados Unidos. “Nesta altura já sabia perfeitamente que não queria ser médico de cuidados primários. Tinha a preocupação de adquirir uma forte formação científica pois queria fazer medicina académica, ser médico hospitalar e dedicar uma boa parte do meu tempo à investigação”.

Filho de um engenheiro de obras públicas, que chegou a ser director geral de Saneamento, viveu até aos dez anos em Vila Real e ainda se demorou três anos por Aveiro, antes da família deitar âncora em Lisboa e ele acabar o liceu no Colégio Moderno. Não se lembra de ter querido outra coisa senão médico, profissão que lhe agradava porque estava convencido lhe iria proporcionar uma grande liberdade de movimentos. Viu bem a coisa.

Alto (1m87), jogou voleibol durante dois anos no secundário. Tomou pela primeira vez contacto com o râguebi em 1969, quando era caloiro de Medicina e um amigo que já jogava o convenceu a ir a um treino. Não foi um caso de amor à primeira vista. Levou umas pancadas e foi para casa a pensar se seria uma boa ideia continuar. Persistiu e com o decorrer dos treinos ficou cliente.

“De então para cá o jogo mudou muito”, garante o professor que continua a acompanhar a modalidade não só pela televisão, mas também ao vivo, pois o Joãozinho (o rapaz do casal de gémeos que teve há 11 anos) joga râguebi no CDUL e ele, na sua qualidade de pai, tem de o levar aos treinos (três vezes por semana) e aos jogos.

“Na altura, eu era alto. Agora seria o tipo mais baixo das equipas de Agronomia ou Direito. Nós éramos ensinados a girar depressa a bola para evitar o contacto. Hoje o jogo é muito mais físico, há menos espaço e por isso muito mais contacto”, diz, enquanto desfia histórias incríveis daqueles heróicos tempos em que havia dez equipas a usarem ao mesmo tempo o Estádio Universitário e em que não raro Medicina tinha de se contentar com uma cabeceira do campo (o único espaço disponível)  - e como não havia iluminação artificial, quando a noite caía o treino acabava e iam todos para casa

Quando atravessou o Atlântico Norte para aprender, viver e trabalhar nos Estados Unidos, passou do oito ao 80 ao trocar o râguebi, um desporto colectivo, pela corrida (uma das mais solitárias de todas as modalidades) e o ténis (um jogo em que não há contacto, pois os adversários estão separados por uma rede). “Quando se trabalha 100 horas por semana, os tempos livres são muito curtos”, explica, acrescentando que a grande vantagem do jogging é de poder correr sozinho e praticamente a qualquer hora e em qualquer lugar. Em Nova Iorque partilhou com dois portugueses um loft na Village e um dos seus grandes prazeres era correr aos sábados de manhã até ao Central Park, através das largas avenidas de Nova Iorque que, no início do fim de semana, até às dez horas, estão sempre muito tranquilas.

Agora continua a correr e a jogar ténis, de acordo com um programa meticulosamente estabelecido. Ao fim de semana, corre junto ao Tejo, às 3ª e 5ª aproveita a hora do almoço para bater umas bolas com os amigos no CIF, e às 4ª vai ao ginásio. A sua presença assídua nas duas corridas anuais de travessias das pontes de Lisboa está documentada pelos dorsais que decoram as vidraças das estantes do seu gabinete, convivendo alegremente com os milhares de livros e as centenas de CDs de música clássica.

Editor português do BMJ (onde publicou recentemente um artigo, com chamada de capa, que é um marco no tratamento dos diabéticos) e um dos raros não residentes nos Estados Unidos é fellow do ACP-American College of Physicians, António Vaz Carneiro faz questão de salientar o código de honra do râguebi: “Apesar de haver muito contacto, a generalidade dos jogadores respeitam as regras. Quando se anda dentro do campo, sabe-se logo quando há alguém que nos quer agredir. E nesse caso combinávamos as coisas de modo a que, da próxima vez que tivesse a bola, o jogador que estava a ter um comportamento desleal levasse com três de nós em cima. Ele percebia logo a mensagem. Era tudo tratado dentro do campo e entre nós. Não íamos fazer queixa ao árbitro”. É talvez devido a este código de honra que se diz que o futebol é um jogo de cavalheiros disputado por cavalheiros – e o râguebi é um desporto de arruaceiros praticado por cavalheiros…

Jorge Fiel

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José Bento dos Santos

 

José Bento dos Santos, 63 anos, fez fortuna como broker internacional de metais e poliu o nome a produzir, na Quinta do Monte d’Oiro, vinhos mimados com rasgados elogios da crítica. Mas a chave da sua vida é o râguebi, a modalidade onde caldeou o carácter, foi seleccionador nacional, com pouco mais de 20 anos, e campeão pelo Técnico, quer como jogador que como treinador.  “O râguebi é o desporto da minha vida. A luta no mais puro sentido do fair play. Parece que se está a jogar xadrez, só que com contacto físico”, explica este engenheiro que agora joga golfe (handicap 11), dorme pouco mas vive intensamente, e atravessou a vida a fazer aquilo que mais gosta e sabe fazer: construir equipas, seja no mundo do desporto, seja no das empresas

 

Apesar da altura (1m68) não o habilitar a ter uma palavra a dizer na luta pelas tabelas, o basquetebol foi a primeira modalidade em que brilhou, como base titular e capitão no cinco júnior do CDUL -  ao ponto de ter sido justificado uma chamada à Selecção Nacional, quando andava no Liceu Camões. Encestar era um negócio de família, pois o pai, comerciante dono de várias lojas de pronto a vestir em Lisboa, jogara no CIF, clube de que era o sócio nº2 quando partiu deste mundo.

O apoio familiar à sua carreira no basquete era tão entusiástico que o pai até subiu o tecto da garagem da casa da família em Alenquer para aí instalar uma tabela à altura regulamentar, de modo a que, nas férias, o mais velho dos seus três filhos (os outros são Luís, administrador do Santander Totta, e Maria do Céu) não perdesse a mão para os lançamentos.

Quis um daqueles acasos em que a vida fértil que, aos 15 anos, o amor de José Manuel Bento dos Santos pelo basquete desse lugar a uma tórrida e duradoura paixão pelo râguebi, que o fulminou no ano de caloiro de Engenharia Química no IST (Instituto Superior Técnico), um curso que não teve a menor das dúvidas em escolher. Como sempre se sentiu atraído pela Química, ainda antes de lhe ter borbulhas já improvisara em casa um laboratório, onde realizava experiências misturando elementos (oriundos do laboratório do liceu, que lhe chegavam à mão por cortesia de um contínuo amigo) em tubos de ensaio cravados em farmácias. “Ainda arranjei umas chatices. Um dia o carro do meu pai apareceu manchado e ele convenceu-se que tinha sido eu o culpado…”, recorda.

Como esta queda precoce pela Química foi confirmada pelos resultados dos testes psicotécnicos feitos no Instituto de Orientação Profissional, com apenas 15 anos (foi para a primária com cinco) lá estava ele a subir a escadaria do Técnico. Pouco tempo depois, entretinha-se no campo do instituto, a jogar uma futebolada com os amigos (quase todos eles vindos do Liceu Camões), enquanto, mesmo ali ao lado, António Carqueijeiro operava o milagre da ressurreição da equipa de râguebi do Técnico. E deu-se a reacção química: “Mexemos na bola, brincamos com ela  -  e aquela bola tem magnetismo”, resume.

No balneário, Carqueijeiro, antigo internacional de râguebi e ex-treinador de Direito, deixou a sua primeira impressão digital na vida de José Bento dos Santos. Carente de jogadores para reconstruir a equipa e careca de saber que os rapazes da futebolada estavam a ouvi-lo, virou-se para o seu pessoal e disse: “Vocês viram aqueles miúdos? Quando pegaram na nossa bola viu-se logo que têm jeito para o râguebi”.

Seduzidos pela bola em forma de melão, conquistados pela hábil lisonja, inscreveram-se todos (Raul Martins era um deles) no râguebi e logo na primeira época (época 63/64) triunfaram no 1º Nacional júnior, metendo no bolso os Belenenses, Sporting e Benfica e contrariando o favoritismo do CDUL. No ano seguinte, já seniores, foram campeões da 2ª Divisão e subiram à primeira.

Bento dos Santos debutou como talonador, mas nas duas épocas em que jogou como sénior jogou a médio de abertura. “Não tinha a velocidade que a posição exigia, mas compensava isso com uma grande facilidade de chuto”, auto avalia-se. A sua notável capacidade de liderança cedo o empurrou para a carreira de treinador. E na época 67/68, na ausência de Carqueijeiro, de quem era adjunto na selecção, vemo-lo com apenas 21 anos a orientar, na Tapadinha, o quinze de Portugal que galhardamente averbou uma digna derrota por 39-16 num jogo contra a poderosa França.

Treinar e dirigir, no desporto ou nas empresas, sempre foi a especialidade de Bento dos Santos. Mas antes de ser sentar no banco, o râguebi ainda lhe proporcionou o despertar de uma outra paixão – o vinho - que o acompanharia para o resto da vida e é actualmente a menina dos seus olhos. “Tive a sorte de, na minha primeira época como sénior, o Técnico ter ido a França jogar com o Bordeaux Etudiants Club. Aproveitei para visitar caves e beber alguns dos grandes vinhos da região”, conta. A vida dele nunca mais foi a mesma depois de se emocionar com um Château Lafite Rothschild ou ou Châteauneuf-du-Pape.

Como treinador, foi campeão nacional pelo Técnico (77-78) e seleccionador nacional. Como apaixonado, só uma vez não presenciou ao vivo a fase final de um Mundial. “O râguebi é o desporto da minha vida. A luta no mais puro sentido do fair play. Parece que se está a jogar xadrez, só que com contacto físico”, explica, citando de seguida Françoise Sagan: “Não é por ser violento que adoro o râguebi. É por ser um jogo inteligente”.

O râguebi é duro. Mas a vida também é dura. E como a influência da França na formação de Bento dos Santos está longe de se circunscrever aos vinhos e à cozinha, ele cita de cor o académico gaulês Jacques Laurent como argumento a favor da sua tese de que o râguebi espelha da vida: “Uma equipa de râguebi é composta por oito jogadores fortes e activos, dois ligeiros e espertos, quatro grandes e rápidos, e um último, modelo de fleuma e sangue frio, que é a proporção ideal entre os homens”.

Ainda estava a terminar o Técnico, quando o seu amigo Carqueijeiro, advogado no grupo Cuf, voltou a ter um papel decisivo na sua vida, ao subscrever a opinião do então presidente da Federação Portuguesa de Rugby, António Celeste, de recomendar aos Mello que o contratassem, argumentando que ele era “o Beckenbauer da engenharia química”.

Começou a trabalhar na metalurgia do cobre, no Barreiro, no final dos anos 60,  e não descansou enquanto não criou uma equipa de râguebi da Cuf, onde jogavam lado a lado, misturados, operários e engenheiros (como João Dotti). E, ao invés do que era normal, escalou rapidamente na hierarquia do que era na altura o mais poderoso grupo industrial português.

Um dia, tinha ele apenas 24 anos, houve um problema na fábrica. O director, José Frederico da Cunha, antigo jogador de râguebi, chamou-o e pôs-lhe em cima dos ombros a responsabilidade sobre 400 operários, quantificou-lhe objectivos em toneladas de produção de cobre e zinco. O argumento dado para a inesperada promoção foi demolidor: “Se, com essa idade, és capaz de treinar uma equipa de râguebi e ser seleccionador nacional, também és capaz de dirigir uma fábrica”. O tempo deu razão a Frederico da Cunha.

Quando, já após a turbulência do 25 de Abril e a nacionalização do grupo Cuf, passou da ferrugem para parte comercial, ele e Eduardo Catroga (à época administrador da CUF, no entretanto rebaptizada Quimigal)  resolveram criar a Quimibro, uma broker de metais, de que, no entretanto, veio a assumir o controlo e ainda mantém em actividade.

Correu o mundo. Comprava ouro, transformava cobre, transportava chumbo, vendia chumbo e zinco,. Tanto podia estar numa mina na Austrália como numa fábrica no Canadá  - ou a negociar à mesa no Tour d’ Argent em Paris. Curiosamente, a vida agitada de broker internacional de metais engraxou-lhe o sentido do gosto e o prazer pelo vinho e a comida. “A vida comercial presta-se muito a convidarmos e sermos convidados para os melhores restaurantes”, explica. Como sempre gostou de cozinhar, aproveitava todas as oportunidades para ficar até às tantas a conversar e aprender com os chefs.

Foi no negócio de metais que ouviu, da boca de um colega e amigo norte-americano, a frase que o levou a ser produtor de vinhos -  “a única commodity realmente escassez é a terra, pois só há a que existe e não cresce”. Um vizinho da casa dos pais em Alenquer tinha uma quinta que era uma jóia (“um bijou”, diz) mas estava alugada, pois o dono caíra doente. Mal o engenheiro soube que ele não estava satisfeito com o rendeiro, logo foi ter com ele fez-lhe uma proposta de compra e prometeu estimar a quinta. Foi assim que Bento dos Santos ficou proprietário dos 42 hectares da Quinta de Monte d’Oiro.

Estávamos no final dos anos 80 e ele queria fazer um vinho que não fosse apenas mais um vinho. Queria levar até ao limite toda a qualidade que o terroir lhe podia dar. Estudou os solos, experimentou as castas, nacionais e estrangeiras, até que em 1992 fez a primeira plantação. Mas só cinco anos depois, em 1997, fez o seu primeiro vinho.

A exigência compensou. Os elogios, criticas e prémios começaram a chover. Dois anos depois, o seu vinho foi eleito o melhor da Peninsula Ibérica. E não demorou até surgir uma distinção que teve tanto de grata como surpreendente. O Vinha da Nora 1999, da Quinta Monte d’Oiro, fez parte da ementa de apresentação à imprensa mundial do restaurante de Alain Ducasse em Nova Iorque.

“Não faço vinho para matar a sede, para as pessoas gostarem ou não gostarem - mas sim para viverem uma emoção, como experimentamos ao ouvir uma interpretação virtuosa das Variações Goldberg”, explica Bento dos Santos, que além de produzir vinhos excelentes, cozinhar comida requintada e ser um evangelizador do prazer e bom gosto, continua a negociar com metais (cobre, no seu essencial), a gostar de râguebi e a jogar golfe.

Ainda está apaixonado pelo râguebi, apesar de reconhecer que o profissionalismo mudou o jogo – e não necessariamente para melhor. “O campo é do mesmo tamanho, mas os jogadores correm o dobro. O espaço reduziu-se e por isso há mais choque. O mundo mudou. Hoje não seria possível ao Gareth Edwards fazer aquele que é considerado ensaio do século”, lamenta Bento dos Santos, que tem uma fabulosa colecção de livros e arte relacionada com o râguebi, onde avulta o modelo em resina de bronze de uma estátua daquele jogador galês.

O golfe é outra das prendar que o râguebi lhe deu, pois foi-lhe apresentado quando tinha 20 e tal anos e estava em Inglaterra a tirar um curso de treinador – quando acabavam as aulas, o pessoal ia todo dar umas tacadas. Ele ficou fã, e nunca mais deixou de jogar, se bem que variando que com a intensidade e frequência a vogar ao sabor do tempo que a sua vdia cheia lhe deixa livre.

“Durmo pouco mas vivo permanentemente entusiasmado”, declara José Bento do Santos, um golfista com 11 de handicap (já foi 9) e que tem como parceiros frequentes, no campo do Estoril, logo pelas 7h30, vários amigos, como o banqueiro Carlos Rodrigues (Big), o ex-ministro Manuel Pinho e o Rodrigo Costa, ex-vice da Microsoft e CEO da Zon.

Jorge Fiel

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Manuel Teixeira

 

Manuel Teixeira, 41 anos, é o presidente executivo da ANJE, a associação com sede no Porto que reúne cerca de cinco mil jovens empresários espalhados pelo país e que, entre outras coisas, organiza o Portugal Fashion. Licenciado em Gestão de Empresas pela Universidade do Minho, foi com as mãos no volante, em ralis e provas de velocidade, que aprendeu a gerir sob pressão. “Estar em stress é, para mim, o estado ideal para trabalhar. Foco-me mais e sinto que sou mais criativo. Sou viciado em adrenalina. Dá-me gozo viver sob pressão, mas não sem pára-quedas. Não é o abismo. Gosto de ter os meus trunfos”, explica o homem que conquistou o Troféu Starlet, em 1995, apesar de a meio do campeonato ter sofrido um grave acidente que por pouco não lhe custou a vida

 

Nasceu e cresceu em Famalicão e fez o curso de Gestão de Empresas na Universidade do Minho, mas não gosta do circuito de Braga. “É muito lento. Tem uma curva perigosa que faz a diferença”, analisa Manuel Teixeira, 41 anos, presidente da Comissão Executiva da ANJE, uma associação com sede no Porto e que reúne cerca de cinco mil jovens empresários espalhados por todo o país. Francisco Maria Balsemão é o outro presidente (o da direcção nacional) desta organização, de que o Portugal Fashion é provavelmente a mais vistosa das suas iniciativas.

A curva perigosa, no final da recta da meta e à entrada dos S, do circuito de Braga não tem segredos para ele: “Chega-se lá a 190 km/hora, dá-se um toque no travão, respira-se fundo e só se trava depois da primeira curva”.

Na segunda época em que disputou o Troféu Starlet, na categoria de Iniciados, o campeonato ia a meio e Manuel Teixeira ia na frente quando chegou a vez do circuito de Braga. No final da segunda volta, estava na liderança da corrida quando chegou à dita curva perigosa. Deu um toque no travão, respirou fundo e quando ia a travar o seu Toyota Starlet branco levantou voo, após ter sido tocado por José Ramos, neto de Salvador Caetano e o seu mais director perseguidor na luta pela vitória na corrida e no troféu.

“O carro ia todo desequilibrado, a andar em cima de três rodas. Com o toque levantou voo, deu três ou quatro voltas antes de estabilizar virado ao contrário, com as rodas para cima. Durante uns segundos fiquei ali parado, no meio do S, de cabeça para baixo, a ver os outros 20 e tal carros a passarem. Felizmente nenhum me tocou. Foi um susto! Foi tudo muito rápido mas lembrei-me que quatro anos antes, em Vila do Conde, num acidente parecido, um piloto morreu porque um dos concorrentes que vinha atrás não conseguiu evitá-lo e chocou contra ele”, recorda.

Ficou cheio de dores e, pior ainda, sem carro, o que era grave pois no entretanto tinha sido descontinuada a produção dos Starlet. Mas nem sequer lhe passou pela cabeça deixar de competir. Não descansou enquanto não desencantou um carro e o preparou a tempo de estar na grelha de partida na prova seguinte. Limpou o troféu apesar de ser um carro diferente (“não há dois carros iguais”) e de não o conhecer bem. Em dez corridas, fez cinco primeiros lugares e quatro pódios – só não pontuou na corrida de Braga em que o seu carro foi transformado em sucata na curva perigosa.

“Depois do acidente voltei à competição com uma vontade redobrada de vencer. Ainda com mais frieza, profissionalismo e rigor”, explica Manuel Teixeira, que logrou sagrar-se campeão ainda antes da última corrida, no que foi o maior feito da sua carreira de cinco anos como piloto de automóveis.

Depois, chegou a ter em cima da mesa a hipótese de correr no campeonato espanhol de Turismo. Mas a dimensão do orçamento necessário (rondava os 50 mil contos) obrigou-o a recuar e a apostar no Troféu Carina E, onde se demorou duas épocas, mas não foi feliz. Ao contrário do Starlet, que era extremamente fiável, o Carina era um carro que dava muitos problemas mecânicos. “Foi muito frustrante. Gastei rios de dinheiro e nunca acertamos com a preparação. Ganhei alguns pódios e alcancei bons resultados, mas com pouca regularidade”, confessa o presidente executivo da ANJE, que atirou a toalha ao chão depois de ter ficado num decepcionante 4º lugar na sua segunda presença no Grande Prémio de Macau: “A meio da corrida fiquei sem ABS nos travões, quando tinha todas as hipótese de ganhar. No final, ao falhar o pódio, conclui que assim não dava e desisti”.

Dos cinco anos nas corridas, Manuel Teixeira trouxe o hábito de conduzir depressa (elogia, por exemplo, o comportamento do seu Mercedes R 320 CDI familiar por “estabilizar bem a 240 km/h”) e de viver sob pressão: “Estar em stress é, para mim, o estado ideal para trabalhar. Foco-me mais, e sinto que sou mais criativo. Sou viciado em adrenalina. Dá-me gozo viver sob pressão, mas não sem pára-quedas. Não é o abismo. Gosto de ter os meus trunfos”.

Nasceu em Louro, Famalicão já com a mania das velocidades e bicho do empreendedorismo inscritos no ADN. Manuel Francisco Teixeira, o avô paterno, era o dono da Sedil. O pai, Lígio Teixeira, casado com Arminda Sousa Lopes, herdeira dos armazéns C. Lopes de Famalicão, ainda continua a ter uma palavra a dizer no comando dos negócios da família (cujos tentáculos se estenderam desde supermercados e cash and carry até às bombas de gasolina, passando pelo representação da Mobil), que está entregue a Marta 38 anos, a irmã mais nova de Manuel, que lhe dá uma mão sempre que a gestão da ANJE e da sua consultora na área têxtil lhe deixam tempo livre – ele vive em stress permanente mas até gosta disso!

Mal tinha começado a andar e já se deliciava com os primeiros passeios de carro, a bordo do Ford Taunus familiar do avô, e se entusiasmava com frenesim da preparação dos ralis pirata em que o pai participava, ao volante de um Ford Cortina Lotus ou de um Datsun 1200, e organizava com os amigos e a cumplicidade das autoridades locais, que não se limitavam a fechar os olhos a essas competições não autorizadas, quase sempre realizadas em troços de terra batida – também davam uma ajuda fechando os troços, para garantir a segurança daquelas provas improvisadas.

Ainda era analfabeto e já delirava com as narrativas, que o pai fazia à mesa, das facécias dos ralis (a que ele não assistia porque a mãe não deixava) de onde trazia troféus que o faziam sonhar. Nos gloriosos tempos do Rali TAP (depois Rali Vinho do Porto), andava ele na primária, era uma excitação quando ia com o pai ver as classificativas – e não raro ficavam hospedados no mesmo hotel dos pilotos. Marku Allen era o grande ídolo, à época, mas ele preferia Hannu Mikkola. Na velocidade, apreciava Pêquêpê nas corridas caseiras, e os brasileiros Piquet e Fittipaldi, na Fórmula 1.

“Lá em casa líamos tudo sobre o desporto automóvel. O Motor, depois o Volante, Autosport, e Turbo. A minha paixão pelos automóveis foi sempre muito racional. Eu gostava de analisar a trajectória que os pilotos usavam nas curvas, a sua condução debaixo de chuva”, diz, acrescentando não ser do género de ter posters de carros e pilotos nas paredes do quarto – até porque a mãe não aceitaria isso.

Tinha 11 anos quando recebeu o seu primeiro veículo motorizado, uma Solex, que estava apenas autorizado a usar no interior do perímetro da quinta da família ou no Mindelo, onde tinham casa de praia. As deslocações de ida e volta para as Caldinhas, em Santo Tirso, eram feitas a bordo da carrinha do colégio jesuíta onde completou o Secundário.

Aos 14 anos, ganhou a primeira motorizada, uma Yamaha DT, que logo adaptou para o motocrosse, praticado numa pista que improvisou na quinta, onde fazia corridas pirata com os amigos – quem sai aos seus. Tinha jeito, os pais sabiam disso (ele entrava em casa a fazer cavalo), mas nunca os conseguiu convencer a deixarem-no competir a sério no motocrosse, pois não queriam que ele se distraísse do essencial, que era fazer o curso. “O meu pai sempre me prometeu que não me faltaria com dinheiro e apoios para eu correr. Mas só depois de acabar o curso” disse.

Até ao 12º ano, a ideia era ir para Arquitectura. Mas na hora de decidir, seguiu o conselho do pai e foi para Gestão de Empresas. Como se portava bem e cumpria os objectivos, aos 18 anos tirou a carta (na verdade,  já sabia conduzir desde os 14 anos, ensinado pelo pai que o incentivava a guiar dentro da quinta, de forma controlada e vigilante) e teve o seu primeiro carro, um Opel Corsa GT amarelo (a única cor disponível), que ele mandou pintar de preto após três meses a ser gozado pelos colegas.

Durante o curso, iniciou-se na bolsa, comprando e vendendo acções, actividade que lhe seria útil no futuro (o primeiro emprego foi na dealer do Sottomayor), e ia dando vazão à sua paixão pelos automóveis. Como à época poucos estudantes tinham carro, os parques de estacionamento da Universidade do Minho eram o local ideal para treinar os piões que aprendera a dar, com 15 anos, na quinta da família, ao volante do Alfa Romeu do tio, prática que lhe seria útil nos rali paper onde invariavelmente se destacava nas gincanas.

Como o prometido é devido, mal acabou o curso, em 1992, o pai comprou, por 1800 contos, um R5 GT Turbo para ele poder disputar ralis. Manuel não tinha dúvidas de que conduzia bem. Mas não sabia como me comportaria em competição. A prova dos nove foi logo na estreia, no Rali de Famalicão, onde havia mais de 80 inscritos.

Cometeu o erro original de escolher para co-piloto um amigo, que gostava de ralis mas não percebia nada de notas. De manhã, no primeiro troço, da Vilarinha, isso não contou, porque ele conhecia o trajecto de cor e salteado, por isso aproveitava tudo quanto era metro, excitado pelo entusiasmo do público que lhe cortava a visão da saída das curvas, o que era assustador. Apesar disso, teve a grata surpresa e enorme alegria de fazer o 2º melhor tempo, apenas mais dois segundos que o primeiro. E na segunda passagem, igualou fez exactamente o mesmo tempo do primeiro.

O problema foi à tarde. Ele não conhecia o segundo troço, a meio o pendura confessou estar perdido, ele disse-lhe “Então está calado, não digas nada” e foi andando pró ali fora, às apalpadelas, o mais rápido possível, até que a 200 metros da meta fez uma curva rápida a fundo e o R5 GT Turbo foi em frente subiu o morro e desfez-se todo.

“Aprendi que além de andar rápido e sangue frio é preciso saber sempre exactamente quais são os limites - e que as corridas tinham de ser preparadas com mais profissionalismo”, conta Manuel, que não demorou muito até perceber que a sua actividade profissional no CITEVE (centro tecnológico da indústria têxtil) era incompatível com os ralis que exigiam muito mais tempo de preparação do que as provas de velocidade, onde meia hora de treino bastavam para aprender a tirar metros da pista. E mudou-se para o Troféu Starlet, onde, a meio da segunda época, no circuito de Braga,  ficou de pernas para o ar nos S, a ver vinte e tal carros a  passarem por ele, porque o neto de Salvador Caetano lhe deu um toque e fez o seu carro voar, quando, após a segunda passagem pela recta da meta, depois de ter chegado a 90 km/h à curva perigosa, deu um toque no travão e respirou fundo, preparando-se para travar apenas depois da curva…

Jorge Fiel

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José Nuno Amaro

José Nuno Amaro, 40 anos, sabe que o verdadeiro obstáculo na vida não é a falta de dinheiro, mas de ideias. Por isso, a sua empresa chama-se IdeiaBiba. Caminhou 1,75 km em cima de água, pôs os universitários do Minho a andar de bicicleta e proporcionou a sensação de estar na Lua a 160 mil crianças. Titular da baliza do Recreio de Águeda aos 17 anos, passou pelo Freamunde, Gil Vicente, Braga e Chaves até que, aos 27 anos uma saída em falso a um cruzamento da vida lhe arrumou com a carreira, quando tinha à espera um contrato milionário com o Las Palmas. Habituado, como guarda redes, a viver no balanço entre a ansiedade e a agonia, recomeçou de novo, a vender bilhetes num cinema em Rio Maior. “O passado faz parte do museu”, diz este empresário que ganha a vida a vender emoções 

 

Zé Nuno Amaro rechaçou com os punhos a angústia do guarda-redes face ao final prematuro de uma carreira que podia ter sido ainda mais bonita se não fossem os azares em que às vezes a vida é fértil.

Vendeu bilhetes no cinema de Rio Maior que geriu com a primeira mulher, após ter pendurado as luvas com 27 anos. Para entrar no Guinness, caminhou 1 750 metros em cima da água (dentro de uma bola transparente), na ria da Aveiro. Pôs os estudantes da Universidade do Minho a andar de bicicleta, no âmbito do projecto BUTE (Bicicleta de Utilização Estudantil) que ganhou o prémio nacional de mobilidade. Finalmente proporcionou a sensação de viver uma experiência espacial e de estar na Lua a 160 mil crianças portuguesas, polacas, húngaras, checas, espanholas, italianas, etc.

“Vendo emoções. É isso que eu faço”, remata o antigo guarda redes, que após ter percebido que o verdadeiro obstáculo na vida não é a falta de dinheiro, mas sim a falta de ideias, baptizou de IdeiaBiba a sua empresa, cujo coração bate em Águeda, num enorme armazém a que ele chama fábrica de eventos, onde se acumulam vestígios das suas acções – a mais recente das quais foi a apresentação da Volkswagen no Estoril Open. 

Não deixa de ser curioso ter ido parar à baliza por ser pequenino, ou seja mais fraco e por isso com menos capacidade para espingardar por ter sido chutado para o posto menos atraente. A alternativa era não jogar – o que era bem pior. Agora, do alto do seu 1m85, recorda com ironia esse argumento, usado por amigalhaços que hoje são bem mais pequenos do que ele. 

“A vida é, tal como futebol, uma montanha russa em que tanto estamos em cima como em baixo. Não há vitórias antecipadas. O triunfo só está garantido quando o árbitro apita para o final do jogo”, filosofa um ex-futebolista que, como todos os guarda redes, aprendeu a viver no balanço entre a ansiedade e a agonia.

A sorte caiu-lhe em cima quando tinha ele nove anos e estava a ver o irmão (Carlos Miguel, que viria a jogar no Famalicão, Rio Ave e Belenenses e a quem uma lesão, num jogo contra o Benfica, impediu que cumprisse a promessa de ser o futuro André) no Torneio de Páscoa, em Águeda. O guarda redes aleijou-se e ele tomou conta da baliza, nunca mais a largando.

Aos 15 anos, era o dono incontestado da camisola nº1 quando uma lesão na mão a afastou na baliza. Como nunca foi homem para se atrapalhar, passou a alinhar a ponta de lança. “Nessa época, com 13 golos, fui o melhor marcador da minha equipa no Nacional de juniores. Se calhar não devia ter voltado à baliza”, recorda.

Precoce, tinha apenas 16 anos quando assinou o primeiro contrato como profissional, por três épocas pelo Recreio de Águeda, a ganhar 30 contos/mês no primeiro ano, 55 contos no segundo e 80 contos no terceiro.

Os pais (ele trabalhava nas bicicletas Órbita, ela na Comercial do Vouga, importadora das motos KTM) aceitaram, mas, como contrapartida, obrigaram-no a inscrever-se no curso nocturno na escola Marques Castilho. Ainda andou por lá três anos, mas desistiu sem trazer o curso de electromecânico.

Ele não queria saber de estudos. Apenas e só de futebol. E a carreira abria-se à sua frente, tão larga e veloz como uma auto-estrada alemã. Aos 17 anos, ainda com idade de júnior, estreou-se na equipa sénior do Recreio, que militava na Zona Centro da II Divisão Nacional..

Titular absoluto da equipa do Recreio aos 18 anos, chamou a atenção dos grandes, ao ponto de Osvaldo Silva o ter levado a prestar provas no Sporting, onde, devido às lesões de Damas e Bela Katzirz, fez um treino de conjunto em que Sousa (que viria a ser seu treinador no Beira Mar) e Pacheco (que viria a ser seu colega no Braga) se metiam com ele chamando-lhe Dasaev.

“Sempre admirei muito da agilidade e frieza do Dasaev. Dos estrangeiros também gostava muito do Zenga e do Preudhomme. Dos portugueses, nunca tive dúvidas. O melhor de todos foi o Vítor Baía” , diz, acrescentando, no entanto, que o ídolo da sua vida  não é um guarda redes, nem sequer um futebolista, mas antes o empresário Richard Branson, da Virgin.

Na sua segunda época como profissional , o Recreio disputou até ao final da época a promoção à I Divisão, perdida para a Académica. Como deu nas vistas, choveram os convites (Espinho, Trofense, etc) para mudar de ares. Pediu para ser transferido, porque em Águeda não aceitaram aumentaram-lhe o ordenado mensal, de 80 para 150 contos, como ele pretendia. Foi parar ao Freamunde, trocando a Zona Centro pela Zona Norte - e saindo pela primeira vez de casa.

No Freamunde , treinado por Jorge Regadas, ele e Pedro Barbosa foram as estrelas de uma equipa sensação, que perdeu a subida para o Gil Vicente, num jogo em que foram derrotados por 1-0 pela equipa de Barcelos, sendo que o golo foi na sequência de um penalti inventado – garante Zé Nuno.

Não subiu à I com o Freamunde, mas acabou por ir lá parar. Assinou contrato pelo Gil Vicente na Confeitaria Cunha, sob o olhar protector de Reinaldo Teles, cuja presença indiciava a atenção com o FC Porto seguia a carreira deste jovem e promissor guarda redes.

Foi nesta altura que lhe apareceram pela frente as primeiras esquinas da vida. Chamado sete vezes. por Norton de Matos e António Oliveira. para as selecções sub 21 e Olímpica, não fez parte da convocatória de Carlos Queiroz para o Mundial de Riade, apesar de ser um dos três do lote de seleccionáveis (os outros eram Hélio, do Vitória de Setúbal, e  Filipe, do Torreense) que já jogavam nos seniores. Na sequência da lesão de Vítor Baía, foi posto em stand by pela FPF, mas o escolhido acabou por ser o juvenil Brassard.

A sorte começou a pregar-lhe partidas, umas atrás das outras, interrompendo-lhe uma carreira sempre a subir. No Braga, para onde se transferiu após duas épocas em Barcelos, disputou a baliza com Quim (o que está no Benfica) e Rui Correia - que era quem jogava mais porque a direcção apostava em vendê-lo para um grande.

Farto de ser suplente, pediu para ser emprestado. Foi parar ao Chaves, onde foi titularíssimo e brilhou. Autuori pediu a sua contratação a Damásio, mas entretanto quer treinador quer presidente abandonaram o Benfica e a sua ida para a Luz ficou em águas de bacalhau.

Fez então uma aposta que parecia seguríssima, mas depois, vai-se a ver e perdeu tudo. Tinha 26 anos e era um futebolista livre, pois acabara de comprar o seu passe ao Braga por 350 mil euros. Era a altura de dar o grande salto em frente, mas acabou por estatelar-se ao comprido. 

O Las Palmas acenou-lhe com um contrato milionário de quatro anos, para a reabertura do mercado em Janeiro. Para não ficar parado quatro meses, resolveu fazer o início da época no Beira Mar, treinado por Sousa. Mal ele adivinhava que estava a fazer uma saída em falso a um complicado cruzamento da vida.

Começou a sentir as dores que iriam transformar o sonho espanhol num incrível pesadelo. No Beira Mar diziam-lhe que não era nada, mas as dores não paravam, o braço esquerdo começava a ficar preso, e Zé Nuno resolveu ir às Antas pedir a opinião do departamento médico do FC Porto. O diagnóstico do dr Zito foi rápido: uma vértebra danificada. Tinha de ir à faca. “Em duas horas perceberam o que os médicos do Beira Mar não conseguiram detectar em dois meses”, lamenta.

O Beira Mar não tinha seguro, a operação era arriscada, mas ele não hesitou. A intervenção cirúrgica (a primeira no nosso país em que foi usada uma prótese de titânio) correu bem, mas para a pagar ele foi obrigado a atirar-se para o chão – vendeu a casa, na praia da Vagueira, e ainda ficou a dever dinheiro.

Ficou bem das costas, mas os médicos decretaram-lhe o fim da carreira. Com 27 anos, casado, um filho (Nuno, que seis anos depois teria o João  um irmão mais novo), sem dinheiro e uma enorme vontade de jogar futebol, desobedeceu logo que lhe apareceu um empresário com um contrato para ir defender a baliza do Bradford.

Demorou-se apenas mês e meio por Inglaterra, o tempo necessário para perceber que fora enganado pelo empresário. Ficou farto, descalçou as luvas e fez-se à vida. Sentiu que tinha batido no fundo e fugiu a correr do mundo do futebol.

Estávamos em 1998 e recomeçou a vida com um cinema alugado em Rio Maior. Na viragem do século, apostou numa escola de guarda redes em Vagos. Mas foi através das bicicletas que emergiu do anonimato com o projecto BUTE, o que se compreende, pois nasceu e cresceu na região do país que é o berço da indústria das duas rodas - onde quer o pai quer a mãe trabalharam.

Zé Nuno sempre foi rápido a repor a bola em jogo. O pragmático mantra “o passado faz parte do museu” ajudou-o a ultrapassar a angústia do guarda redes perante o fim da carreira. Não olhar em frente é meter golos da própria baliza. Por isso, quando lhe perguntamos qual o melhor negócio da sua vida  ele não hesita na resposta: “Vai ser o próximo”.

Jorge Fiel

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Luis Brás

Luís Brás, 44 anos, é o empresário que dirige a cadeia de 60 centros de fotodepilação Não + Pêlo. Interrompeu os estudos com 18 anos, para começar a trabalhar num armazém do avô. Foi ajudante de farmácia, vendeu tabaco açoriano, isqueiros Zippo e canetas Parker, desenvolveu as lojas Pierre Cardin. No râguebi, onde foi vice-campeão nacional com a camisola às riscas horizontais vermelhas e pretas de Direito, temperou o carácter e aprendeu o necessário para triunfar na vida. “É um desporto viril, em que é preciso ter força, espírito de sacrifício e aguentar maldades. Mas isso só nos prepara para a vida, que também é muito dura. Não podemos ser nem santinhos nem anjinhos. Para ser bem sucedido, é preciso ser determinado e ir em frente até cumprir os objectivos”, diz

 

“És bruto como uma porta! Estavas bem era no râguebi”. Na origem de tudo está este desabafo do treinador de basquetebol do Olivais, farto de tentar convencer, sem sucesso, o jovem Brás a usar menos o corpo e moderar as entradas sobre os adversários, para não estar sempre a prejudicar a equipa com a acumulação de faltas técnicas.

Luís tinha 12 anos, bom físico (o inconveniente é que abusava dele, pelo menos a acreditar na opinião do treinador do Olivais) e uma enorme apetência pela prática do desporto. Jogou futebol na escola, chegou a correr pelo Sporting e passou pelo andebol do CDUL, até que decidiu levar à letra o desabafo do treinador de basquete.

Sabia que o Nuno, seu colega no Liceu Camões, jogava râguebi. Pediu-lhe que o levasse a um treino da sua equipa (os Cangurus), no Estádio Universitário. A sua impetuosidade agradou ao “doutor” (era assim que a rapaziada tratava o treinador), que disse que sim, ele podia ficar. “No final, o Nuno perguntou-me se eu tinha gostado, eu respondi-lhe que sim e nunca mais falhei um treino, salvo motivo de força maior”, recorda.

Treinava duas vezes por semana, das quais pelo menos uma vez em pelado, com evidente prejuízo para os seus joelhos, que andavam sempre esmurrados, e para o equipamento, que ficava sempre em mísero estado. A mãe ralhava e tentava convencê-lo a deixar aquele desporto de brutos, mas ele fazia ouvidos de mercador. Durante um ano e meio, como juvenil, alinhou com a camisola às riscas horizontais pretas e brancas dos Cangurus, que trocou pela das riscas, também horizontais, vermelhas e pretas do Grupo Desportivo de Direito, quando passou a júnior. 

Jogar em Direito, mas não estudou Direito nem fez qualquer outro curso superior porque a sua rebeldia não se limitava às consecutivas faltas técnicas que irritaram o treinador de basquete dos Olivais. Estendia-se também às salas de aulas. Um segundo chumbo no secundário, desta vez no 10º ano, fez subir a mostarda ao nariz da mãe, que decidiu interná-lo no Colégio Nuno Álvares Pereira em Tomar.

Em alternativa, Luís contra-propôs ficar em Lisboa, a trabalhar durante o dia num armazém do avô (que tinha um negócio de produção de queijos e de armazenamento e distribuição de produtos alimentares) e a estudar á noite. E para derrubar as últimas reticências maternas à sua sugestão lá lhe foi explicando que estava quase a fazer 18 anos, o que equivalia a dizer que estava à beira de ficar legalmente habilitado a fazer o que lhe apetecesse – e um colégio em Tomar estava completamente fora dos seus planos.

A trabalhar de dia e a estudar à noite, teve de pôr o râguebi entre parêntesis, para grande mágoa sua, pois o treinador tinha-lhe confidenciado que estava a ser observado para ser chamado à selecção e ia haver uma digressão pela Escócia.

O nomadismo que caracterizou a sua passagem pelo secundário, cumprida em quatro escolas (Marquesa de Alorna, Camões, Lumiar e Maria Amália), voltou a fazer-se notar na primeira fase da sua prematura carreira profissional. Não chegou a completar um ano no armazém do avô, que trocou por um emprego de ajudante na farmácia dos primos, em Santo António dos Cavaleiros, onde se demorou dois anos, após o que deixou para todo o sempre de ter familiares como patrões e fez um upgrade de caixa para caixeiro viajante.

Os estudos, esses ficaram no tinteiro, ficando-se pelo 11º ano incompleto, uma formação que complementaria com a escola da vida e um número não negligenciável de cursos de vendas, de informática e de gestão (na AESE).

Tinha 23 anos e a emancipação completa foi ungida por uma volta de carro pela Europa. Foi viver sozinho, para um apartamento em Benfica, comprou o primeiro carro, um VW Polo G40, e descobriu a sua vocação a vender material de escrita, isqueiros Tokai, bem como tabaco açoriano e holandês, a armazenistas, quiosques, papelarias e tabacarias. Simpático e comunicativo, cedo ganhou a reputação de bom vendedor que lhe escancarou as portas da Parker, que era o Real Madrid dos vendedores de canetas, onde voltou a brilhar a grande altura.

A sua carreira profissional estava definitivamente lançada quando um belo dia, estava ele a comprar uns discos na discoteca Via Veneto, tropeçou no Mário Castro, seu antigo colega nos juniores de Direito. Aprendeu que o amigo continuava no râguebi com a resposta à pergunta inevitável nestes reencontros (“Então!? Que é feito de ti?”), e deixou escapar a pena que sentia por ter deixado de jogar.”Se estás com saudades, por que é que não voltas?”, interrogou Mário. Luís pensou “não é tarde, nem é cedo” e voltou às molhadas.

Logo no ano do regresso e da sua estreia como sénior, andou quase dois meses com a perna engessada por ter feito uma ruptura de ligamentos numa molhada. Mas não desistiu. Treinava três vezes por semana, corria todos os dias uma hora, no final do trabalho, e jogava ao fim de semana, nas linhas atrasadas, a ponta, posição que exige rapidez de pernas e bastante determinação.

“Quando atacávamos e eu recebia a bola, tinha de correr até chegar à linha e fazer o ensaio. Quando a equipa adversária iniciava o ataque, cabia-me impedir que a bola saísse - e chutá-la para a frente ou abrir para o arriére”, sintetiza Luís, que não perdia um dos jogos do Torneio das Cinco Nações que a RTP transmitia e eram comentados por Cordeiro do Vale. A França (onde alinhava Blanco, provalemente o maior dos seus ídolos), porque jogava muito à mão, e o País de Gales eram as suas selecções favoritas.

Luís foi vice-campeão nacional em 93/94, época em que Direito deixou escapar o título para o Cascais, ao perder os dois jogos com esta equipa. E na época seguinte, aos 29 anos, deixaria pela segunda vez o râguebi. Tomou a decisão no final no primeiro treino orientado por Tomás Morais. “Percebi que não já não tinha pedalada”, resume Luís, que por esta altura estava num momento de viragem da sua carreira profissional.

Abandonou a bola em forma de melão ao mesmo tempo que o lugar de vendedor de canetas Parker e isqueiros Zippo, para agarrar com as duas mãos um convite do grupo Regojo, que viu nele a pessoa certa para dar a voltar à representação da marca francesa Pierre Cardin que tantas dores de cabeça lhes dava. Luís mudou-se para os trapos, estudou a situação e fez um diagnóstico certeiro, solucionando os problemas a abertura de lojas próprias – controlavam a qualidade, ganhavam o dobro e não tinham problemas de cobrança. Deu resultado.

A bem sucedida experiência com as lojas Pierre Cardin e a amizade com a família Regojo são a pré-história do negócio que absorve agora o essencial da energia de Luís, que no lançamento, em franchise, da cadeia de lojas Não + Pêlo passou a acumular a faceta de empresário à de vendedor. Em pouco mais de um ano e meio, conseguiu que 17 mil portuguesas (70% da clientela) e portugueses (30%) se vissem livres de pêlos em zonas consideradas indesejáveis – axilas, pernas e virilhas, no caso das mulheres, e por todo o lado, no caso dos homens – através de um método inovador, a fotodepilação que é mais durável e indolor que a cera, e mais barata (30 euros por zona) que o laser. O baixo preço que custa abrir um centro Nem + Pêlo (o pacote fica por 30 mil euros) permitiu a abertura de mais de 60 lojas em menos de dois anos e estimulou Luís a formatar um novo conceito (Não+Dietas) para fazer dinheiro correspondendo às preocupações estéticas dos portugueses.

No entretanto, Luís voltou ao râguebi aos 35 anos, alinhando regularmente na equipa de veteranos de Direito, que no fim-de-semana passado disputou, no campo de Monsanto, um quadrangular com uma equipa alemã, Santarém e S. Miguel. E o seu filho de onze anos, que também se chama Luís, está a seguir a paixão do pai e joga na equipa sub 12 de Direito.

“Como se costuma dizer, o râguebi é um desporto de arruaceiros jogado por cavalheiros. É também uma grande lição de vida. Temos de ter muito amor à camisola, uma enorme dedicação, espírito de sacrifício, ser lutador e ganhador. Fazem-se grandes amizades que duram, pois a entreajuda é o princípio base do jogo – é como a divisa dos Três Mosqueteiros, um por todos, todos por um. É uma modalidade viril, em que é preciso ter força e aguentar algumas maldades. Mas isso só nos prepara para a vida, que também é muito dura. Não podemos ser santinhos, nem anjinhos”, afirma.

Luís está na vida como no campo, quando apanha a bola e desata a correr em direcção à linha, para fazer um ensaio. “Para se ter sucesso é preciso ter determinação e ir em frente até cumprir os objectivos e alcançar as metas que fixamos” conclui.

 

Jorge Fiel

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Catarina Santos

 

Catarina Santos, 28 anos, é uma das quatro advogadas do escritório no Porto da sociedade João Nabais & Associadas. Uma rapariga pacata que vive com os pais em Santo Tirso, conduz um Smart e emergiu do anonimato ao ganhar a etapa de Aranjuez do Spanish Poker Tour. No poker, onde usa o nick de Katrina, aprendeu a ler os adversários (“Um movimento dos olhos pode ser revelador e susceptível de ser interpretado. Um ligeiro tremor na camisa indicia um aumento da pulsação, traído pela jugular”) e a gerir as emoções. “Aprendi a controlar as minhas emoções. O poker fez de mim uma melhor advogada. Quer no tribunal quer na mesa de jogo consigo não exteriorizar quando estou forte e não entrar em pânico quando estou fraca”, diz

 

Um ás de paus e um rei de copas chegaram para que Catarina deixasse de ser apenas mais uma das 14 mil advogadas portuguesas. Foi a 9 de Abril, na etapa de Aranjuez (pequena cidade ao sul de Madrid celebrizado pelo Concerto de Aranjuez, composto por Joaquin Rodrigo), do Spanish Poker Tour (SPT). Mais de 160 jogadores foram ficando pela caminho, despojados das suas caves, ao longo do fim de semana. Na mesa principal, só restavam os dois finalistas: ela e o holandês Steven Zadelhoff.

Com um ás e o sete de espadas de jogo de mão, Steven não hesitou e fez all in - apostou tudo, transferindo para o centro da mesa todas as fichas que tinha à sua frente. O ás de espadas era uma carta animadora e ele precisava de arriscar, por estar em desvantagem, uma vez que a sua cave (à volta de 400 mil) era muito inferior à que Catarina tinha conseguido acumular (superior a dois milhões).

O raciocínio do holandês até não foi estúpido. O problema é que ele não podia adivinhar que a portuguesa também tinha um ás na mão e em muito melhor companhia  - o imponente rei de copas. Ela acompanhou a aposta. As cartas abertas na mesa (dez, nove, dama, nove, oito)  não foram aquelas por que rezava Steven, nem o milagre de três paus que lhe permitissem fazer cor, nem um sete dobrado. Catarina ganhou e pode abandonar a poker face, cantada por Lady Gaga, deixando finalmente que a sua cara reflectisse as suas emoções e estado espírito.

Ganhou um troféu, um blusão da Everest (a sua patrocinadora no mundo do poker), uma data de atenção nos Media e 45 mil euros em notas emitidas pelo Banco Central Europeu, dinheiro a sério, ao contrário do que acontece com as fichas que os participantes recebem, em troca da inscrição, à chegada a um torneio de poker, em que não há correspondência entre o valor facial e o real, tal como acontece com o dinheiro do Monopólio.

Catarina Santos, 28 anos, guarda o troféu no gabinete onde trabalha, sentada a secretária com tampo de vidro impecavelmente arrumada, rodeada por paredes brancas, onde estão dependuradas duas grandes fotografias a preto e  branco (uma de arranha-céus de Chicago e outra de um canal de Amesterdão, com um bicicleta colorida de vermelho em primeiro plano), e um candeeiro em forma de fogo de artificio, exuberante excepção numa decoração minimalista.

Os 45 mil euros, esses estão guardados no banco, a render e a fazerem companhia ao dinheiro dos outros prémios ganhos no poker, como os nove mil euros correspondentes a um 5º lugar numa anterior etapa do SPT. “O que é que eu faço ao dinheiro? Poupo-o!”, responde.

É, sem dúvida, uma rapariga poupada. Filha única, continua a viver em casa dos pais, um bancário reformado e uma funcionária judicial. O dia passa-o entre os tribunais e o seu gabinete, que fica numa casa pintada a azul bebé, da avenida Afonso Henriques, em Matosinhos, partilhada com as três outras advogadas dobraço portuense da João Nabais & Associados. No final do dia, mete-se no seu Smart forfour e faz a A3 até Sato Tirso, onde passa a noite em casa – janta com os pais e depois passa religiosamente três horas em frente ao portátil a jogar poker online.  A maioria dos fins de semana passa-os em hotéis, a jogar em torneios ao vivo. Catarina tem o relógio acertado pela nova hora da frugalidade.

O poker, recentemente considerado pelo Comité Olímpico Internacional como um desporto mental, a par do xadrez e do bridge, não foi a sua primeira escolha. Na adolescência praticou vários desportos. Começou por treinar a flexibilidade na ginástica rítmica, no Ginásio Clube de Santo Tirso. Passou pelo atletismo, onde as suas características de sprinter levaram o treinador a apostar nela para as provas de velocidade. Por último, jogou ténis, modalidade em que a força é um factor não negligenciável.

“Tinha jeito para o ténis, fazia umas esquerdas cruzadas engraçadas, mas não chegava a ser uma matadora. Quando se pôs a hipótese de me tornar federada fui estudar para Coimbra e deixei de jogar. Se calhar hoje já não apanho uma bola”, conta.

Ir para Direito não correspondeu exactamente à concretização de uma obsessão. Desportista como sempre foi, encarou seriamente a hipótese de cursar Educação Física. Como era boa em Humanidades, chegou a pôr em cima da mesa a possibilidade de fazer Jornalismo. E ainda teve um fraco pela Arquitectura. No meio de toda esta indecisão, em que não tinha a certeza absoluta do que queria fazer, quando chegou a hora da verdade, no 12º ano, acabou por dar ouvidos à voz do padrinho que a aconselhava a ir para Direito, argumentando tratar-se de um curso bastante generalista, que poderia dar bases e abrir portas para diversas profissões.

Foi para Direito animada pelo espírito “vamos andando e vamos vendo” . Como o curso do Porto ainda estava muito verde, inscreveu-se em Coimbra, onde passava a semana num T1 alugado. Só durante a Queima é que não se metia se metia no comboio para ir a casa aos fins de semana. Uma vida pacata, em que deu razão ao fado que diz que Coimbra tem mais encanto na hora da despedida. “Só quando acabei o curso, no ano 2000, é que senti saudades de Coimbra”, confessa.

Acabado o curso, durante o qual se foi gradualmente apaixonando pelo Direito, fez uma pós graduação em Fiscal na Católica e recolheu-se a Santo Tirso, onde passou uns bons quatro meses à procura de um sítio para estágio, até que começou a acompanhar com telefonemas “Então como é?” o envio dos curriculuns – e do escritório de João Nabais veio o convite para uma entrevista com o fundador da sociedade. Estávamos em Dezembro de 2005 e Catarina fez o estágio e ficou por lá.

O primeiro caso, em que defendeu um arguido acusado de tráfico de estupefacientes, acabou por correr “menos mal” – a pena não foi tão elevada como podia ter sido e ainda baixou com o recurso. Apesar da especialização em Fiscal, ela faz mais Penal e Administrativo mas isso não a incomoda, pois anda satisfeita com a vida que tem.

Catarina nunca tinha sido uma jogadora de cartas. Quando muito, num ou outro fim de semana, era capaz de jogar à sueca com os amigos no OK Bar, o café de Santo Tirso onde paravam. Até que um dos amigos trouxe para a mesa a novidade do poker. Começaram a jogar, a cafés e rebuçados, e entusiasmaram-se com o novo jogo, ao ponto de não demorarem muito até que, há coisa de três anos começarem a entrar em torneios online e logo foi público e notório que Catarina era dotada para o poker.

Em 2007 começou deixou de jogar apenas online e começou a participar em torneios ao vivo, com tão bons resultados a Everest decidiu patrociná-la, poupando-lhes despesas com viagens e inscrições, uma aposta que a vitória em Aranjuez provou ser acertada.

A sorte não é, de acordo com Catarina, um factor que pese decisivamente no poker. “Ao longo dos anos, nós todos vamos acabar por receber as mesmas cartas”, explica. O cálculo das probabilidades já é importante. “Os adversários procuram disfarçar as cartas. Nós temos de tentar perceber qual é a mão dele através das suas apostas e reacções”.

A psicologia é fundamental para o sucesso desta tentativa permanente de ler o jogo e reacções do adversário, que implica conhecer-lhes os hábitos e estudar os montantes que aposta quando está forte e quando está fraco. “Há momentos em que é muito difícil disfarçar as emoções. Um movimento dos olhas pode ser revelador e susceptível de ser interpretado. Um ligeiro tremor na camisa indicia um aumento da pulsação, traído pela jugular”, diz.

Para disfarçarem as emoções, muitos jogadores põem óculos escuros e/ou chapéus. Catarina não usa qualquer desses recursos e joga sempre de cara descoberta. Para se distrair, brinca com as fichas e põe os phones para ouvir a dieta musical variada que tem no iPod: REM, Pearl Jam, Jorge Palma, Gotham Project, Mafalda Veiga, Counting Crows, etc

Catarina aprecia jogadores como Phil Ivey ou Patrick Antonius, que cultivam o low profile: “Não são exuberantes. “O mundo pode estar a ruir, que eles continuam impassíveis. Não abusam da matemática. Sabem ler os outros e são intuitivos”.

“O poker é essencialmente sobre a gestão de emoções. Ao longo dos quatro anos em que jogo, aprendi a controlar as minhas emoções o que fez de mim uma melhor advogada. Quer no tribunal, quer na mesa de jogo, consigo não exteriorizar quando estou forte e não entrar em pânico quando estou fraca”, conclui Catarina, que apesar de ter adoptado o nick Katrina para os jogos online, está longe de ser um furacão. É uma jogadora concentrada e cuidadosa, que tem dois objectivos: evitar a todo o custo ficar broke e jogar torneios cada vez maiores, talvez regressando a Las Vegas (onde esteve uma dúzia de dias, no ano passado, a jogar no Rio) para jogar no main event das World Series. Se calhar Queen of Hearts (alcunha que recebeu após ter feito duas cores de copas num curto espaço de tempo)  era-lhe mais apropriado para nick que o nome do furacão que destruiu Nova Orleães.

Jorge Fiel

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Jorge Silva

 Jorge Silva na sua Ducatti

 

 

Jorge Silva, 39 anos, é o dono do mais in salão de cabeleireiro de Guimarães, um espaço zen, assinado por arquitectos, procurado por clientela preocupada com a sua imagem, que tanto vai lá cortar o cabelo como receber uma relaxante massagem de chocolate ou champanhe, com terapia cromática. Antigo defesa esquerdo, formado no Vitória de Guimarães, onde foi vice-campeão nacional de juniores, representou o Celoricense, Ronfe, Penafiel, Freamunde e Bradford City, ao longo de uma carreira  que encerrou jogando uma época no Brasileirão com a camisola do Bahia. Com o pai, dono do Salão Londres, aprendeu a cortar o cabelo. Com o futebol aprendeu a importância dos relacionamentos e da liderança – e ganhou dinheiro

 

Ele tinha 27 anos. Estava em Lisboa, no início do Verão e defeso de 1997, a deitar contas à vida. Um contrato com os Bolton Wanderers era a melhor hipótese que tinha em cima da mesa para prosseguir a carreira de futebolista profissional. Mas torcia o nariz a regressar à Inglaterra fria e cinzenta, onde tinha passado a última época, meio deprimido, envergando a camisola às riscas verticais âmbar e clarete do Bradford City.

Uma luz de esperança luziu ao fundo do túnel com um telefonema de Delane Vieira, anunciando-lhe que o dr. Antônio Pithon,  cartola do Bahia e dono de 13 salas de cinema, queria falar com ele e o receberia no dia seguinte no lóbi do Hotel Lisboa, na Barata Salgueiro.

A conversa correu bem e, no final, o acordo ficou selado com um vigoroso aperto de mão. Na época seguinte, Jorge Silva representaria o Esporte Clube Bahia com um contrato generoso (falou-se em mais de 200 mil reais/ano).

A notícia correu rápido pela cidade até à Redacção da RTP na 5 de Outubro e teve honras de Telejornal das oito da noite, porque José Rodrigues dos Santos achou que um clube brasileiro contratar um futebolista português configurava a situação do homem que mordeu o cão - sendo que o desembarque na costa portuguesa de mais um contingente de futebolistas brasileiros equivale ao cão que morde o homem.

Como os pais nem sequer sabiam que ele estava em Portugal julgavam-no ainda em Yorkshire), Jorge telefonou-lhes para Guimarães, a avisar de que ia jogar para o Brasil – e para estarem atentos ao Telejornal da RTP, que a irmã, que tem um quiosque, gravou.

Voou para o outro lado do Atlântico, onde logo à chegada constatou duas coisas. Para começar, ficou de boca aberta com a qualidade das instalações do clube (cinco campos relvados, dois centros de estágio e até capela…) e com a recepção que lhe foi dispensada: mal aterrou, deu logo uma conferência de imprensa com a presença de cerca de cem jornalistas. Depois reparou que a sua contratação despertava alguma desconfiança, sentimento agravado pela demora da chegada do seu certificado internacional, um quid pro quo que para ser ultrapassado exigiu a intervenção pessoal de João Havelange.

“No Brasil, há muita cobrança da imprensa. Durante a primeira semana em que estive lá, publicaram os meus relatórios de treino. Nunca vi uma coisa assim. A assistência média nos jogos era de 43 mil pessoas, a maior do Brasileirão. Nos treinos era normal estarem dez mil pessoas a assistir na bancada. E derby com o Vitória, o célebre Ba-Vi, é uma loucura total com 116 mil pessoas a verem!”, recorda.

O treinador do Bahia era o dr Geninho, que uma década atrás tinha estado no comando do Vitória de Guimarães (mais tarde seria substituído por Jair Pereira, vindo do Atlético de Madrid) e plantel estavam dois jogadores que viriam a serem campeões de Portugal pelo Boavista como o guarda redes William Andem e o avançado Demetrius.

Como “Jorgisilvá” não era assim tão fácil de pronunciar, passou a ser conhecido como o Portuga. Foi apresentado à torcida num jogo, na Fonte Nova, em que o Bahia derrotou por 1-0 (um petardo do meio da rua de Lima que Dida não conseguiu deter) o Flamengo de Petkovic, Sávio e Romário,. Teve uma estreia auspiciosa num particular contra uma selecção estadual, em que a sua equipa ganhou 2-1 e ele apontou o primeiro golo e fez a assistência para o segundo.

“Não se pode singrar no Brasil se se não tiver técnica. E é indispensável cair bem na torcida e imprensa”, resume Jorge Silva, que após um ano de experiência brasileira regressou a Inglaterra. Instalou-se no Holiday Inn Crowne Plaza de Manchester, cumpriu o mês e meio do contrato de namoro assinado com o City e no final não chegou a ir ao altar.

“Sentia-me o cidadão mais infeliz do Mundo. Manchester é uma cidade crua, cinzenta e carregada. Eu estava nostálgico, cheio de saudades dos amigos, da família e de Guimarães. Ainda tive propostas do Felgueiras e da Académica, mas tomei a decisão de minha vida. Arrumei as chuteiras e investi no Jorge Silva Cabeleireiros. Tinha 28 anos e pensei que quanto mais tarde começasse o meu projecto profissional mais tempo demoraria a consolidá-lo”, explica.

Os cabelos são um negócio de família. Manuel, pai de Jorge, além de um grande guitarrista e fadista, é dono do Salão Londres. “Não é barbeiro. Barbeiro tem uma conotação agressiva e negativa. É um cabeleireiro de homens”, precisa o filho que aprendeu ao mesmo tempo a manejar a tesoura e a bola.

Lá em casa são todos sócios do Vitória (“Em Guimarães só há um clube!”) e ele ainda andava na primária das Piscinas e já não perdia um jogo no Afonso Henriques. A mais forte e antiga recordação foi a de ter ganho uma vez o sorteio da bola do jogo.

Jorge brinca, dizendo que começou a jogar futebol na barriga da mãe, mas a verdade é que ela só meio ano depois soube que ele tinha começado a jogar nos juniores do Vitória. Às escondidas da mulher, que temia que a bola prejudicasse os estudos, o pai apresentou-o, aos dez anos, a Valdemar Custódio, o treinador dos miúdos, que ainda antes de ver como ele tratava a bola,  logo disparou: “Se fores tão bom como o teu pai tens condições para triunfar”.

O pai jogara a extremo esquerdo, na formação do Vitória. O filho manteve-se no flanco esquerdo, mas em posições mais recuadas, a médio ala ou a defesa lateral. Atravessou a adolescência com três ocupações: estudar na ES João de Meira, jogar no Vitória e ajudar o pai, em troco de uma mesada, no Salão Londres.

Começou a fazer cortes sozinho aos 13 anos. “Já tinha o bacharelato”, graceja. À época o corte de cabelo preferido era à Paulinho Cascavel, mais curto à frente do que atrás. “O Paulinho é uma das grandes bandeiras do Vitória. É a minha primeira referência. Era o meu ídolo”, diz Jorge Silva, que no seu posto admirava Maldini e Javier Zanetti: “Tudo o que fazem, fazem bem. Já os viu alguma vez fazerem alguma coisa mal?”.

Jorge Silva é um homem que gosta de fixar objectivos. O primeiro foi o de comprar um carro mal fizesse 18 anos. Poupou as mesadas dos cortes de cabelo e o dinheiro dos prémios de jogos e, mal atingiu a maioridade, lá estava ele ao volante de um Fiat Uno.

No último ano da formação, foi vice-campeão nacional de juniores, apenas perdendo para o Benfica, onde despontavam Gil e Paulo Sousa. Na passagem a sénior, fase difícil e ainda por cima tumultuada por uma entorse, teve de dizer adeus à camisola branca do Vitória, mas ainda recorda com saudade o então responsável pela formação do clube: “Manuel Machado marcou-me muito, como pessoa e treinador. É um grande senhor, muito determinado e educado, que sabe pensar no amanhã”.

Apesar de alinhar a defesa esquerdo, foi o segundo melhor marcador do Celoricense, na época de estreia como sénior, na III Divisão Nacional. “Subia bastante e batia muitas bolas paradas”, explica. Ao final da segunda época foi chamado para a tropa (que cumpriu entre Infantaria 13, em Vila Real, e a Casa de Reclusão, no Porto, onde foi distinguido com medalhas de que se orgulha) e transferiu-se para o Ronfe, que estava na I Distrital de Braga, mas subiu logo ganhando o campeonato sem perder um jogo.  “A cinco jornadas do fim já éramos campeões”.

Sempre a trabalhar no Salão Londres, e atento à evolução das tendências em penteados e imagem, jogou uma época no Penafiel, na Divisão de Honra, e outra no Freamunde, na II B, antes de fazer as malas e partir para Inglaterra, levando na bagagem um contrato do Bradford City (onde foi colega de Chris Waddle, já no ocaso da sua carreira).

A aterragem não foi fácil. Custou-lhe muito, quer a ele quer ao outro português do plantel dos The Bantams (Sérgio Pinto, irmão de João Vieira Pinto), a adaptação a um país e uma cultura diferentes. “O primeiro choque? O pequeno almoço. O segundo choque foi o almoço e o terceiro foi o jantar”, conta Jorge, que estranhou os ovos e o cheiro a fritos do pequeno almoço, o frio que fazia - e o facto de às cinco da noite já estar tudo metido em casa. Era tudo diferente, até o futebol, que não era “o toca e vai buscar à frente” a que ele estava habituado, mas um jogo muito mais directo, de pontapé para a frente.

Os anos em Inglaterra e no Brasil foram sabáticos na profissão de cabeleireiro, em que praticou apenas nele próprio, cortando o seu cabelo em frente ao espelho.

Quando pendurou as botas e decidiu abrir na Santa Luzia, bem no centro de Guimarães, o salão Jorge Silva Cabeleireiros, que inovou por ser duplamente misto (clientela e empregados), o pai ficou um bocado triste por ele não ir trabalhar com ele. “Tenho uma relação fortíssima com o meu pai, mas precisava de provar que era capaz de fazer o meu caminho”, explica.

Durante dez anos amadureceu, organizou eventos, trabalhou com nomes grandes da moda com Jean Paul Gautier, e decidiu dar um novo salto em frente investindo num novo espaço e conceito. Localizado na avenida Conde Margaride, o Jorge Silva Hair Concept é um espaço zen (assinado pela dupla de arquitectos Miguel Diogo/Artur Alves) , onde a clientela vai tratar da sua imagem – cortar o cabelo mas e/ou também fazer uma massagem. “Gostar de nós é o principio de um sentimento com reflexo nos outros” é o lema de Jorge que trouxe do futebol para o seu negócio duas grandes lições: a importância dos relacionamentos e da liderança.

“Um bom treinador é o que é admirado e respeitado pelos seus jogadores. Eu não quero que as minhas funcionárias me temam, mas que me admirem e respeitem”, explica Jorge Silva, um apaixonado por velocidade (tem uma Ducati Super Bike 1089), que usa um corte de cabelo que ele próprio descreve como “um trabalho picotado com linhas de texturização acentuadas”.

 “A moda é uma quebra da rotina Vou mudando ligeiramente o meu penteado, pois quando inventamos muito arriscamo-nos a ficar ridículos”, concluiu.

Jorge Fiel

Esta matéria foi publicada hoje em O Jogo

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