Ouve-se um silvo distante, que arrepia a água
“O coreto era verde ou a sua evasão
na ferrugem instigada pela chuva?
As grades e colunas, a coberta
fatigaram-se, não conseguem reter
tantos mananciais de extinta música,
poderosos ao cativarem os que em volta
se concentravam, evolavam nela.
Os seus rostos reduzidos a tinta
estão a interrogar-me?”
Excerto de poema de José Bento sobre a aguarela Jardim de S. Lázaro, de António Cruz
Vivi os primeiros 15 anos da minha vida no 2º andar do número 304 da avenida Rodrigues de Freitas, ao lado do Jardim de São Lázaro e em frente à Garagem Galiza.
Brinquei muito no Jardim de São Lázaro, em frente ao Colégio Nossa Senhora da Esperança, frequentado só por raparigas, que todas elas me pareciam lindas naquelas batas azul bebé (uma das frustrações que vou levar para a cova é o de nunca ter chegado a namorar com uma miúda do Esperança).
O jardim tem um coreto onde actuavam regularmente bandas de músicos fardados (GNR, polícias, bombeiros?), que foi imortalizado numa maravilhosa aguarela de António Cruz, o pintor que na análise avisada do poeta (Eugénio de Andrade) foi um dos homens que mais espreitou a alma do Porto.
Ao remexer no passado, fiquei com vontade de partilhar convosco uma pobre reprodução desta aguarela e algumas palavras sobre António Cruz escritas por quem as sabia alinhar (novamente Eugénio de Andrade):
“António Cruz inventou para a cidade uma luz de cobre que, vinda do alto, paira sobre o casario e as águas do Douro, fluindo cheia de vagares para a Foz. Uma luz morta, de brasido amortecido na lareira, de um dia de Outono já friorento a chegar ao fim. No cais da Ribeira avistam-se já manchas francas de sombra, as pequenas embarcações perdem os contornos, e Gaia começa a confundir-se com a neblina crepuscular. Ouve-se um silvo distante, que arrepia a água. Não há dúvida, a noite vai cair. Uma noite antiga, de há cinquenta anos, onde nibguém poderá presentir a desgrenhada noite dos nossos dias, ruidosa, insegura, desumana. Olhadas assim, com os olhos fatigados, as aguarelas de que estivemos a falar escorrem, também elas, melancolia”.
Jorge Fiel