Não imaginam quanto lamento não ter o tempo nem o talento para digerir os 70 volumes e 700 apensos do caso BPN e escrever um thriller baseado nos factos reais da maior fraude portuguesa do século. A realidade supera sempre a ficção. Duvido que John Grisham fosse capaz de imaginar a cena do juiz presidente do coletivo ter de fazer uma coleta para comprar no IKEA uma estante para arrumar o processo - que lhe foi negada pela DG da Justiça.
A galeria de personagens é estupenda. Ken Follet teria de nascer duas vezes para conseguir inventar um naipe tão rico, denso e variado. No protagonista, Oliveira e Costa, que por alguma razão era conhecido na sua terra (Esgueira) como Zeca Diabo, e que munido de um cartão laranja subiu na vida ao ponto de chegar a secretário de Estado.
Saído do Governo de Cavaco, na sequência de um perdão fiscal mais que suspeito a empresas de Aveiro (Cerâmica Campos, Caves Aliança), foi recompensado pelo seu amigo com uma vice-presidência do BEI, apesar de ter uminglês ainda mais rudimentar que o de Zezé Camarinha.
Amigo do seu amigo, Costa comprou, em 2001, um lote de ações da SLN (dona do BPN), a 2,4 euros cada, que revendeu com prejuízo (a um euro/ação) ao amigo algarvio (o Aníbal, não o Zezé) e à filha dele. Menos de dois anos depois, Cavaco e Patrícia venderam as ações com um lucro de 140% - ele ganhou 147 mil euros, ela 209 mil. Nada mau.
Quando o naufrágio foi evidente, Zeca Diabo teve a dignidade de ir ao fundo com o barco, aceitou fazer de único responsável pelas patifarias. Em recompensa pela imolação, foi libertado devido "ao seu estado de saúde e por se encontrar em carência económica".
O elenco de atores secundários também é muito atraente e diversificado. Por exemplo, Manel Joaquim (Dias Loureiro), o filho de comerciantes de Linhares da Beira que chegou a ministro, conselheiro de Estado e administrador-executivo do BPN, carreira em que fez fortuna ao ponto de poder comprar, por 2,5 milhões de euros, à viúva de Jorge Mello, uma mansão no Monte Estoril.
Temos também Vítor Constâncio que, apesar de usar óculos e ser o governador do Banco de Portugal, foi o último a ver a falcatrua, anos depois da Deloitte, Exame e Jornal de Negócios terem alertado para o assunto.
E ainda Scolari, que recebia 800 mil euros/ano, Figo (apenas 400 mil/ano) e Vale e Azevedo, que sacou dois milhões (passaram-lhe o cheque antes de verificarem as garantias), e tantas outras figuras do nosso Gotha que lucraram com um banco que tinha balcões em gasolineiras e ativos tão extravagantes como 80 Mirós e uma coleção de arte egípcia.
O enredo é fabuloso. Dava um filme indiano. Só espero que, na venda ao BIC, o Estado tenha tido o bom senso de reservar os direitos de adaptação ao cinema desta história, que estou certo será disputada por Hollywood e Bollywood. Sempre será algum dinheiro que entra para minorar o prejuízo de seis mil milhões.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
Os jardins do Polana, em Maputo, são um local encantador mas Américo Amorim já não estava a achar piada nenhuma ao assunto, apesar de desfrutar de uma calmante e bela vista do Índico. Na sua primeira visita a Moçambique desde a lua de mel, o que ele queria era fazer negócios, usando como testa de ponte a Mabor Moçambique, que lhe tinha caíra no regaço por via da aquisição da fábrica de Lousado da mais famosa marca portuguesa de pneus.
Ao todo éramos uma dúzia. Nesta viagem exploratória, Américo levava gente de várias áreas de negócio do seu grupo, desde a finança aos cabos elétricos, passando pela têxtil e hotelaria.
À imagem do seu líder, o grupo Amorim atravessava um período de expansão irrequieta e acelerada, mas o mesmo não acontecia com o serviço na esplanada do Polana, que em hora menos acertada foi escolhida para um almoço rápido.
O tempo anda mais devagar no relógio dos moçambicanos do que nos nossos, o que desesperava o empresário. O empregado demorou uma eternidade a fazer a primeira aparição, que apenas serviu para se inteirar do óbvio (queríamos almoçar), e uma outra eternidade a aparecer com as listas.
"São omeletas para todos", ordenou o homem mais rico de Portugal quando, após uma terceira eternidade, o empregado apareceu para tomar conta dos pedidos. À primeira fiquei surpreso, mas só precisei de segundos para racionalizar e aprender a lição. A tarde de trabalho teria ido pelo esgoto abaixo se cada um de nós stressasse com diferentes pedidos o empregado de mesa e o pessoal da cozinha.
Na Grécia Antiga, o berço da democracia, em épocas de emergência, os cônsules nomeavam um ditador para assumir o poder até a situação regressar à normalidade (para não ficarem com ideias, devo esclarecer que o ditador estava em funções por um período curto e era pessoalmente responsabilizado pelas decisões tomadas).
Lembrei-me de Américo Amorim (o melhor, a par de Belmiro de Azevedo, que emergiu na nossa classe empresarial após o 25 de Abril) a propósito do BPN, sem que isso tenha a ver com a curiosidade dele ter estado ligado ao seu parto (foi, em 93, um dos acionistas fundadores) e enterro (é acionista do BIC).
"Não tenho cultura para esse número, meu amigo", respondeu-me uma vez, quando lhe perguntei se era verdade que, para efeitos da sua privatização, a PT tinha sido avaliada em mil milhões de contos e que ele estava interessado em comprá-la.
Calcula-se que a conta final do BPN ande à volta de seis mil milhões de euros. Como, tal como o meu amigo Américo, não tenho cultura para estes números, só fiquei esclarecido sobre a real dimensão da tragédia quando soube que seis mil milhões de euros são, de acordo com um estudo da Visa,o impacto económico positivo dos Jogos de Londres 2012 na economia inglesa. Dito por outras palavras, para os nossos bolsos, o BPN são uma espécie de Olimpíadas. Só que ao contrário.
Experiências com ratos demonstram que é possível estar acordado e ter o cérebro parcialmente a dormir. Essa é a explicação mais bondosa para o facto de o governador do Banco de Portugal ter demorado sete anos a perceber que algo de muito errado e ilegal se passava no BPN.
Podem aventar-se outras explicações para o facto de Vítor Constâncio ter ignorado as reservas que os auditores da Deloitte levantavam às contas do banco e os alertas constantes do trabalho publicado em 2001 na capa da "Exame", denunciando irregularidades e levantando bem fundamentadas dúvidas sobre a gestão de Oliveira e Costa.
Falar na desadequada graduação das lentes dos óculos de Constâncio pode ser uma piada de gosto duvidoso. Considerar que se tratou de uma letal combinação de negligência e incompetência é uma hipótese mais plausível, mas também muito dolorosa, pois ele não só não está arrolado como cúmplice involuntário desta gigantesca burla como, ainda por cima, acabou recompensado com uma vice-presidência do Banco Central Europeu.
Enquanto Portugal dormia sossegado, na doce ignorância, uma data de gente conhecida arruinava o BPN, como está documentado nos 70 volumes e 700 apensos que constituem o processo legal de uma catástrofe financeira, que apesar de ainda não ter conhecido o seu epílogo já nos custou, grosso modo, o equivalente a um 13.º mês para todos os contribuintes.
Da longa lista dos beneficiários da catástrofe consta o clássico Vale e Azevedo, que urdiu um ardiloso esquema para sacar dois milhões de euros ao BPN.
Dias Loureiro não poderá devolver um dólar sequer dos 71 milhões USD que gastou a comprar duas tecnológicas em Porto Rico (que faliram logo de seguida...) porque não tem nada em seu nome, nem mesmo o famoso taco de golfe que mandou fazer no Japão e ele garante ser o melhor do Mundo.
Duarte Lima, outro nome do Gotha cavaquista, comprou uma off-shore ao BPN e sacou um empréstimo de dois milhões de euros ao Insular, o banco fantasma de Cabo Verde do grupo.
Cavaco e a sua filha Patrícia lucraram, em menos de dois anos, 375 mil euros (mais ou menos o que ganha numa vida um português médio), num negócio com acções da SLN (a holding que controlava o BPN), vertiginosamente valorizadas em 140%.
Tenho a certeza de que Cavaco e Vale e Azevedo não são madeira da mesma árvore. Sei que o PR deve estar arrependido da amizade e protecção que deu a Dias Loureiro e Duarte Lima. E acredito que se soubesse o que sabe hoje não aceitaria o negócio de favor que lhe foi proporcionado pelo seu ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
Mas estamos a viver aqueles tempos em que "já não é possível dizer mais, mas também não é possível ficar calado" (cito Manuel António Pina). Por isso declaro que não sinto a necessidade de nascer duas vezes para ser tão honesto como Cavaco.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
Até para roubar bancos é preciso ter estudos, estar bem relacionado (a palavra chave é networking) e familiarizado com as novas tecnologias. Olhem bem para o desgraçado destino dos dois brasileiros que no Verão de 2008 tentaram assaltar o balcão do BES de Campolide. Um acabou no cemitério e outro paraplégico. Uma tristeza!
Onde já lá vão os tempos de John Dillinger ou do romântico par Bonnie & Clyde. Agora, para roubar um banco não basta ter o cérebro povoado por uma pequena aglomeração de neurónios apenas habituados a orientarem actividades básicas como comer, dormir e disparar armas.
Hoje em dia, um bom ladrão de bancos precisa de uma licenciatura em Economia (ou Gestão), de ostentar no curriculum uma passagem pelo Governo ou pelo Banco de Portugal (as duas acumuladas ainda é melhor) e ser senhor de um cérebro habituado ao raciocínio indutivo e aos altos mistérios da especulação.
Excepção feita aos dois infelizes do assalto ao BES de Campolide, toda a gente sabe que já não há nas agências bancárias dinheiro vivo que se veja – e que as poucas notas que existem estão guardadas em cofres de abertura retardada.
Careca de saber isto, o gang da retroescavadora optou, inteligentemente, por ir buscar as notas ao local onde os bancos as depositam para as fazer chegar aos clientes – as caixas multibanco. Em 2010, esta quadrilha roubou 16 ATM, entre o Alentejo e Algarve, em golpes minuciosamente preparados, concretizados de madrugada após pedirem previamente emprestada uma retroescavadora com pá traseira, o modelo adequado ao fim em vista.
Na minha opinião, foi muito trabalho, bastante competência e uma enorme dose de risco de ser preso para um lucro relativamente modesto. Os 16 roubos terão rendido cerca de meio milhão de euros (a estimativa é 30 mil euros por multibanco). Ou seja cada um dos quatro membros do gang terá encaixado uns 125 mil euros.
Não é mau, mas é menos que os 148 mil euros de lucro que Cavaco obteve em 2003 com a venda de 105.378 acções da SLN (valorização de 140%), a holding que controlava a 100% o BPN e era gerida por Oliveira e Costa (seu antigo secretário de Estado e ex-colega no Banco de Portugal) e por Dias Loureiro (seu ex-ministro e conselheiro de Estado).
Hoje em dia para roubar um banco é preciso estar lá dentro. No sentido literal, como no meu filme preferido sobre assaltos a bancos (Inside man, de Spike Lee, com Clive Owen, Denzel Washington e Jodie Foster). Ou no sentido figurado, como é demonstrado em Inside Job, de Charles Ferguson, ou na dramática tragédia do BPN, que nos vai custar cinco mil milhões de euros, uma realização de Oliveira e Costa com Dias Loureiro num dos principais papéis.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias