Antes desta inevitável fúria liberalizadora da legislação laboral, os patrões queixavam-se de que contratar um trabalhador equivalia a casar com ele para toda vida. No geral tinham razão. Apesar de ser bastante permissiva quanto a despedimentos colectivos (não foi por acaso que cresceram 54% entre 2010 e 2011), a lei portuguesa ainda é bastante rígida no que toca ao despedimento individual.
Não faz sentido que um empregador se sinta acorrentado a um trabalhador. Da mesma maneira que não estava certo que um casamento só pudesse ser dissolvido se ambos os cônjuges se pusessem de acordo em divorciar-se. Para um casamento ser justo, ambas as partes devem ter a liberdade de a qualquer momento lhe porem termo.
Está mal que um trabalhador seja livre de se despedir e que a contrária não seja verdadeira. Estava mal que uma mulher não pudesse divorciar se o homem se opusesse - ou vice-versa.
A nova lei do divórcio flexibilizou a ruptura do contrato entre um casal e só não inverteu a tendência de queda dos casamentos porque, no entretanto, o mercado das relações entre as pessoas se ajustou, escapando à rigidez e iniquidade da legislação através das uniões de facto, o equivalente afectivo-sexual ao expediente dos recibos verdes usado no mercado do trabalho.
A instituição casamento está em crise, o que se compreende até porque os seus principais propagandistas são solteiros e comprometidos para a vida com o celibato, o que configura aquela situação equivoca do "olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço".
Os portugueses casam-se cada vez menos. Entre 2000 e 2011 o número de casamentos caiu de forma continuada de 53.899 para 37.166. E casam-se cada vez mais tarde. Em 20 anos, a idade média dos noivos subiu quatro anos, para 28 (mulheres) e 30 anos (homens).
Não há estatísticas para a evolução das uniões de facto, mas tudo leva a crer que cresce em regime de vasos comunicantes com a quebra nos casamentos. O facto dos filhos de pais não casados representarem já cerca de 40% dos nascimentos é a prova dos noves desta tese.
A ligeira interrupção no crescimento exponencial dos divórcios - de 4.380 (2000) para 19.532 (2010) - registada no ano passado (18.211) não deve ser lida como um inversão de tendência, mas antes à luz da lei da precedência. Só podemos divorciar-nos se estivermos casados - e há cada vez menos portugueses casados.
São cada vez menos os casamentos que resistem ao teste dos tempos. São cada vez menos os empregos que resistem às alucinantes mudanças da economia. O emprego para a vida acabou. O casamento para a vida também - como bem o notou o Frei Bento Domingues: "Não vejo como o casamento possa ser estável um mundo tão instável".
Neste mundo em desvairada mudança, a única solução para evitarmos estarmos no desemprego, afectivo ou laboral, é sermos capazes de estar sempre a reinventar-nos. Este é o desafio do século XXI.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
Dantes, sempre que não conseguia escapar a um casamento ou funeral, ficava enrascado na hora de apresentar cumprimentos. Desejar felicidades ou entregar condolências sempre me pareceu um estereotipo frio – e eu sentia que tinha que dar mais. Se estava metido naquela encrenca era porque laços afectivos me ligavam aos noivos, morto, ou seus familiares.
Cheguei a ensaiar, sem sucesso, fórmulas prefabricadas para pronunciar nesse momento, que só deixou de ser, para mim, um doloroso transe quando fiz a sensacional descoberta de que afinal não é preciso dizer nada. A táctica consiste em deixar-nos ficar para o fim da fila e, chegada a nossa vez, actuar de uma das maneiras que passo a pormenorizar.
No casório, há que afivelar o ar mais feliz do Mundo, olhar, olhos nos olhos, a noiva e o noivo, e abraçá-los enquanto lhes murmuramos aos ouvidos uma frase estúpida, do estilo “Vais ver que o Ramires não vale a ponta de um corno” - dita de forma ininteligível.
No velório, há que compor um ar sombrio, baixar o olhar e aplicar um abraço, breve mas apertado, enquanto se murmura ao ouvido dos familiares do falecido uma frase a despropósito, do estilo “O barco para o Seixal apanha-se no Cais do Sodré” - pronunciada de forma arrastada.
O método está testado e é 100%eficaz. Naquela situação, as pessoas ouvem o que querem ouvir e traduzirão as frases despropositadas por outras, adequadas à circunstância.
Pode ficar tranquilo. Não passará pela cabeça de ninguém que está a aproveitar aquele momento solene para expressar a sua opinião sobre o mais caro reforço do Benfica ou prestar informações sobre os transportes fluviais no Tejo.
Ora o que é válido para casamentos e funerais também se aplica aos programas eleitorais dos partidos. Sem tirar, nem pôr.
Manuela Ferreira Leite tem toda a razão quando diz que os programas são uma inutilidade, porque quase ninguém os lê (diz ela) – e ninguém no seu perfeito juízo acredita no que lá vem escrito (digo eu). O pessoal dana-se é por saber as maroteiras que ela faz na confecção das listas.
Eu até estou disposto a acreditar que os políticos estão a ser sinceros quando fazem as promessas. Que Durão não mentiu de propósito quando jurou não aumentar os impostos . Que Sócrates acreditava que ia mesmo lançar a Ota e o TGV.
O problema não é o que eles dizem, mas sim o que os eleitores querem ouvir – e isso depende mais da credibilidade de quem diz do que das palavras que lhe saem da boca.
O problema é que vai haver drama se os políticos não escutarem o que um eleitor exigente escreveu num muro do Campo Alegre (Porto). “Queremos mentiras novas!”. E boas, já agora – acrescento eu.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias
Estou a divorciar-me. Após dez anos de separação, vou legalizar o fimpatrimonial e fiscal de um casamento que se esgotou em 14 anos, durante os quais produziu dois filhos, muitas alegrias e algumas tristezas, até que ficou completamente desidratado., murchou e morreu.
Comparo os 14 anos do meu casamento aos 18 anos que durou a minha ligação com o Expresso - sempre a trabalhar para a mesma empresa e com a mesma profissão. Trata-se de proezas irrepetíveis na próxima geração.
Nestes tempos de desvairadas mudanças de vidas e de costumes, já não vai haver mais lugar para relações duradouras, sejam elas afectivas ou laborais. O Mundo acelerou, a oferta diversificou-se, o ritmo trepidante da mudança assassinou a estabilidade.
Para sobreviver e triunfar, estamos condenados a viver num “ zapping” permanente de adaptação a uma realidade em constante evolução. O emprego para a vida já não existe. A profissão para a vida está em vias de extinção. E o casamento para a vida naufragou nesta enxurrada.
O casamento sempre foi um negócio, envolvendo activos tangíveis e intangíveis.
Os tangíveis sempre foram previamente regulados. À partida, fica definido o regime a aplicar em caso de quebra do contrato; partilha total dos bens, apenas dos adquiridos ou separação total.E são frequentes os acordos pré-nupciais que detalham as clausulas penais a aplicar em caso de rompimento contratual.
O casamento desfaz-se quando uma das partes considera estar a ser prejudicada no deve e haver de intangíveis desta empresa a dois (paixão, amor, afecto, conforto, solidariedade e prazer sexual) e acha que poderá ser mais lucrativo prosseguir a sua actividade a solo ou com um novo sócio/a.
Numa sociedade livre, deve haver uma simetria entre a relação laboral e a matrimonial. Não faz sentido usar a lei para agrilhoar um empresário a um trabalhador que ele não quer manter. Também não faz sentido usar a lei para obrigar um cidadão a manter-se casado com alguém com quem ele deseja continuar a partilhar a vida.
O casamento é um negócio que se desenvolve nos incontroláveis domínios da paixão. Não é um imperativo moral, sagrado e incorruptível para seguidores de uma determinada ideologia ou religião - e apenas descartável para uma minoria de amorais marxistas e ateus.
Aos olhos da Igreja Católica, Sá Carneiro viveu em pecado com Snu. Paulo Portas, o líder do nosso partido mais conservador, é um solteirão -e à boca pequena especula-se sobre a sua orientação sexual. Haider, o líder da extrema direita austríaca, era homossexual. Manuela Ferreira Leite, a líder do PSD, está separada.José Sócrates, o primeiro ministro e líder do moderado PS que recusou o casamento gay, é divorciado.
Curiosamente, só os líderes dos dois partidos da extrema esquerda do nosso arco parlamentar, Jerónimo e Louçã, mantêm casamentos que preenchem os requisitos exigidos pela Igreja e por um Presidente que publicitou estar a engolir um sapo quando ratificou a nova Lei do Divórcio. Já chega de hipocrisia, não acham?