A anacrónica idiotice da Queima das Fitas
Como o golfe ainda não tinha atingido entre nós os actuais níveis de popularidade, bombardeei com ovos e tomates podres o cortejo de gatos pingados que, há coisa de 30 anos, desfilava junto à Cordoaria, no Porto, na tentativa (que se viria a ser bem sucedida) de ressuscitar a Queima das Fitas, que os estudantes de Coimbra tinham feito o favor de enterrar com a crise académica de 69.
Não me arrependo, nem mudei de opinião. Continua a achar uma rematada e anacrónica idiotice os cortejos da Queima, bem como o essencial da parafernália que envolve esta liturgia, como os trajos académicos, praxes e bênção de pastas. Excluo desta consideração tudo quanto diga respeito a concertos, copos e etc, que só podem merecer o meu elogio, pois esta vida são dois dias e a estudantada que anda para aí com as hormonas ao saltos tem todo o dever de se divertir e aliviar as tensões, pois os exames vêm aí e, como recomendava Wilhelm Reich, no indispensável “Combate Sexual da Juventude”, três quecas por semana são o mínimo para levar uma vida saudável.
Mas como já não tenho nem idade nem pachorra para atirar bolas de golfe, isqueiros ou telemóveis ao cortejo (para corresponder com alguma modernidade ao arcaísmo bafiento da coisa), arremesso uma história a essa tropa que ainda não arranjou tempo, capacidade ou espelho para ver a figura grotesca que anda a fazer.
Vicky Harrison, inglesa de 21anos, já cá não estava quando soube dela e por que é que a sua travessia da vida foi tão curta e dramaticamente abreviada. Na foto, publicada neste jornal, aparecia de cabelos louros e a cara aberta num luminoso sorriso - ambos, sorriso e cor dos cabelos, com aspecto de genuínos. Mal concluiu a formação em Som e Imagem, desatou a procurar emprego, acompanhando de telefonemas os curriculos que enviou para tudo quanto era produtora de televisão. Ninguém lhe escreveu ou telefonou de volta, mas ela não desanimou. Baixou de exigência e candidatou-se a empregos de repositora de supermercado e balconista de loja.
Ao cabo de dois anos e mais de 200 candidaturas sem o telemóvel e as caixas de correio (electrónica e tradicional) lhe trazerem boas notícias, Vicky desistiu. Engoliu os comprimidos todos que encontrou em casa e partiu.
Num país como o nosso, em que só não é universitário quem não quer, há 44 mil licenciados sem trabalho, a taxa de desemprego jovem atingiu os 20%, e ter um canudo já não é mais sinónimo de esperança de uma vida desafogada, andar pelas ruas a pavonear-se em trajo académico é tão trágico-cómico como a orquestra ter continuado a tocar após o Titanic ter chocado com o iceberg.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias