O que me espantou em "Skyfall" não foi o vilão Raoul Silva (magnificamente interpretado por um Bardem oxigenado) acariciar lubricamente as virilhas de Bond. O que mais me surpreendeu foi a resposta equívoca - "E quem disse que é a primeira vez?" - de um 007 que, de acordo com a publicação científica britânica "Sex Roles", teve 46 parceiras sexuais, da Ursula Andress em "Dr. No" (1962) até Hale Berry (a minha preferida) em "Morre noutro dia" (2002).
Um James Bond bissexual? Já esteve mais longe, até porque o segredo da sobrevivência da saga 007 no ambiente ultracompetitivo de Hollywood tem sido a sua capacidade de inovação e adaptação a um mundo em vertiginosa mudança.
A série Bond foi pioneira no aproveitamento dos filmes para vender carros (foi o vil metal que impôs o BMW 750 no lugar do Aston Martin DB5 prateado ressuscitado por Sam Mendes para morrer em "Skyfall"), bebidas (a Heineken pagou para James preferir cerveja ao seu clássico martini "stirred not shaken"), relógios (o Omega Seamaster vai no 7.oº filme consecutivo),telemóveis e tablets Xperia, televisores Sony e por aí adiante.
Os 007 são o mais luminoso caso de product placement, ou seja, do negócio de meter publicidade dentro das fitas. E a escolha das localizações também não é inocente. As cenas rodadas em Xangai e Macau só uma óbvia piscadela de olho ao mercado chinês, que no ano passado gastou 2,1 mil milhões de dólares em produtos made in Hollywood.
Claro que uma coisa são 2000 anos e outra são 50, mas também é verdade que no último meio século o Mundo acelerou mais do que nos restantes 1962 da era cristã. Por isso, o Vaticano terá muito a ganhar se estudar com atenção como a saga 007 se tem adaptado à mudança de vidas e costumes.
Alguma coisa está mal quando Fátima perde meio milhão de peregrinos, a diminuição de donativos obriga a Igreja a fazer despedimentos e vêm a público casos como o do vice-reitor do seminário do Fundão.
Alguma coisa está muito mal quando num mundo que treme de incerteza, as pessoas fogem da fé em vez de nela buscarem refúgio e conforto.
E o que está mal não se resolve tentando refrescar a imagem de uma religião revelando que a vaca e o burro não podiam ter assistido ao nascimento do Menino (mas que, por piedade e amor à tradição, podem ficar no presépio) e que os Reis Magos terão vindo do Sul da Península Ibérica (quem sabe se não serão algarvios de Silves?).
Está na hora de Igreja Católica iniciar um processo de perestroika e glasnost que reveja situações tão absurdas e anacrónicas como barrar o acesso das mulheres ao sacerdócio e a questão do celibato.
É melhor reconhecer os direitos das mulheres e homens da Igreja a terem uma vida sexual saudável, independentemente da sua orientação, do que reprimi-la com os resultados à vista no lamentável caso do padre do Fundão
Mal se passa o cabo do meio século de existência, a tendência é para começarmos a abusar de frases começadas por "no meu tempo... " e seguidas por idiotices (o ar era mais arejado, o açúcar mais doce, a água mais aquosa...). O lado B da experiência de vida é o aumento exponencial da nossa capacidade de azucrinar o juízo às pessoas mais novas que por algum motivo são obrigadas a aturar-nos.
No meu tempo, as raparigas não podiam ir de calças para a escola, só havia um liceu misto no Porto (o Garcia de Orta), as telefonistas não podiam casar-se, os polícias eram velhos, pançudos e usavam todos bigode - e se alguém ousasse defender em público que as mulheres deviam ir para a tropa o mais provável era ser logo internado no Conde Ferreira, o hospital dos malucos.
Os tempos mudaram. Hoje, as mulheres podem ser polícias ou militares, e vestirem calças, saia ou calções. Mais. Toda a gente pode casar, até os gays. A única excepção são os padres e, vá lá, as freiras, que essas não podem escolher o noivo (são todas casadas com Deus).
As mulheres continuam a ser mais afectadas pelo desemprego e estarem sub-representadas nos postos de comando da política e das empresas - só há uma mulher a presidir a uma empresa do PSI 20 e duas entre onze ministros. Mas a eleição de Assunção Esteves para a presidência do Parlamento, aplaudida de pé, urbi et orbi, por gente de todos os credos, é sintomática do caminho já percorrido no sentido de conceder igualdade de oportunidades aos cidadãos dos dois sexos.
Em Portugal, depois do BCP ter deixado de usar o género como critério de admissão, a Igreja Católica passou a ser a única grande instituição a discriminar as mulheres.
E quando o patriarca de Lisboa tentou abrir uma janela neste quarto bafiento e obscuro da Igreja, ao afirmar que "teologicamente não há nenhum obstáculo à ordenação de mulheres", logo lhe caíram em cima os radicais do Vaticano, invocando as palavras escritas por João Paulo II - "Declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres e que esta sentença deve ser considerada definitiva por todos os fiéis da Igreja".
Transformar em dogma a discriminação das mulheres é teimar em mostrar a face retrógada de uma Igreja que nunca perdoou a Eva o alegado pecado original de ter levado Adão a cair na tentação de comer a maçã - e que se revela no carácter vingativo de hereditários de punições constantes do Génesis, como o "darás à luz com dor" ou o "ganharás o pão com o suor do teu rosto".
Se quiser pertencer a este tempo e ser atractiva para as novas gerações, o Vaticano tem de rever os dogmas do celibato dos padres e deixar de discriminar as mulheres, vedando-lhes o acesso ao sacerdócio.
Dou-me muito bem com o hábito do banho diário. Passam-se anos sem tomar um banho de imersão (talvez não fosse assim se tivesse uma daquelas banheiras modernas com jacuzzi), mas não dispenso o duche matinal, rápido, mais para o frio do que para o tépido, com um jacto forte - detesto quando, por falta de pressão, a água sai a pingar.
O duche diário (que pode ser bidiário quando, no fim de um dia quente, chegámos pegajosos a casa) até pode mau para a pele, como argumentam alguns dermatologistas. Mas é óptimo, e não só do ponto de vista higiénico. É um auxiliar tão precioso como o café no milagre da nossa ressurreição diária após uma noite dormida a correr. E, confesso, dá-me muito prazer sentir a água a escorrer-me pelo corpo.
A componente voluptuosa do duche não passou despercebida ao cardeal Segura, arcebispo de Sevilha durante a guerra civil, que considerou o banho como “uma invenção dos pagãos, senão do próprio diabo”.
Apesar desta declaração desassombrada, estou em crer que a Igreja Católica recomenda aos fiéis a prática regular do banho. Desde esses tempos bárbaros, em que os legionários pró-franquistas (a trincheira de Segura) gritavam “Viva la Muerte!”, o mundo mudou muito e o Vaticano vai-se esforçando por acompanhar essa evolução, se bem que nem sempre os homens da Igreja consigam estar em sintonia com os novos tempos.
Parece-me mal que o antagonismo do cardeal patriarca ao bispo do Porto o tenha levado a criticar publicamente D. Manuel Clemente por ter aceite o Prémio Pessoa – e a transformar numa espécie de réplica das eleições do Sporting a escolha para a presidência da Conferência Episcopal Portuguesa.
D. José Policarpo não esteve bem ao forçar a sua eleição (à terceira volta!) para um lugar que já ocupara (1999-2005), jogando o prestigio do seu cargo para derrotar a candidatura do bispo do Porto, provocando uma dispensável tensão Norte/Sul na igreja e envolvendo-se numa manobra lida como de pressão para que o Vaticano lhe prolongue por mais três anos o mandato como patriarca de Lisboa, apesar já ter atingido a idade da reforma canónica (75 anos).
Tive uma educação católica, mas na adolescência afastei-me de uma igreja incapaz de dar respostas ao vendaval de coisas novas que a partir dos anos 60 começaram a abalar o mundo a uma velocidade estonteante – e que teima em não abrir de princípios bolorentos, como a discriminação da mulher e o celibato dos padres.
Ao fim e ao cabo, como poderia olhar para D. José Policarpo como um modelo, se ele é incompleto, por ser solteiro e nunca ter vivido com uma mulher. Porque viver com uma mulher é uma das coisas mais difíceis que um homem tem de aprender nesta vida.
A Igreja está mesmo a precisar de uma encíclica Rerum Novarum 2.0.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias
Não sou crente. Fui baptizado, andei na catequese e até fiz as duas comunhões, na igreja de Santo Ildefonso. O facto de ser completamente desafinado vedou-me liminarmente qualquer hipótese de ser um menino de coro. Mas até podia ter feito uma carreira como acólito não fosse o azar que sublinhou a primeira e única vez que ajudei à missa. Em vez fazer ouvir um toque solitário e austero, estraguei a solenidade do momento alto da celebração com um alegre e profano repicar do sino.
Nunca consegui apurar o peso que este incidente perturbador (que atribuo à conjugação entre o nervosismo da primeira vez e ao papel pernicioso desempenhado pelas mangas excessivamente largas e compridas da veste que atrapalharam o controlo do sino pela minha mão direita) teve no meu irreversível afastamento dos caminhos da Igreja.
Vem este registo de interesses na coisa religiosa a propósito de a Igreja Católica se ter constituído parte interessada na questão da abertura (ou não) dos hipermercados nos domingos à tarde, uma das querelas terrenas que preenchem a nossa agenda política.
Com o enorme peso que a Igreja empresta à sua palavra, D. António Marto veio a público manifestar-se contra a liberalização dos horários das superfícies comerciais com áreas superiores a dois mil metros quadrados, impedidos de abrir às tardes de domingo num dos actos fundadores do guterrismo – Guterres deixou cair o ministro Daniel Bessa (uma das estrelas dos Estados Gerais preferiu deixar cair uma das estrelas dos Estados Gerais que o levaram ao poder) para poder dar esta piscadela de olho às retrógadas associações de pequenos comerciantes.
“O domingo é um dia de interioridade para Deus, para consigo mesmo, para o repouso e para a família”, argumenta o bispo de Leiria-Fátima, fundamentando a sua oposição à liberalização do horários dos hiper.
Esta posição da Igreja não é muito consequente. Os hipermercados estarem fechados ao domingo à tarde só pode estar a contribuir para afastar da missa os fiéis que trabalham durante a semana e têm de aproveitar o Dia do Senhor para irem às compras.
Como é nosso hábito ir de manhã à missa dominical, a manutenção dos hipers fechados à tarde eterniza um dilema cruel – usar a manhã de domingo para alimentar o espírito, na Igreja, ou para abastecer a dispensa e o frigorifico, nas novas catedrais do consumo.
Acresce que para ser consequente na defesa de um domingo consagrado à interioridade, para Deus e para connosco, D. António Marto ganharia em ir um pouco mais longe nas suas propostas por forma a possibilitar que as dezenas de milhares de portugueses que trabalham nesse dia (nas lojas, padarias, cafés, restaurantes, transportes públicos, museus, jornais, canais de rádio e televisão, etc) deixassem de ser obrigados a fazê-lo e pudessem consagrar esse dia ao repouso e à família.
Por todas estas razões, não me parece bem que a Igreja se tenha constituído parte interessada na questão dos horários dos hipers aos domingos. Nem a Igreja, nem tão pouco os pequenos comerciantes que indiferentes aos interesses e necessidades da sua clientela teimam em manter-se de porta fechada.
Na verdade, se os hipermercados forem autorizados a abrir ao domingo à tarde, os únicos prejudicados são as cadeias de supermercados (Pingo Doce, Lidl, Minipreço e Supercor)que têm vivido sem concorrência dos hipers nesse horário. E esses estão calados.