O BCP e a parábola da sanita entupida
Vivi em Lisboa no ano quente de 1975, sob o pretexto de estudar Psicologia no ISPA, que ficava na rua da Emenda, paredes meias com a sede do PS.
Dormia na Flamenga (Santo António dos Cavaleiros) num T1 alugado, em que a renda mensal de 2100 escudos era dividida pelos três residentes – eu e os meus camaradas Francisco Sardo e Francisco Vasconcelos, que tratávamos por Toupeira em virtude de usar óculos com lentes ainda mais grossas que os fundos das garrafas.
O apartamento era acanhado. Como tinha sido ele a alugar a casa, o Toupeira atribui a si próprio o quarto. Eu instalei-me na sala, com um colchão e uma estante de tijolos. O Sardo, que à época cumpria o serviço militar na EPAM, ficou com o hall de entrada.
Como os três andávamos muito entretidos a fazer a revolução na rua, é natural que negligenciássemos a manutenção da casa.
A lâmpada da entrada – o aposento do Sardo – fundiu sem que ninguém (nem ele próprio) se tenha dado ao trabalho de a substituir, apesar dessa infeliz ocorrência nos obrigar a usar uma lanterna ou fósforos sempre que entravamos em casa, para evitar tropeçar numa fotocopiadora de proporções bíblicas, «expropriada» no assalto à sede do CDS no Largo do Caldas que se seguiu ao 11 de Março, que nunca mais na sua vida cumpriu a sua função de duplicar documentos.
Mais tarde, e penso que em simultâneo, a casa de banho ficou severamente incapacitada: a lâmpada fundiu e a sanita entupiu.
Como é óbvio, nenhum de nós tinha agenda ou disponibilidade de espírito para sequer comprar uma lâmpada. A urgente e nobre tarefa de construirmos um Mundo melhor absorvia-nos de tal maneira que seria absurdo pensar que disporíamos de tempo para contratar um canalizador que desentupisse a sanita.
Prudentemente, abstive-me de usar a sanita e passei a satisfazer fora de casa as minhas necessidades fisiológicas de carácter líquido e sólido. Atitude que, estou convencido, também foi adoptada pelos meus colegas de apartamento.
A catástrofe deu-se um par de meses depois. Apesar de todos os três sermos ateus encartados, alguém (cuja identidade desconheço) acreditou, que por algum estranho e suave milagre, a sanita se tivesse desentupido pelos seus próprios meios - e cometeu o terrível erro de puxar pelo autoclismo. Não é preciso ter os dotes da Maya para adivinhar o que aconteceu.
O transbordo do esgoto foi a gota de água que fez transbordar o copo da minha paciência. Fiz as malas, abandonei o curso de Psicologia e regressei ao Porto.
Vem a recordação deste triste episódio, a propósito de um outro, ainda mais mal cheiroso: o do BCP.
Tenho muita pena que o Governo, preocupado com o entupimento do maior banco privado português, se tenha precipitado e cedido à tentação fácil de puxar logo pelo autoclismo, ao optar pela solução Santos Ferreira/Vara.
Teria sido muito mais assisado e prudente aconselhar os accionistas a arranjarem um canalizador bom e profissional (como por exemplo o Cadilhe) para desentupir primeiro a sanita.
Jorge Fiel
(www.lavandaria.blogs.sapo.pt)
Esta crónica foi hoje publicada no diário económico Oje (www.oje.pt)