Quarta-feira à noite, no aeroporto de Stansted, comprei o Daily Telegraph porque estava cheio de sede. Pode parecer bizarro, mas não é. O quiosque estava a fazer uma promoção. Quem adquirisse o jornal, por 1,20 libras, levava de borla uma garrafa de 750 ml de água mineral Braxton, que se comprada isoladamente custava 1,90 libras.
Para mim foi um bom negócio. Por cerca de 1,5 euros cometi um triplo assassinato: matei a sede, o tempo e a curiosidade.
A leitura do Telegraph preencheu as duas horas e pico da viagem de regresso após cinco dias em Londres, e fiquei a saber uma data de coisas interessantes, como, por exemplo, que no Reino Unido passou a ser incompatível ser polícia e ter tatuagens na cara, pescoço ou mãos.
A manchete era sobre a decisão do attorney general britânico (que equivale à nossa PGR) de proibir a divulgação pública de 27 cartas que o príncipe Carlos enviou a diversos ministros do governo Blair. Motivo alegado? A publicação das cartas prejudicaria seriamente o seu futuro papel de rei dos britânicos. Dá para imaginar os disparates que o herdeiro da Coroa terá garatujado (ao que parece, a caligrafia dele assemelha-se perigosamente aos hieróglifos egípcios).
Achei bastante graça à resposta que Hilary Mantel - a primeira mulher a ganhar por duas vezes o Man Booker Prize - deu quando lhe perguntaram onde ia gastar as 50 mil libras do prémio. "Na rehab (desintoxicação)", respondeu a mulher, cuja fotografia a 4 colunas ao alto dominava a primeira página. Da primeira vez, em 2009, em resposta à mesma pergunta, ela disse que ia torrar a nota toda em "sexo, drogas e rock'n'roll".
Para mim foi bom negócio pagar 1,5 euros por uma garrafa de água e um jornal atraente e bem escrito, com um caderno principal de 38 páginas broadsheet, mais um 2.0 caderno económico de 12 páginas e um 3.0º desportivo, com 20 páginas. Mas duvido que tenha sido bom negócio para os editores do Telegraph.
Doeu-me na alma ver exemplares do Telegraph, ainda por folhear, espalhados como lixo pelas cadeiras e cestos de papéis. Como me doía ver, no nosso país, gente a chegar a uma banca de jornais e pedir o copo de vinho branco ou o garfo de peixe - e não o título que trazia essa oferta, na vã tentativa de sustentar artificialmente a sua circulação.
Um jornal tem de se dar ao respeito. Produzir boa informação não é barato. Imprimi-la e distribui-la custa dinheiro. Por muito tentador que seja o atalho que pode dar resultados imediatos, não podemos esquecer-nos que ele é um passo no sentido do suicídio a prazo da indústria dos jornais.
No início, o modelo de negócio dos jornais era simples. Consistia em vender informação e opinião aos leitores - e vender leitores aos anunciantes. O caminho certo é o regresso às origens, fazendo jornais que valham por si e os leitores achem que valem o dinheiro que custam. Ninguém no seu perfeito juízo pede boleia a um taxista, pois não?
Como tenho a mania (um bocado chata, reconheço) de me pôr a contar histórias por tudo e por nada, quando os meus amigos de outras profissões me questionam, em tom curioso ou provocatório, sobre a utilidade dos jornais em papel neste mundo a abarrotar de informação, respondo-lhes recordando dois episódios por mim vividos.
O mais recente passou-se há exactamente cinco anos, em Nova Iorque. Ao fim-de-semana não há nada melhor do que começar o dia com uma grande caminhada. Por isso, numa manhã de sábado, atravessei o Central Park lateralmente, de este (onde fica o Days Inn, o hotel onde eu estava hospedado) para oeste (onde fica a Museum Mile).
Estava lindo, com um manto branco a cobrir o verde do mais famoso dos parques, mas como presumo todos sabem a neve é bonita para se ver à distância, não para se caminhar em cima. Como agravante, nos passeios uma fina camada de gelo dissimulava ardilosas poças de água.
Por duas vezes, ao atravessar a rua, meti a pata na poça, ou seja, mergulhei ambos os pés em poças de água camufladas por traiçoeiras camadas de gelo. Como tenho por hábito viajar sem calçado de «back up», creio que compreendem porque fiquei aflito quando senti que a água tinha ultrapassado sem cerimónia a pele das sapatilhas Nike e o algodão das meias pretas Calvin Klein (compradas no outlet 21 Century, em frente ao Ground Zero, a 9,99 dólares a embalagem de três pares).
O que me valeu naquele momento difícil foi o "USA Today". Sentei-me num banco. Descalcei-me. Guardei as meias encharcadas num saco de plástico (são inimigos do ambiente mas utilíssimos numa viagem), embrulhei os pés húmidos em folhas do caderno Sports (dedicado ao arranque da época da Nascar) e voltei a calçar-me. Um conforto. O jornal evitou-me o mais que certo resfriado.
Não foi a primeira vez que fui salvo pelos jornais. Num belo dia de Abril, em 2004, saí do Porto, de manhãzinha, em mangas de camisa, em direcção à Corunha. O Porto estava primaveril. Na Corunha, 300 quilómetros a norte, chovia e fazia frio. Encharcado e enregelado nas bancadas do Riazor (onde o FC Porto venceu o Depor e apurou-se para a final da Champions) usei um velho truque dos sem-abrigo e forrei o corpo com os jornais que tinha levado para pôr a leitura em dia e matar o tempo até à hora do jogo. Foi remédio santo.
Servem estas duas historietas de pretexto para lembrar que já só faltam sete dias para o bom e velho JN se reinventar e aparecer nas nossas mãos ainda mais elegante, com roupa nova e todo a cores, tão fiável e próximo como sempre, mas ainda mais vibrante, entusiasmado, apaixonado, orgulhoso da sua pronúncia do Norte - e com as mesmas qualidades de sempre no particular do isolamento térmico :-). Já falta menos de uma semana!
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Noticias
O João Carreira Bom, que, além de excelente cronista também não era parvo nenhum, achou um remédio infalível para fazer os Altos e Baixos do Expresso sem pagar a portagem de inflacionar a lista de inimigos que este tipo de coluna costuma acarretar. A receita, de uma simplicidade desarmante, consistia em elogiar as pessoas que punha a descer e criticar as que colocava a subir.
Quando alguém lhe telefonava a queixar-se por ter sido posto a descer, ele educadamente chamava a atenção para as palavras gentis que lhe dedicara. Se o motivo da reclamação era uma frase mais áspera, o Carreira Bom lembrava ao queixoso que tinha saído a subir. Usando esta técnica, designada por cobertura de risco nos meios financeiros, controlava os danos inerentes a uma rubrica agreste.
O Carreira Bom tinha o rabo escaldado e não é impossível que esta astuta prudência mergulhasse as raízes no facto de ter estado quase a ser despedido do Expresso após ter publicado na Gente uma pequena nota narrando alegadas desventuras marítimo-sexuais de um advogado, por sinal amigo de peito do patrão.
Eu teria evitado alguns dissabores se tivesse dado ouvidos ao conselho do Carreira Bom durante os três anos em que tive o encargo de fazer a coluna de Altos e Baixos da Economia do Expresso. Mas sempre fui adepto de que cada pessoa deve vestir o seu próprio fato – e o meu não contempla as meias tintas, nem o recurso ao “por um lado…” mas “por outro…” para tentar agradar a toda a gente.
Vem esta história a propósito do debate sobre o interesse dos políticos em plantar notícias e pressionar quem decide o que vai na primeira página ou abre o telejornal.
Para mim, nisto do jornalismo, há duas coisas tão óbvias como a Terra ser redonda e a água molhada:
a)Todas as fontes foram, são e serão sempre interesseiras. Ninguém no seu perfeito juízo conta algo a um jornalista se não estiver completamente convencido que tirará proveito da publicação do que acaba de comunicar;
b)Os políticos, empresários, dirigentes desportivos, agentes culturais, agências de comunicação, etc, sempre tentaram, tentam e tentarão condicionar a agenda dos Media e pressionar os responsáveis pelos fluxos informativos.
O interesse e a pressão são legítimos. Estão no papel deles. Acho tão ridículo um jornalista queixar-se disso como ouvir um guarda-redes acusar um avançado adversário de lhe ter tentado marcar golo. O papel dos responsáveis editoriais consiste em destrinçar o que é do interesse público e dos leitores do que não é, evitar que produtos tóxicos contaminem o produto que dirigem - e aguentar as consequências. Isso é o que importa. O resto é ruído e conversa mole.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias
Quando era miúdo e ia à Feira Popular, depois de andar na roda gigante e antes de jogar matrequilhos, adorava mirar-me naqueles espelhos côncavos e convexos que distorcem a imagem, fazendo-nos parecer muito gordos ou muito magros, e que , se não me engano, ficavam junto ao poço da morte, onde evoluíam motociclistas virtuosos e destemidos.
Na altura não fazia a menor ideia de que iria passar a vida numa indústria (a dos Media) que se dedica a distorcer a realidade.
Ao folhearmos os diários de informação económica somos levados a concluir que o essencial da riqueza é produzida pelo PSI 20, o nosso Dow Jones que agrupa as cotadas de maior dimensão e cujas acções são mais transaccionadas.
A cobiça alheia pela operação da PT em Marrocos, a exploração de petróleo pela Galp no Brasil e o trimestral do BES são a realidade da economia portuguesa reflectida ao espelho distorcido dos Media.
O PSI 20 é que conta e o resto é paisagem - apesar do resto serem 99,3% das empresas que têm menos de 50 trabalhadores mas produzem mais de 70% da nossa riqueza e garantem 82,6% do emprego.
Compreende-se que assim seja. Sabedoras da influência das notícias (1) nas cotações, as companhias do PSI 20 trabalham a informação e a sua divulgação com tal profissionalismo que não há-de tardar o dia em que haverá mais jornalistas nas agências de comunicação do que nas Redacções.
Justiça seja feita, não é fácil calibrar a informação, quando se dirige Redacções magras e low cost, em empresas sequiosas de receitas publicitárias que lhes equilibrem a conta de exploração. E além de ser feio é também muito imprudente morder a mão que nos dá de comer…
Tudo isto apenas para vos dizer que me estou a marimbar para as trapalhadas internas na Cimpor. O que me preocupa mesmo é que os industriais de calçado – que exportam 91% da sua produção e contribuem para o PIB com 1,4 mil milhões de euros/ano -estão desesperados, não por falta de encomendas, mas antes porque as seguradoras (e mais de metade do sector está nas mãos da Caixa) cortaram de forma cega e criminosa os seguros de crédito à exportação e eles temem perder os clientes.
Num momento em que precisamos de exportar como de pão para a boca, os gestores que não desbloqueiam os seguros de crédito merecem espaço de destaque na secção de crime e escândalo, ao lado das malfeitorias públicas dos banqueiros do Banco Privado e BPN. O problema é que eles, os industriais de calçado, são lá de cima, do Norte, de Felgueiras e S. João da Madeira - e ainda se calhar ainda não se lembraram de contratar uma agência de comunicação.
(1)Advirto que nem sequer estou a falar de notícia no conceito restritivo e fundamentalista de Hearst, que considerava notícia apenas o que alguém queria que não fosse publicado, classificando tudo o resto como publicidade.
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias
Os jornais nasceram com um modelo de negócio simples: vendiam palavras aos leitores e leitores aos anunciantes.
A rádio e a televisão forçaram os jornais a adaptar-se à concorrência de meios mais rápidos e atraentes (acrescentavam som e imagem) e que introduziram uma variante ao modelo de negócio, pois viviam apenas da publicidade, uma indústria que cresceu exponencialmente num século em que crédito e consumo foram os motores do boom económico.
A televisão tornou-se uma Meca para as marcas sequiosas de contactarem com consumidores ávidos de gastar dinheiro.
Os patrões dos jornais (mesmo os que sabiamente construíram grupos multimédia) nunca esconderam uma pontinha de inveja por um negócio que não estava dependente dos humores dos leitores, um conceito que os novos meios substituíram pelo de audiências - mais adequado, porque para consumir rádio e televisão não é imprescindível saber ler.
A revolução da Internet (que para chegar a 50 milhões de pessoas só precisou de quatro anos, contra os 13 da televisão e os 38 da rádio), com informação gratuita à distância de um clic, foi a gota de água que levou os patrões de imprensa a sacrificarem o leitor no altar das audiências.
A receita das vendas de papel foi negligenciada e a palavra de ordem passou a ser comprar audiências, a golpes de marketing, que depois seriam transaccionadas por páginas de publicidade.
A capilaridade da rede de distribuição de jornais foi destruída, a tal ponto que é mais difícil comprar hoje um jornal do que era há dez anos. Os ardinas e pontos de venda improvisados foram varridos, só sobrevivendo os quiosques com capacidade de armazenamento da parafernália que passou a parasitar jornais e revistas: DVDs, guarda chuvas, medalhinhas, sacos de praia, chinelos, cursos….
A imprensa entrou em crise no preciso momento em que os seus gestores optaram pela estratégia (no entretanto falida) de comprar audiências em vez de agradar aos leitores.
Enquanto a televisão corrigia o tiro e diversificava as fontes de receitas, com os canais temáticos pagos e distribuídos por cabo, a imprensa deixou-se ficar refém da publicidade e de gente que não compra o jornal por causa da faca de queijo – e não para o ler.
A atenção humana é o factor escasso num mundo em que todos os anos duplica a informação produzida – em 2008 foram gerados 4 exabytes, ou seja mais do que nos 5 000 anos anteriores.
Neste momento, em que todos temos as estantes cheias de enciclopédias que não vamos abrir e de DVDs que não vamos ver, e em que a publicidade vai emergir da crise com uma nova gramática, a única alternativa ao suicídio é os jornais voltarem-se para leitores.
Num mundo em efervescente mudança, em que as dez profissões que vão ser mais procuradas em 2010 não existiam há cinco anos, só sobreviverão os jornais que apostarem no jornalismo e forem capazes de ajudar os leitores a desbravar a selva da informação em que vivemos, dando-lhes coisas (escolhas, explicações e opiniões) que eles não saibam e precisem e gostem de saber.