Os jornais nasceram com um modelo de negócio simples: vendiam palavras aos leitores e leitores aos anunciantes.
A rádio e a televisão forçaram os jornais a adaptar-se à concorrência de meios mais rápidos e atraentes (acrescentavam som e imagem) e que introduziram uma variante ao modelo de negócio, pois viviam apenas da publicidade, uma indústria que cresceu exponencialmente num século em que crédito e consumo foram os motores do boom económico.
A televisão tornou-se uma Meca para as marcas sequiosas de contactarem com consumidores ávidos de gastar dinheiro.
Os patrões dos jornais (mesmo os que sabiamente construíram grupos multimédia) nunca esconderam uma pontinha de inveja por um negócio que não estava dependente dos humores dos leitores, um conceito que os novos meios substituíram pelo de audiências - mais adequado, porque para consumir rádio e televisão não é imprescindível saber ler.
A revolução da Internet (que para chegar a 50 milhões de pessoas só precisou de quatro anos, contra os 13 da televisão e os 38 da rádio), com informação gratuita à distância de um clic, foi a gota de água que levou os patrões de imprensa a sacrificarem o leitor no altar das audiências.
A receita das vendas de papel foi negligenciada e a palavra de ordem passou a ser comprar audiências, a golpes de marketing, que depois seriam transaccionadas por páginas de publicidade.
A capilaridade da rede de distribuição de jornais foi destruída, a tal ponto que é mais difícil comprar hoje um jornal do que era há dez anos. Os ardinas e pontos de venda improvisados foram varridos, só sobrevivendo os quiosques com capacidade de armazenamento da parafernália que passou a parasitar jornais e revistas: DVDs, guarda chuvas, medalhinhas, sacos de praia, chinelos, cursos….
A imprensa entrou em crise no preciso momento em que os seus gestores optaram pela estratégia (no entretanto falida) de comprar audiências em vez de agradar aos leitores.
Enquanto a televisão corrigia o tiro e diversificava as fontes de receitas, com os canais temáticos pagos e distribuídos por cabo, a imprensa deixou-se ficar refém da publicidade e de gente que não compra o jornal por causa da faca de queijo – e não para o ler.
A atenção humana é o factor escasso num mundo em que todos os anos duplica a informação produzida – em 2008 foram gerados 4 exabytes, ou seja mais do que nos 5 000 anos anteriores.
Neste momento, em que todos temos as estantes cheias de enciclopédias que não vamos abrir e de DVDs que não vamos ver, e em que a publicidade vai emergir da crise com uma nova gramática, a única alternativa ao suicídio é os jornais voltarem-se para leitores.
Num mundo em efervescente mudança, em que as dez profissões que vão ser mais procuradas em 2010 não existiam há cinco anos, só sobreviverão os jornais que apostarem no jornalismo e forem capazes de ajudar os leitores a desbravar a selva da informação em que vivemos, dando-lhes coisas (escolhas, explicações e opiniões) que eles não saibam e precisem e gostem de saber.
Calculo que durante os 18 anos que estive o Expresso participei em 1500 reuniões com gente de Lisboa. Apenas recordo um único incidente desagradável dessas 500 ou 600 horas de reunião.
Não me lembro do tema mas a discussão acalorada atingiu o clímax quando um colega meu, à época subdirector, desatou a gritar comigo e pôs um ponto final na sua argumentação berrando: «Era o que me faltava agora vir um gajo do Porto dar-me lições sobre jornalismo!».
O director adjunto que dirigia a reunião teve a arte de serenar os ânimos. E o subdirector exaltado teve a humildade de me telefonar, à tarde, a pedir-me desculpa do sucedido, evitando com este gesto bem educado que o incidente da manhã envinagrasse a nossa boa amizade.
O incidente ficou sepultado, mas passei a estar consciente que a minha denominação de origem geográfica atenuava a credibilidade das opiniões que expresso.
Lembrei-me deste episódio há pouco mais de um mês, quando participava numa sessão dos Olhares Cruzados sobre o Porto (uma louvável iniciativa do Público) e o presidente da Associação Comercial do Porto se lamentou dos tiques centralistas dos lisboetas.
Explicou Rui Moreira que a decisão da sua associação de encomendar um estudo sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa foi recebida com desdém na capital.
Perguntaram-lhe o que é nós, do Porto, tínhamos a ver com o assunto, como se a nossa condição de portuenses nos inibisse de nos pronunciarmos sobre questões com epicentro a sul de Aveiro – o que até poderíamos aceitar se o dinheiro dos nossos impostos fosse apenas usado para financiar investimentos públicos a norte de Aveiro.
Augusto Santos Silva, que tinha dado o pontapé de saída na discussão, não poupou nas palavras quando se tratou de concordar com Rui Moreira. Disse que, por ser do Porto, era «vítima de racismo» em Lisboa e documentou a afirmação. Na escolha de Guilherme Costa para presidir à RTP foi acusado de estar nomear «os amigalhaços do Porto».
Os exemplos dados destes «racismo» foram vários, designadamente a revolta escrita de Fernando Rosas quando da decisão de instalar no Porto o Centro Português de Fotografia («E como é agora? Temos de ir ao Porto quando precisarmos de consultar os arquivos?!!», indignou-se o bloquista) e a frieza com que Isabel Pires de Lima foi recebida na capital- «Era preciso ir ao Porto para arranjar uma ministra da Cultura?».
A palavra empregue ( racismo) pode ser forte, mas ilustra bem a situação. E já agora deixem-me dizer uma das coisas que me mais me meteu impressão.O ministro dos Assuntos Parlamentares queixa-se de ser vítima de racismo por ser do Porto, perante uma plateia cheia de jornalistas mas ninguém achou relevante reportar isso aos leitores dos seus jornais.
Na semana passada, Santos Silva voltou a dizer a mesma coisa aos microfones do Rádio Clube. Mais uma vez ninguém achou importante publicitar esta queixa e (por exemplo)perguntar as outros portuenses que vivem e trabalham em lugares de destaque, em Lisboa, se também eles se sentem descriminados.