Passei a ver o Cavaco a preto e branco
Desatei a ler e reler romances do Maigret. O pretexto foram cinco dias em Paris, onde fiquei no Ibis Bastille, junto ao boulevard Richard Lenoir, onde o comissário habita, nos policiais de Simenon, o belga a quem os biógrafos creditam ter escrito mais de 400 livros e dormido com mais de dez mil mulheres (a primeira estatística é bem mais verificável que a segunda).
Fascina-me a maneira como o comissário resolve os mistérios usando o instinto e o conhecimento psicológico das pessoas envolvidas na intriga, e das relações entre elas - ao contrário dos seus sucessores que apanham o culpado porque o laboratório identificou o ADN de um pêlo inadvertidamente deixado no local do crime.
No mundo de Simenon, que era a cores mas nós imaginamos sempre a preto e branco, toda a gente usa chapéu, Maigret bebe vários copos de branco antes do meio dia, abusa do Calvados e fuma cachimbo no autocarro, e nem toda a gente se pode dar ao luxo de ter em casa um telefone que está agarrado à parede por um fio. O emprego e o casamento eram ambos para vida, neste mundo a que sou transportado todos os dias por um livro da colecção Vampiro.
A invenção da pílula, os fabulosos Anos 60, o Maio francês, a Internet e os telemóveis sepultaram este mundo de Simenon num lugar tão distante, em anos e valores, como a Idade Média, o que é enganador porque eu ainda me lembro de dar corda ao relógio, de haver escarradores nos cafés e barbeiros – e da festa que foi lá em casa quando o meu pai comprou pela primeira vez um televisor para vermos os jogos do Mundial de 66.
O mundo está a mudar a uma tal velocidade, que o US Labor Department calcula que os estudantes actuais vão ter entre dez a 14 empregos diferentes antes de fazerem 38 anos.
Foi neste mundo em desvairada mudança, em que 15% das pessoas que casaram o ano passado nos EUA se conheceram na Net, que Cavaco vetou a lei das Uniões de Facto, por considerar “inoportuno” fazer alterações de fundo no final da legislatura.
JP Morgan, o fundador do banco homónimo, dizia que um homem tem sempre dois motivos para fazer o que faz – um bom motivo e o verdadeiro motivo.
Dar uma ajuda à sua amiga Manuela, ao acentuar a guerrilha com o Governo, é o bom motivo do veto. Mas o verdadeiro motivo é que Cavaco ultrapassou o prazo de validade, o que até se compreende, pois quando ele deixou de ser primeiro ministro ainda íamos a um dicionário ou à enciclopédia esclarecer as 31 biliões de dúvidas mensais que hoje são resolvidas pelo Google.
Cavaco não é do tempo das SMS e iPods, mas sim um bocado do mundo de Simenon que sobreviveu até à era do Facebook. Por isso, não estranho que agora, quando olho para ele, o vejo a preto e branco.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias