Miguel Reino
Filho de um alfaiate, ganhou os primeiros dinheiros com 13 anos ao balcão da Farmácia Miranda. Aos 16, começou a trabalhar no Papagaio de Carriche, o restaurante do tio António. Aos 18, foi para o Brasil ter com o irmão João. Demorou-se um ano a pesar ouro e diamantes até se formar como chef com os melhores cozinheiros franceses nos mais afamados hotéis do Rio. Estava feliz em Búzios, quando Bernardo, o irmão mais velho, precisou de ajuda para abrir um restaurante na Quinta do Lago. Ele e João meteram-se num barco e atravessaram o Atlântico à vela. A história resumida da vida extraordinária de um Jack Kerouac da cozinha
O Jack Kerouac da cozinha
que deitou âncora no Chiado
Nome: Miguel Reino
Idade: 48 anos
O que faz: Chef de cozinha e dono do restaurante Aqui Há Peixe (R. Trindade 18 A, Lisboa)
Formação: Frequência do curso Hotelaria e cozinha da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro
Família: Casado com Mafalda, uma portuguesa que conheceu no Rio (e que no restaurante se ocupa de dois pelouros estratégicos – a caixa e os doces), de quem tem três filhos, Marina, 20 anos, que estuda Comunicação, Filipe, 16 anos, e Martinho, 11 anos, um ás do skate
Casa: Andar na rua António Enes, em frente à Embaixada de Israel em Lisboa – “segurança não falta”
Carro: Tem um Honda Accord e um Fiat Cinquecento, dos originais (“comprei-o por 500 euros e nunca me deu problemas”), mas usa-os pouco, poeque de dia anda de mota (Honda PCX) e à noite de táxi
Telemóvel: Blackberry
Portátil: Mac Pro, “fartei-me da Microsoft, agora só quero Mac”
Hóbis: Velejar e fazer fotografia (tem duas Leicas)
Férias: Passam sempre uma semana no Algarve, em casa do irmão mais velho (Bernardo, aka Gigi). Este ano alugaram um barco em Palma da Maiorca e foram até Ibiza. Para o o ano planeiam voltar a fazer praia em Formentera
Regras de ouro: “Honestidade, humildade e qualidade”
Ter ficado órfão de mãe aos dois anos não é com toda a certeza um factor estranho à vida extraordinária e aventurosa que tem levado Miguel, o mais novo dos quatro irmãos Reino, nascido no Campo Pequeno, filho de Manuel, um alfaiate beirão com raízes na Aldeia da Ponte, povoação raiana que fica a pouco mais de um tiro de distância de Fuentes d’Oñoro, onde o IP5 desagua em Espanha.
“O pai tinha boa mão para a cozinha, para as sopas, os arrozes, o peixe frito. Apresentava-nos um prato diferente todos os dias. Nunca repetia”, recorda Miguel, cuja traquinice marcaria a adolescência. Aos onze anos, estava de férias na aldeia, e partiu as pernas ao cair desamparado do 1º andar. Foi sendo submetido a uma dúzia de operações, com óbvio prejuízo para o seu aproveitamento escolar. “Chumbei várias vezes”.
Ganhou os primeiros escudos aos 13 anos, dando uma ajuda ao balcão da Farmácia Miranda, mas o que o atraía era o laboratório das traseiras onde se manipulavam os medicamentos. Caprichou o destino que ele usaria o branco, mas a jaleca de cozinheiro e não a bata de farmacêutico, e que manipularia ingredientes – mas alimentos e não químicos.
A vocação revelou-se aos 16 anos, quando foi trabalhar para o Papagaio de Carriche, o restaurante do tio António, onde servia à mesa com uma simpatia que rendia (“o tio pagava-me 600 escudos/mês mas eu tirava um conto e 200 só em gorjetas”). Mas nem olhou para trás quando João (o irmão mais próximo dele, pois Bernardo, aka Gigi, é o mais velho), que em 75 emigrara para Rio de Janeiro, o desafiou-o a ir ter com ele.
No Brasil, a sua primeira ocupação foi pesar ouro e diamantes, vindos do garimpo no Mato Grosso, por conta de uma empresa de mineração em que o irmão tinha interesses. Um ano volvido, meteu-se a aprender a cozinhar à séria para poder tomar conta do restaurante de uma pousada que João comprara em Búzios. Após um primeiro estágio com o chef Claude Troigros no Le Petit Truc, passou pelas cozinhas do Sheraton e do Rio Palace, completando a formação na Universidade Estácio de Sá.
Levou uma vida boa a velejar em Búzios e cozinhar no Adamastor (assim se chamava o restaurante da pousada) até que Bernardo resolveu arquivar a carreira de corretor de seguros e abrir na Quinta do Lago o que seria o célebre Gigi.
João e Miguel meteram-se num veleiro e atravessaram o Atlântico (“cozinhei uma feijoada à brasileira para comemorar a passagem do Equador”) para ajudarem o mano mais velho a montar o restaurante . “O João tratava da caixa, o Bernardo era o Relações Públicas, e eu ocupava-me da cozinha”.
De então para cá, nunca mais parou. Sofreu um choque térmico quando se estabeleceu com um restaurante na Várzea de Sintra. Teve uma loja de crepes no Cascaishopping. Começou a viciar-nos numa novidade chamada picanha a partir de uma casa nas Janelas Verdes. Foi para a Comporta onde se demorou até considerar descabida a renda que lhe pediam. Ainda torceu o nariz a uma oportunidade que lhe ofereceram no Nordeste brasileiro, antes de passar um mês e meio a sofrer com o frio (“para gelar uma garrafa bastava pô-la cinco minutos cá fora”) em Cortina d’Ampezzo.
Após uma volta a Europa a bordo de auto-caravana, decidiu deitar âncora em Lisboa e abrir o Aqui Há Peixe, no Chiado.“ Só preciso de tachos, lume e matéria prima. Após 30 anos fora, estou a adorar estar em Lisboa. O que vou fazer a seguir? Sei lá! Eu sou um cigano”, conclui.
Jorge Fiel
Esta matéria foi hoje publicada no Diário de Notícias