Falta de mimo e de atenção
Passei a semana a arrumar em 283 caixas de cartão os últimos 20 anos de vida. Mudei de casa na 5ª feira, o que faz de mim um activo militante da retoma.
À minha escala, trata-se um contributo para a criação de emprego e riqueza superior à dos grandes investimentos públicos (TGV e aeroporto de Lisboa) e mais virtuoso, pois não agravará a dramática situação dos défices externo e orçamental (não é por minha causa que o IVA está em queda livre).
O dinheiro é o sangue da economia e eu não tenho feito outra coisa senão activar a sua circulação.
Comprei um andar dos anos 60 a um agricultor de Resende, que vai reinvestir o encaixe num empreendimento imobiliário, ou seja o dinheiro pago vai continuar a circular.
A Luísa, a menina que intermediou o negócio, anda a fazer o 12º ano nas Novas Oportunidades, o quer dizer que a comissão ficou em boas mãos e eleva ainda mais o carácter generoso do gesto patriótico de comprar um apartamento num momento em que toda a gente está tentar adivinhar quando é que isto bate no fundo para voltar a arejar as suas notas.
Nas obras na casa nova estiveram envolvidos trolhas, picheleiros, carpinteiros, pintores e electricistas, o que mitigou o desemprego que flagela a construção civil. Animei ainda sectores tradicionais da nossa indústria portuguesa, como a de cerâmica, aglomerados de madeira e papeleira.
Provavelmente nem toda a riqueza gerada se vai reflectir no PIB de 2009 (não juro que a generosa rapaziada que fez a mudança vá declarar o rendimento ao Fisco), mas há que contabilizar os efeitos indirectos. Para voltar a arrendar o apartamento que ocupei nos últimos 20 anos, a ex-senhoria vai mandar fazer cozinha e casas de banho novas.
A mudança absorveu toda a minha atenção durante esta semana, fazendo-me esquecer os outros problemas que me afligem. Reparei apenas que a crise foi substituída pela gripe mexicana como cabeça de cartaz dos noticiários.
Enquanto desempacotava as caixas, pensei que às vezes há males que vêm por bem, e que não é impossível que se a gripe suína se transformar mesmo numa pandemia (e não apenas um ameaço como a gripe das aves), não é impossível que um dia destes despertemos para o facto da crise ter acabado, por falta de mimo e de atenção.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias