Reflexões do 128949/77
Cresci anti-militarista, tal como o ministro da Defesa e a esmagadora maioria dos rapazes que atravessaram uma adolescência inquieta pela perspectiva de sermos mobilizados para combater uma guerra injusta. Ao contrário do ministro da Defesa, fiz a tropa - 16 meses passados entre Mafra e a Madeira, os únicos em que fui funcionário público.
Duvido que a tropa tenha feito de mim um homem e nunca saberei ao certo o que teria sido a minha vida se não sido obrigado a cumprir o serviço militar - ou me tivesse declarado objector de consciência.
Duvido que a tropa tenha feito de mim um homem mas aprendi muito com ela. Aprendi que os limites da minha resistência física e psicológica eram bem mais dilatados do que supunha. Aprendi a obedecer e a valorizar a disciplina, Aprendi as manigâncias do tiro curvo e do tiro tenso (a minha especialidade foi Anti-carro e Morteiro Médio).
Aprendi também que as horas gastas a estudar o cálculo de trajectórias foram um desperdício, pois não usei essa sabedoria durante o ano que passei no Funchal a fazer coisas tão diversas como dar recruta a um pelotão de condutores, ser capataz incompetente da edificação de um muro no campo de futebol do quartel (soube depois que ruiu) e a investigar a história do regimento.
O que mais lamento daqueles 16 meses foi o preço, em tempo e fígado, que paguei pelo que aprendi e não ter aproveitado para me iniciar no bridge.
A tropa é uma experiência intensa, que nos fica tatuada no carácter (hesito quando me perguntam a matrícula da carrinha Marea que tenho há dez anos, mas ainda sei de cor o número mecanográfico: 128949/77) e adormeceu o meu anti-militarismo, que ficou em banho maria, até ser reactivado por uma salva de disparates, o primeiro dos quais foi a compra, envolta em fortes fumos de corrupção, de dois submarinos por mais de mil milhões de euros.
A minha alma fica parvo quando vejo o TGV para o Porto e Vigo ser metido na gaveta e ouço o ministro da Defesa afirmar, sem se desmanchar a rir, que o Governo mantém o investimento de 1.500 milhões de euros no reequipamento da Força Aérea, iniciado com a compra à Holanda, por 200 milhões de euros, de cinco aviões em segunda mão.
O meu espírito fica baralhado quando leio que a GNR quer ter uma Marinha privativa e assisto à trapalhada da compra pela PSP de cinco blindados (só dois devem chegar a tempo da cimeira da Nato), quando se sabe que a GNR tem 13 blindados disponíveis e com provas dadas no Iraque.
Vejo, ouço, leio, sei e confirmo que não podemos esperar nada de bom dos partidos do arco governamental, pois Brecht estava carregadinho de razão quando escreveu que só quando estamos imbuídos da realidade é que podemos mudá-la.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias