A Portela pode deitar foguetes e fazer a festa porque vai estar a uso bem mais tempo do que previsto
Tive uma fase na vida, presumo todos passamos por ela, em que instalei três prateleiras metálicas (também as há em plástico) em cima da secretária.
A imensa papelada que diariamente desaguava na minha mesa de trabalho era meticulosamente dividida pelas três gavetas. A de cima arquivava os papéis para despachar com urgência, a do meio guardava os assuntos pendentes, enquanto à prateleira de baixo iam parar os casos já resolvidos.
Cedo verifiquei que a prateleira do meio era uma espécie de cemitério onde eu deixava ficar a morrer os assuntos - na esmagadora maioria dos casos «curriculuns» de candidatos a estagiários, convites para participar almoços colectivos, ou assistir a seminários ou conferências, e propostas de trabalho que não se revelaram sedutoras ao primeiro olhar.
A prateleira dos Assuntos Pendentes, conclui eu mais tarde, era uma maneira de me enganar a mim próprio, de cobardemente deixar o tempo decidir por mim.
Quando forçado pela falta de espaço (a prateleira do meio era a quase sempre a primeira a encher), passava em revista os Assuntos Pendentes, a maior parte dos papéis tinham ultrapassado o prazo de validade e iam parar ao cesto do lixo.
Finalmente assumi uma política de verdade. Ofereci as prateleiras metálicas a um colega, decidi eliminar da minha vida os Assuntos Pendentes e perseguir o objectivo de chegar ao fim do dia com a secretária limpa de papéis (como é óbvio falhei, mas isso não é chamado ao caso).
Antes do Verão e da presidência da UE, com a opção Ota encostada à parede por um ofensiva crítica e sem precedentes da opinião pública e publicada, o governo pediu uma contagem de protecção.
O precioso tempo comprado foi pago com a promessa de que aceitaria a opinião técnica sobre a melhor localização para o novo aeroporto de Lisboa. Através desta sábia atitude, Sócrates evitou que a batalha perdida da Ota se transformasse na sua Alcácer Quibir.
Agora que o LNEC vai que Alcochete é mais atraente que a Ota porque comporta espaço para ampliações futuras, o Governo terá de arrumar na prateleira dos Assuntos Pendentes a questão do novo aeroporto.
Este parecer técnico obriga a Governo a encomendar os estudos e projectos para Alcochete - que já estavam feitos para a Ota – o que significa o óbito do sonho inicial de fazer da Ota e do TGV as alavancas para um vigoroso relançamento do nosso crescimento económico.
As obras de construção do novo aeroporto, que Sócrates queria começar nesta legislatura, só com muito optimismo poderão estar no terreno, no deserto márioliniano da Margem Sul, na próxima legislatura.
A boa notícia é que o arquivar nos Assuntos Pendentes desta questão deverá equivaler na prática à opção por aquela que me parece a melhor solução: Portela + 1.
Jorge Fiel
(www.lavandaria.blogs.sapo.pt)
PS. O Governo revelaria um notável sentido político se aproveitasse a oportunidade aberta pelo parecer do LNEC para embrulhar o revés Alcochete numa decisão corajosa, justificada pelas novas condições: a de resgatar o ruinoso contrato feito pelo Governo laranja com a Lusoponte.
PS2: Esta crónica foi hoje publicada no diário económico Oje (www.oje.pt)
João Cravinho achou por bem interromper o seu exílio dourado em Londres para fazer uma prova de vida.
Percebo o «timing». A remodelação governamental está em cima da mesa, agora que a presidência portuguesa da UE chega ao fim, e tudo leva a crer que Mário Lino está já com guia de marcha para o Ministério do Ambiente.
O Ministério das Obras Públicas vai estar disponível em breve e, pelo visto, o fervilhante e remoçado East End londrino não foi suficiente para matar as saudades que Cravinho tem do Palácio Penafiel.
O tema foi muito bem escolhido. Para desgraça de Sócrates, a Ota não pára de perder vapor junto da opinião pública. Cravinho pensou como um príncipe ao seleccionar a localização do novo aeroporto de Lisboa como o pretexto para dar uma mão ao primeiro ministro.
Quando toda a gente pensava estarmos nas vésperas da divulgação do parecer do LNEC (afinal adiado, deixando a questão em banho maria por mais um mês), Cravinho veio a público com um «soundbyte» aparatoso, confeccionado para fazer títulos de jornais e ter destaque nos noticiários de televisão:
«Optar por Alcochete seria um acto de sonambulismo prolongado e suicida».
O «soundbyte» é bom. E cuidadoso como é, Cravinho fez ainda questão de por à disposição dos jornalistas um «sounbyte» alternativo, ao acusar a solução Alcochete de ser uma reedição do modelo de reconversão industrial de Marcelo Caetano, baseado em Sines.
Cravinho fez bem o trabalho de casa, mas, na minha opinião, teve galo, pois os seus «soundbytes» foram abafados pela divulgação nesse mesmo dia do adiamento da divulgação do estudo do LNEC.
O esforço foi bom, mas o efeito foi reduzido.
Assim como assim, na eleição para melhor «soundbyte» português do Outono de 2007 ainda voto no fantástico «E o burro sou eu?» de Scolari – o único capaz de ombrear na luta pelo título de melhor «soundbyte» ibérico com o feliz e incontornável «Por que não te callas?» de Juan Carlos, que só na primeira semana depois de ter sido pronunciada foi alvo de 500 mil «downloads» de toques, garantindo vendas de 1,3 milhões de euros às operadoras que o disponibilizavam.
Cravinho corre mesmo o risco de perder o segundo lugar nacional para Ribau Esteves, o novo secretário geral do PSD, que brilhou a grande altura na sua terra natal (Ílhavo) ao declarar: «Se queremos uma gaja boa como o milho, temos de a namorar».
Cravinho deve reflectir neste conselho, mas não pode desistir. Tem ainda um mês para confeccionar um bom «soundbyte» contra a solução Portela+1.
Tenho seguido com alguma atenção, redobrada curiosidade e indisfarçável divertimento a carreira do ministro das Obras Públicas, um reputado «aparatchik» que acompanha Sócrates desde os gloriosos tempos em que oactual primeiro ministro conspirou com sucesso para ser ministro do Ambiente no lugar da ministra do Ambiente (Elisa Ferreira).
Sorte idêntica não tem o mau grão-vizir Iznogoud (uma magnífica invenção de Goscinny, o pai do Astérix) que há uma data de anos conspira debalde para ser Califa no lugar no bom do Califa.
Não era preciso ser um Einstein para perceber a importância nuclear que o Ministério das Obras Públicas teria num Governo que acreditava (ainda acreditará?) piamente que a Ota e o TGV iam ser a locomotiva da recuperação económica e do suave milagre do regresso à convergência com a Europa – e que a chuva de dinheiro do QREN vai ser o Abre-te Sésamo de uma nova maioria absoluta.
Mário Lino partiu discreto. Mas tal como aqueles maratonistas que fazem a corrida de trás para a frente, sem esticões, o ministro das Obras Públicas, com uma passada certa e segura, soube ultrapassar o seu colega da Economia, destronando Manuel Pinho do lugar de primeiro palhaço do Governo Sócrates.
Data de Maio último o ponto de viragem, em que Pinho ficou irremediavelmente para trás no bem disputado campeonato interno do disparate. Lino passou por ele a correr, até parecia um foguetão, no dia em que proferiu a mais memorável das suas declarações, que nunca será demais recordar:
«Fazer um aeroporto na Margem Sul seria um projecto megalómano e faraónico, porque, além das questões ambientais, não há gente, não há hospitais, não há escolas, não há hotéis, não há comércio, pelo que será preciso levar para lá milhões de pessoas»
Foi por estas, e por outras como esta, que Sócrates teve de pôr a questão da Ota a hibernar durante seis meses.
Só que agora que chegou a hora de descongelar a Ota e há para resolver uma série de contrariedades surgidas no entretanto.
No interim em que o Governo mantinha a Ota agasalhada na gaveta, a CIP patrocinou um estudo, dirigido por um reputado especialista (José Manuel Viegas), que aponta Alcochete como a melhor e mais barata localização para o novo aeroporto de Lisboa.
Acresce que, no entretanto, engrossou o pelotão dos que defendem a solução Portela+1 e que se meteu na cabeça do PR Cavaco a ideia que tem uma palavra a dizer sobre a matéria.
Uma data de chatices! Os espíritos (nada a ver com o BES) andavam agitados, pelo que Mário Lino meteu mãos à obra de cortar o mal pela raiz.
Vai daí tratou de gizar um cuidado e pormenorizado plano de assassinato do estudo da CIP junto da opinião pública, com a ajuda voluntária da Rave (empresa sob a sua tutela e convenientemente guarnecida de boys rosa) e de especialistas em «spin» - e involuntária de uns crédulos equipados com carteira profissional de jornalistas mas que têm boa boca e estão habituados a comer e calar a ração que lhe põem à frente (os idiotas úteis, na fraseologia de Lenine).
«Comme il faut», a campanha foi inaugurada com estrondo no sábado, no jornal de referência por excelência (Expresso), onde fonte anónima da Rave jura que o estudo da CIP faz disparar em 1700 milhões de euros o custo do novo aeroporto.
No dia do Senhor, a plantação de notícias abriu num movimento em tenaz.
No diário de referência por excelência (Público) denunciam-se os «erros crassos» do estudo da CIP e as suas consequências catastróficas para o TGV Porto-Lisboa: menos 1,5 milhões de passageiros/ano, menos 450 milhões de euros de receitas/ano, mais 15 minutos de duração do trajecto.
No diário com maior circulação (Correio da Manhã) um administrador da Rave denuncia o crime lesa-património que o estudo da CIP pretendia perpretar. A construção de uma ponte Beato-Montijo obrigaria o Convento do Beato a vir abaixo, o que, concordo, seria uma enorme maçada, tanto mais que o pessoal do Compromisso Portugal teria de espremer as meninges para arranjar um novo ponto de encontro para a sua reunião anual.
Vento corria de feição à campanha. O drama foi que logo no dia a seguir, na 2ª feira, o director do Público revelou, em editorial, os detalhes do plano de intoxicação traçado por Mário Lino, que passou a ser o macaco escondido que deixou o rabo de fora.
Lino teve de improvisar. E para cobrir a retirada pôs um porta voz da Rave a jurar que tem estudos favoráveis à solução Alcochete - e que o mal está apenas na soluções técnicas apresentadas pela CIP.
Mário Lino falhou no essencial. Foi apanhado com a mão na massa – com a boca na botija. O segredo do sucesso deste tipo de campanhas é serem silenciosas e ninguém dar por elas.
A regra número um é o maestro ficar na sombra, de luvas calçadas.Mas o ministro não conseguiu evitar deixar as impressões digitais espalhadas por todo o lado.
Lino, o ministro que não tem tempo para ler (e por isso o mais que pode fazer pelo estudo da CIP é, disse ele, «dar-lhe uma vista de olhos») é um amador. Um intoxicador de água doce.
O território de Portugal continental é, grosso modo, um rectângulo com cerca de 600 km de comprimento e 200 de largura, situado no lado mais ocidental da Europa. Penso haver um consenso geral no país sobre este resumo da nossa localização geográfica.
Mas este consenso volatiza-se quando se passa da teoria geral para a prática. No dia a dia, e vista de Lisboa, a geografia do nosso país modifica-se por completo, evoluindo do simples rectângulo para uma organização bem mais complexa com óbvias semelhanças ao Sistema Solar.
No centro, no lugar do Sol, está Lisboa (a região mais rica da Península Ibérica em termos de paridade de poder de compra) girando à sua volta três planetas: dois planetas anões, que lhe estão próximos, e um outro, enorme e distante como Neptuno.
Os dois planetas anões são o Alentejo (onde os lisboetas com contas bancárias mais desafogadas ou níveis de endividamento mais elevados têm o seu «monti») e o Algarve (destino de veraneio alternativo para as pontes e as férias da Páscoa e Verão). Trata-se de planetas poucos povoados, que dispõem de um clima agradável e têm uma serventia essencial de diversão.
A anos luz de distância está o terceiro planeta do Sistema Portugal, vulgarmente designado pelas expressões «lá em cima»ou «província».«Norte» é o nome politicamente correcto.
O planeta Norte é densamente habitado por gente que fala com uma pronúncia parola, tem um clima horrível (é frio e húmido e está sempre a chover) e muitas fábricas onde abusam do trabalho infantil – em vez de andarem na escola as criancinhas passam o dia a coser sapatos e roupas para a Zara.O pessoal «lá de cima» diz muitos palavrões e tem a mania do futebol, onde só ganham devido às trampolinices do Pinto da Costa (mas isso vai acabar).
Não é simples estabelecer os contornos exactos do planeta Norte. Eles são realmente bastante difusos e alargados.
Durante os cinco anos em que chefiei a Redacção no Porto do Expresso recebi dezenas de telefonemas de colegas meus de Lisboa perguntando-me se era possível mandar um jornalista «dar uma saltada» a locais tão diversos como Vieira de Leiria, Monção, Tomar, Guarda, Mirandela, Termas de Monfortinho, Régua, Arganil, Fundão, Cantanhede, Viseu ou Alcafache.
Ou seja, tudo quanto está fora de Lisboa e não é Alentejo ou Algarve, integra o planeta Norte, cuja órbita está cada vez mais larga, afastando-se lenta mas inexoravelmente do Sol. E a força de gravidade exercida por atrai pequenos asteróides que se soltaram do grande planeta.
É o caso da Ota, que há muitos anos não passava de um satélite do planeta Norte, do qual se soltou entrando em rota de colisão com Lisboa. Quando a questão da localização do novo aeroporto foi recolocada, a Ota distava 66 km de Lisboa. Nos últimos estudos já estava só a 50 km. Não tarda nada, fica ali mesmo à saída de Sacavém…
Jorge Fiel
PS. Se quer poupar-se às maçadas sofridas por Galileu, deve abster-se de insistir com os lisboetas dizendo-lhes que o rectângulo Portugal faz parte do sistema Europa, com centro de gravidade em Bruxelas.
Carolina Salgado, João Botelho e Margarida Vila Nova, na Adega Kais, em Lisboa, no jantar comemorativo do final da rodagem de «Corrupção». Na altura o filme tinha mais 17 minutos
Estávamos em Janeiro de 2005. O jogo com o Trofense era importante demais para ser encarado com ânimo leve. Por isso, o presidente do Lixa telefonou a Pedro Sanhudo logo que soube que ele tinha sido designado para arbitrar esse encontro do campeonato da II Divisão B.
Cantou-lhe a canção do bandido. Como o jogo era muito importante para o Lixa, será que ele, Sanhudo, poderia dar um jeitinho? E será que ele estava precisado de alguma coisa?
O árbitro embarcou. Disse que sim. Não ele, pessoalmente. Mas a Associação dos Árbitros do Baixo Tâmega, por ele presidida, não tinha frigorífico. O presidente do Lixa declarou o assunto resolvido. Teria todo o gosto em oferecer um frigorífico, com arca!, à associação. Jeito por jeito.
Chegou-se a domingo e o Trofense ganhou. O presidente do Lixa liga a Sanhudo, que, com voz comprometida, desdobra-se em explicações. «Como viu, ó presidente, eu não pude fazer nada. A sua equipa não ajudou. O que é que eu podia fazer?». O presidente não deu mostras de ter ficado lixado, Aceitou as explicações. E sossegou o árbitro. Não voltaria com a palavra atrás. A Associação dos Árbitros do Baixo Tâmega ia ter um frigorífico. Oferecido por ele.
Este episódio, documentado por escutas telefónicas, é a base de um das centenas de processos do Apito Dourado. Em Março, a procuradora Maria José Morgado deduziu a acusação contra o presidente do Lixa(um homem de palavra) e Pedro Sanhudo, o árbitro que não podia fazer mais do que o que fez.
Vem a história do frigorífico da Associação dos Árbitros do Baixo Tâmega a propósito da corrupção, um tema que tem andado entre as bocas do Mundo e as primeiras páginas dos jornais.
Ainda recentemente ficamos a saber que Portugal desceu dois lugares, de 26º para 28º num total de 180 países analisados, no Índice de Percepção da Corrupção, um ranking elaborado pela Transparency Internacional que classifica os países segundo o eventual grau de corrupção do sector público.
Não me custa a acreditar no crescimento da corrupção entre funcionários públicos e políticos em Portugal. É o preço que temos de pagar pelo inevitável processo de democratização do poder de decisão que eleva o número de pessoas susceptíveis de serem corrompidas.
O que nunca me tinha passado pela cabeça é que esta democratização do poder estivesse avançada ao ponto de um capitão de fragata e um sargento da Amada terem sido formalmente acusados de corrupção passiva por uma empresa que pretendia vender mísseis Seasparrow e Harpoon para as fragatas da classe Vasco da Gama.
Nas vésperas das decisões políticas da atribuição de grandes obras (como o novo aeroporto de Lisboa e o TGV), decisivas para grupos económicos poderosos, convinha focarmos a vigilância na transparência destes processos, por forma a que não haja dúvidas de que ninguém usou a sua posição e/ou os recursos públicos em benefício pessoal ou do partido – em vez de dispersarmos a atenção por manobras de diversão e «faits divers» como o do frigorífico da Associação dos Árbitros do Baixo Tãmega.
Jorge Fiel
PS: Esta crónica foi redigida para o diário económico Oje, onde vai ser publicada e amanhã