“O mais elevado resultado da educação é a tolerância”
Helen Keller
Um apartamento na West 151th St., em Manhattan, foi a minha casa na semana passada, o que me deu enorme prazer, porque sou apaixonado por Nova Iorque, e me deixou bastante feliz, pois significa que o Harlem já não é mais um gueto vedado a rostos pálidos.
Das primeiras vezes que comprei aquelas excursões sightseeing em autocarros vermelhos, os doubledeckers abertos só circulavam em downtown. O percurso uptown era feito numa viatura fechada de um piso e o mais acima que se aventurava era a 125th para mostrar o Apollo Theatre.
É bom que gente de todas as cores possa passear em Sugar Hill e apreciar as belíssimas brownstones de Marcus Garvey Park (na foto), outrora habitadas por famílias da alta burguesia novaiorquina, que buscavam no Harlem refúgio da confusão e insalubridade de downtown.
Obama na Casa Branca e o Harlem aberto são dois sinais positivos vindos da mais importante cidade da nação mais poderosa do mundo, um país que precisou de uma guerra civil para abolir a escravatura e que até aos anos 60 descriminava legalmente os cidadãos de acordo com a cor da pele.
Todos sabemos que os norte-americanos têm muitas coisas boas mas outras nem tanto – e o movimento do pêndulo que corrige o passado racista gerou comportamentos e tiques aberrantes.
Estou a falar, por exemplo, de Paulo Serôdio, naturalizado norte-americano mas nado e criado em Moçambique, que foi expulso da Universidade de New Jersey, acusado de conduta indigna, porque numa aula, quando a professora pediu aos alunos que se auto-definirem, se identificou como afro-americano – escandalizando uma colega negra que o denunciou como racista. Pelo visto nos States, afro-americano é etiqueta de uso exclusivo por negros (mesmo que tenham dificuldade em apontar no mapa onde fica Joanesburgo) e por isso proibido a brancos, mesmo que tenham nascido e crescido em África.
Estou a falar, por exemplo, de Laura Schlessinger, linchada publicamente e obrigada a abandonar o seu talk show radiofónico por ter desafiado um ouvinte a dizer por extenso a n word - e ela própria a ter repetido, argumentando que nos filmes e séries de televisão é banal os personagens negras tratarem-se constantemente por nigger.
A intolerável intolerância manifestada pelo mainstream liberal norte-americano nos casos de Paulo e Laura é tão inadmissível como a oposição da direita religiosa à construção de um centro islâmico nos arredores do Ground Zero.
Se não estiver revestida de bom senso, a boa vontade pode conduzir a maiores catástrofes do que os actos baseados em má vontade ou estupidez.
Jorge Fiel
Esta crónica foi publicada hoje no Diário de Notícias
Calculo que durante os 18 anos que estive o Expresso participei em 1500 reuniões com gente de Lisboa. Apenas recordo um único incidente desagradável dessas 500 ou 600 horas de reunião.
Não me lembro do tema mas a discussão acalorada atingiu o clímax quando um colega meu, à época subdirector, desatou a gritar comigo e pôs um ponto final na sua argumentação berrando: «Era o que me faltava agora vir um gajo do Porto dar-me lições sobre jornalismo!».
O director adjunto que dirigia a reunião teve a arte de serenar os ânimos. E o subdirector exaltado teve a humildade de me telefonar, à tarde, a pedir-me desculpa do sucedido, evitando com este gesto bem educado que o incidente da manhã envinagrasse a nossa boa amizade.
O incidente ficou sepultado, mas passei a estar consciente que a minha denominação de origem geográfica atenuava a credibilidade das opiniões que expresso.
Lembrei-me deste episódio há pouco mais de um mês, quando participava numa sessão dos Olhares Cruzados sobre o Porto (uma louvável iniciativa do Público) e o presidente da Associação Comercial do Porto se lamentou dos tiques centralistas dos lisboetas.
Explicou Rui Moreira que a decisão da sua associação de encomendar um estudo sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa foi recebida com desdém na capital.
Perguntaram-lhe o que é nós, do Porto, tínhamos a ver com o assunto, como se a nossa condição de portuenses nos inibisse de nos pronunciarmos sobre questões com epicentro a sul de Aveiro – o que até poderíamos aceitar se o dinheiro dos nossos impostos fosse apenas usado para financiar investimentos públicos a norte de Aveiro.
Augusto Santos Silva, que tinha dado o pontapé de saída na discussão, não poupou nas palavras quando se tratou de concordar com Rui Moreira. Disse que, por ser do Porto, era «vítima de racismo» em Lisboa e documentou a afirmação. Na escolha de Guilherme Costa para presidir à RTP foi acusado de estar nomear «os amigalhaços do Porto».
Os exemplos dados destes «racismo» foram vários, designadamente a revolta escrita de Fernando Rosas quando da decisão de instalar no Porto o Centro Português de Fotografia («E como é agora? Temos de ir ao Porto quando precisarmos de consultar os arquivos?!!», indignou-se o bloquista) e a frieza com que Isabel Pires de Lima foi recebida na capital- «Era preciso ir ao Porto para arranjar uma ministra da Cultura?».
A palavra empregue ( racismo) pode ser forte, mas ilustra bem a situação. E já agora deixem-me dizer uma das coisas que me mais me meteu impressão.O ministro dos Assuntos Parlamentares queixa-se de ser vítima de racismo por ser do Porto, perante uma plateia cheia de jornalistas mas ninguém achou relevante reportar isso aos leitores dos seus jornais.
Na semana passada, Santos Silva voltou a dizer a mesma coisa aos microfones do Rádio Clube. Mais uma vez ninguém achou importante publicitar esta queixa e (por exemplo)perguntar as outros portuenses que vivem e trabalham em lugares de destaque, em Lisboa, se também eles se sentem descriminados.
Há coisa de uma semana, participei num debate sobre a Comunicação Social, inserido na 5ª edição do ciclo Olhares Cruzados sobre o Porto promovido pelo Público.
Foi com enorme prazer que aceitei o convite do meu amigo Manuel Carvalho para comentar, a meias com o Rui Moreira, a apresentação sobre a matéria feita pelo ministro Augusto Santos Silva.
O tema era interessante e importante. E a companhia era de primeira.
Eu penso sempre no presidente da Associação Comercial do Porto sempre que ouço falar que o Norte está órfão de um líder forte desde o suicídio político de Fernando Gomes.
A velha amizade que me liga a Santos Silva e a distância que me separa deste Governo não chegam para toldar o juízo que faço dele como um político e portuense de sólida a formação e muito carácter.
É com menos prazer que faço este relato, em que estou tentado a concluir que é nossa (sendo que a primeira pessoa do plural refere-se ao nós, portuenses) a principal fatia da responsabilidade pelo declínio da importância e peso da Comunicação Social com sede no Porto.
A apresentação do ministro foi segura e vaga qb, a roçar o inócuo.
Conheço bem Santos Silva, pois fomos colegas de curso e camaradas de lutas passadas. Posteriormente partilhamos o primeiro turno das piscinas do «healths» do Ipanema Park (primeiro) e dos Pinhais da Foz (depois), o que nos permitia diariamente actualizar a conversa e trocar opiniões.
Há três pequenas histórias que, no meu entender, chegam para retratar o Augusto.
Quando ainda fumava, houve uma altura em que decidiu que passaria a fumar apenas um cigarro por dia. Assim, todos os dias, com um rigor religioso, às cinco horas em ponto da tarde, sentava-se no átrio da Faculdade de Economia (onde é professor) a consumir o seu cigarro diário.
Em determinado fase da sua vida, o Augusto tinha de passar diariamente uma hora num café perto das Condominhas, enquanto esperava que uma das filhas recebesse a lição de ballet. Pois levava sempre na pasta três coisas: um livro, um «paper» e o Público. Só no local, e dependendo do grau de barulho que se fazia sentir no café, ele escolheria o que iria ler.
Sempre que recebia os amigos em casa, mal chegava a meia noite, ele recolhia à cama, tipo Cinderela, deixando a mulher, Isabel Margarida, a fazer as honras da casa.
Acho que estas três pequenos episódios chegam para traçar o perfil do ministro e a perceber que a sua apresentação no debate sobre aComunicação Social tinha a qualidade derivada do intelectual sério que ele é mas estava em absoluto desprovida de material susceptível de provocar polémica.
Agora que está reformado, Greenspan, o antigo e mítico presidente da Reserva Federal norte-americana, explicou o truque que usava quando era chamado ao Congresso para prestar contas e lhe faziam perguntas incómodas.
O truque de Greenspan consistia em responder usando uma salada de palavras, que baptizou com «discurso da sintaxe caduca», onde os principais ingredientes eram conceitos densos e vocábulos técnicos.
Os congressistas não percebiam nada do que ele dizia, mas tinham vergonha de o evidenciar em público, com medo de fazer má figura em frente aos seus pares, e assim Greenspan atravessava incólume mais um escrutínio incómodo escondido atrás dum nevoeiro de palavras.
Confesso que me lembrei do truque do «discurso da sintaxe caduca» enquanto ouvia a apresentação do ministro dos Assuntos Parlamentares, na noite de 5ª feira da semana passada, no auditório da Católica.
No debate, apenas uma vez Santos Silva saiu dos carris que tinha definido para esta sua intervenção.
A determinada altura, Rui Moreira deu um exemplo feliz dos tiques do centralismo ao falar da maneira como foi recebido, pelos panditas da capital, o estudo sobre a localização do novo aeroporto internacional de Lisboa, promovido pela Associação Comercial do Porto.
A reacção generalizada na capital ao estudo veio sob a forma da pergunta enfadada: «E o que é que esses tipos do Porto têm a ver com isso?», como se por alguma lei secreta estivéssemos inibidos de nos pronunciar sobre tudo quanto se passa no resto do país e circunscritos a opinar sobre as coisas da nossa região.
Embalado por esta denúncia, o ministro falou da existência em Lisboa de um «racismo» (foi esta a palavra usada por ele) contra as pessoas do Porto, detalhando que ele próprio e a ex-ministra da Cultura tinham sido vítimas desse «racismo».
No final do debate, Augusto Santos Silva foi cercado por uma dúzia de jornalistas, equipados com blocos de notas, microfones e câmaras de filmar. Fizeram-lhe muitas perguntas.
Presumo que traziam as perguntas feitas de casa e que elas versavam sobre os temas da actualidade, tão palpitantes como o concurso para a TDT, o quinto canal, a nova administração da RTP, o centro de gravidade geográfico da RTPN, a ERC, etc.
Na sexta e no sábado, não li, não vi, nem ouvi ninguém referir-se ao facto do ministro dos Assuntos Parlamentares ter dito ser vítima de racismo por ser do Porto.
E fiquei, por isso, a pensar que se calhar é muito por culpa nossa (e neste caso a primeira pessoa do plural refere-se ao nós, jornalistas do Porto) que a voz da Comunicação Social do Porto não é ouvida em Lisboa.