Rui Costa e Sousa
Foto Ana Jesus Ribeiro
Não vale a pena ficar com remorsos ecológicos. O bacalhau não só não está em vias de extinção como, ainda por cima, nós estamos muito longe de ser o seu pior inimigo.
“Só na Terra Nova, há cinco milhões de focas e cada uma estraga em média, todos os dias, 80 kg de bacalhau. Sozinhas dão cabo de mais bacalhau do que nós, os espanhóis e os italianos juntos”, denuncia Rui Costa e Sousa, 55 anos, esclarecendo logo o uso do verbo estragar: “As focas só comem as vísceras. O resto, deitam fora”.
A concentração na Europa do Sul do consumo de um peixe que habita as águas geladas dos mares do Norte tem uma boa explicação: “Para ser gostoso, o bacalhau tem de levar azeite”.
Rui Costa (que é sportinguista) sabe do que fala pois é o maior importador de bacalhau seco, com quem lida profissionalmente há 33 anos, após ter feito o espólio no quartel da Ajuda da Polícia Militar, onde, sob o comando do major Tomé, fez uma tropa acidentada nos anos quentes de 74 e 75, marcada por plenários às seis da manhã, troca de murros e tiros com os comandos - e em que as manifs onde se gritava “Nem mais um só soldado para as colónias!” o pouparam a uma viagem até Nova Lisboa.
Ainda não havia IP5 quando deixou a Tondela natal, atravessou a Serra do Caramulo e desaguou em Aveiro, fazendo o percurso inverso ao do peixe fresco que o pai vendia e viajava de comboio desde o litoral.
Nos primeiros quatro anos, fez um pouco de tudo, desde camionista a carregar fardos às costas, o que descreve como curso de Económicas e Vassouras. Em 80, casou e estabeleceu-se como armazenista. Passou a industrial já nos bons tempos dos anos 90, “em que havia muito dinheiro e pouco bacalhau, ao contrário de agora em que há muito bacalhau e pouco dinheiro”.
A facturação da RCSI (Rui Costa e Sousa & Irmão) estagnou nos 70 milhões de euros, apesar das vendas não pararem de crescer. “Este ano, os preços caíram entre 20% a 30%. Portugal é o sítio do Mundo onde o bacalhau é mais barato”.
O homem que ganhou o direito a ser chamado pelo nome da sua principal marca (Sr. Bacalhau) recebeu-nos numa das cantinas da sua fábrica no Cais dos Bacalhoeiros (Gafanha), que fica mesmo em frente a um enferrujado bacalhoeiro russo comprado pelo sucateiro Godinho após ter sido arrestado por dívidas.
Uma sopa de bacalhau inaugurou uma refeição monotemática em que foram servidos dois pratos, generosamente regados por um tinto de Silgueiros. O primeiro, mais tradicional, foi um Bacalhau à Beira Baixa, em que a posta cozida repousa em cima de uma rabanada de regueifa e é acompanhada por batatas, grelos e uma cebolada que o mestre Silva (um dos comensais e amigo da casa) fez questão de precisar ter sido confeccionada com duas partes de azeite, uma de vinagre e uma pitada de colorau.
O segundo prato, mais experimental, foi inventado pelo Mestre Silva que o baptizou Bacalhau à Rui Costa (“A melhor posta é a do Rui Costa”, gracejou logo o próprio) e consiste numa posta limpa, sem espinhas nem peles, passada por farinha, envolta num molho que leva manteiga, calda de pêssego, natas e Porto, e acompanhada por arroz chao chao enriquecido com pedacinhos de bacalhau.
Rui Costa fez questão de sublinhar que a sua versão favorita é o bacalhau na brasa, com muita cebola e azeite. “Este é o melhor bacalhau que há à face da Terra. O Belmiro só come Sr. Bacalhau”, declarou.
Há coisa de dez anos, o mundo do bacalhau foi abalado pela invenção da posta demolhada e ultra-congelada, revolução a que ele aderiu, contratando à concorrente Riberalves, para director industrial, Guedes Vaz (outro dos comensais), a quem ele se refere afectuosamente como “o catedrático do bacalhau”.
“O consumidor não sabe nem tem tempo para demolhar o bacalhau como deve ser. Dependendo da grossura, precisa de estar entre 60 a 100 horas em água gelada, mudada uma meia dúzia de vezes”, explica Rui Costa que deve localizar no Brasil (onde faz 30% das vendas e o mercado cresce a olhos vistos) a nova fábrica de ultra-congelados, e partilha um segredo do negócio: “No dia em que é pescado, o bacalhau tem logo de ir dormir ao sal e demorar-se por lá um mínimo quatro meses”.
Jorge Fiel
Esta matéria foi hoje publicada no Diário de Notícias
Cantina da fábrica RCSI
Cais dos Bacalhoeiros, Gafanha da Nazaré
Sopa de Bacalhau
Bacalhau à Beira Baixa
Bacalhau à Rui Costa
Dão Curral da Burra (tinto)
Cafés (com umas gotas de uísque velho)