Os 200 mil da Avenida e o lápis do cosmonauta
Devido à ausência de gravidade, as esferográficas normais não funcionam no espaço.
Este foi mais um dos milhões de problemas que os cientistas norte-americanos e soviéticos tiveram de resolver nos anos 60, quando a conquista do espaço era um dos tabuleiros em que se disputava a Guerra Fria.
Os americanos desenvolveram uma caneta que escreve em ambiente de gravidade zero. Os soviéticos optaram por uma solução mais simples: equiparam os cosmonautas com lápis.
A opção americana deve ter contribuído mais para o avanço do conhecimento, não seduz-me mais a simplicidade como os soviéticos contornaram o obstáculo.
Há sempre dois tipos de soluções um mesmo problema, as simples e as complicadas. A mim encantam-me as simples.
Foi por isso que gostei de ouvir a explicação simples que Carvalho da Silva deu, na 5ª feira, à Judite de Sousa, para 200 mil pessoas terem preferido descer a avenida da Liberdade a anteciparem o fim-de-semana.
Os 200 mil (e mais uma data de gente) não acham graça a que Armando Vara, destacado em missão de salvamento, vá para o BCP ganhar o dobro do que recebia na Caixa.
Os 200 mil não acham justo que o salário mensal médio na EDP seja de 1669 euros e que o presidente ganhe 1666 euros por dia só em prémio de gestão.
Não me move contra Armando Vara e António Mexia, que tudo leva a crer serem sérios e competentes. Vara não ficou bem na fotografia na trapalhada da Fundação para a Prevenção e Segurança, no Governo Guterres. Mexia não tinha razão quando quis vender as posições que a Galp tinha na exploração petrolífera. Mas, caramba, quem nunca errou que atire a primeira pedra!
Mas Vara e Mexia (e tantos outros gestores) deveriam ter tido o cuidado de não se pôr a jeito dos discursos mobilizadores do líder da CGTP.
Não é bom para ninguém (tirando para o próprio Richard Fuld) que o CEO da Lehman tenha recebido 100 milhões de euros de prémio poucos meses antes do banco ir ao tapete, accionando o gatilho que fez disparar a crise.
Não é bom para ninguém (excluindo os beneficiários) que a AIG se preparasse para distribuir 168 milhões de dólares de bónus aos executivos, depois da Reserva Federal ter gasto 170 mil milhões de dólares a salvá-la.
Da mesma maneira que não é bom para a Igreja Católica (em particular para a credibilidade do voto de pobreza dos franciscanos) saber-se que o padre Melícias tem uma pensão mensal de reforma de 7450 euros, também não é bom para a paz social no país que os gestores do PSI 20 ganhem, em média, 23 vezes mais do que os trabalhadores.
De acordo com um estudo da OIT, Portugal é dos países desenvolvidos onde nas últimas décadas mais cresceu o fosso entre os trabalhadores mais bem remunerados e os que recebem salários mais baixos.
Para evitar o alastrar da contestação, uma solução simples (tipo lápis para os cosmonautas) seria o Governo socialista impor um tecto salarial (um múltiplo razoável do salário mínimo ou o salário do PR) a todas as empresas que sejam apoiadas com o dinheiro dos contribuintes.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias