Calculo que durante os 18 anos que estive o Expresso participei em 1500 reuniões com gente de Lisboa. Apenas recordo um único incidente desagradável dessas 500 ou 600 horas de reunião.
Não me lembro do tema mas a discussão acalorada atingiu o clímax quando um colega meu, à época subdirector, desatou a gritar comigo e pôs um ponto final na sua argumentação berrando: «Era o que me faltava agora vir um gajo do Porto dar-me lições sobre jornalismo!».
O director adjunto que dirigia a reunião teve a arte de serenar os ânimos. E o subdirector exaltado teve a humildade de me telefonar, à tarde, a pedir-me desculpa do sucedido, evitando com este gesto bem educado que o incidente da manhã envinagrasse a nossa boa amizade.
O incidente ficou sepultado, mas passei a estar consciente que a minha denominação de origem geográfica atenuava a credibilidade das opiniões que expresso.
Lembrei-me deste episódio há pouco mais de um mês, quando participava numa sessão dos Olhares Cruzados sobre o Porto (uma louvável iniciativa do Público) e o presidente da Associação Comercial do Porto se lamentou dos tiques centralistas dos lisboetas.
Explicou Rui Moreira que a decisão da sua associação de encomendar um estudo sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa foi recebida com desdém na capital.
Perguntaram-lhe o que é nós, do Porto, tínhamos a ver com o assunto, como se a nossa condição de portuenses nos inibisse de nos pronunciarmos sobre questões com epicentro a sul de Aveiro – o que até poderíamos aceitar se o dinheiro dos nossos impostos fosse apenas usado para financiar investimentos públicos a norte de Aveiro.
Augusto Santos Silva, que tinha dado o pontapé de saída na discussão, não poupou nas palavras quando se tratou de concordar com Rui Moreira. Disse que, por ser do Porto, era «vítima de racismo» em Lisboa e documentou a afirmação. Na escolha de Guilherme Costa para presidir à RTP foi acusado de estar nomear «os amigalhaços do Porto».
Os exemplos dados destes «racismo» foram vários, designadamente a revolta escrita de Fernando Rosas quando da decisão de instalar no Porto o Centro Português de Fotografia («E como é agora? Temos de ir ao Porto quando precisarmos de consultar os arquivos?!!», indignou-se o bloquista) e a frieza com que Isabel Pires de Lima foi recebida na capital- «Era preciso ir ao Porto para arranjar uma ministra da Cultura?».
A palavra empregue ( racismo) pode ser forte, mas ilustra bem a situação. E já agora deixem-me dizer uma das coisas que me mais me meteu impressão.O ministro dos Assuntos Parlamentares queixa-se de ser vítima de racismo por ser do Porto, perante uma plateia cheia de jornalistas mas ninguém achou relevante reportar isso aos leitores dos seus jornais.
Na semana passada, Santos Silva voltou a dizer a mesma coisa aos microfones do Rádio Clube. Mais uma vez ninguém achou importante publicitar esta queixa e (por exemplo)perguntar as outros portuenses que vivem e trabalham em lugares de destaque, em Lisboa, se também eles se sentem descriminados.
Neste dia em que se comemora o centenário do regícidio, quero homenagear Dionísio Santos Silva,portuense ilustre e um dos lideres da levantamento armado republicano do 31 de Janeiro de 1891, no Porto.
Dionísio, o inaugurador de quatro inclíticas gerações de Santos Silva, começou a vida como operário chapeleiro e desde moço se envolveu nos movimentos cívicos que assinalaram o início do estertor da Monarquia no último quartel do século XIX.
Em 1877, com 25 anos, foi um dos principais agitadores da greve dos chapeleiros. Porteriormente fundou e foi um dos administradores do jornal Republica Portuguesa, onde colaboraram Basílio Teles, Teófilo Braga, Latino Coelho e António José Almeida, entre outros.
Já era um homem maduro (tinha 47 anos) e estava estabelecido com uma chapelaria no número 65 da rua de Santo António (que mais tarde viria a ser rebaptizada rua 31 de Janeiro) quando foi um dos conspiradores e cabecilhas da revolta de 31 de Janeiro.
Envergonhados com a cedência monárquica ao Ultimatum Britânico (a Coroa aceitou desistir do Mapa Cor-de-Rosa que consistia em criar a África Meridional Portuguesa, de costa a costa, entre Angola e Moçambique), os republicanos portuenses preparam um levantamento militar para derrubar o regime monárquico, que saiu para a rua na manhã de 31 de Janeiro e foi esmagado, por volta da hora do almoço, com o reduto final dos amotinados render-se depois de ter sido encurralado na Praça da Batalha, ao cimo da rua de Santo António, pelas tropas fieis ao rei.
Dionísio foi encarcerado no paquete Moçambique, ancorado em Leixões, e submetido a Conselho de Guerra.Com ele preso, a chapelaria abriu falência. Quando foi libertado recompôs a vida como sócio gerente do Teatro Circo Águia de Ouro.
Dionísio inaugurou uma dinastia de quatro gerações de Santos Silva que marcaram pela positiva, nos últimos 120 anos, a vida da nossa nobre, invicta e sempre leal cidade.
O seu filho Eduardo era médico e foi por duas vezes presidente da Câmara do Porto, tendo sido ele quem criou o Conservatório de Música e a Maternidade e lançou a obra de abertura da avenida dos Aliados e dos Paços do Concelho. Deputado, votou a favor da entrada de Portugal na I Guerra Mundial e de seguida, coerente com o voto, demitiu-se do parlamento e alistou-se no Corpo Expedicionário Português, onde serviu em França, como capitão médico. Era o ministro da Instrução Publica no útmo governo da I Repubica, derrubado pelo movimento do 28 de Maio.
O seu neto Artur era advogado e um dos mais destacados oposicionistas à ditadura salazarista.Foi um dos dois Artures(o outro foi Artur Andrade, oarquitecto que riscou o belo cinema Batalha) que se meteram no comboio e foram a Lisboa convencer, em nome dos republicanos, Humberto Delgado a candidatar-se à Presidência da República. A sua casa, no 321 da rua do Bonfim, era, ao mesmo tempo, a um antro de conspiração contra o regime e um lugar de cultura, frequentado por Mário Soares, Sophia, José Régio, Torga e Salgado Zenha, entre outros.
O seu bisneto Artur é advogado de formação mas distinguiu-se como banqueiro ao ser o fundador do BPI, o primeiro banco privado português a nascer depois das nacionalizações do 11 de Março de 1975
É na generosa vida de Dionísio Santos Silva em que eu penso e reflicto neste dia - o primeiro de Fevereiro e o dia a seguir ao 31 de Janeiro.