Eliminar saudade e fado dos dicionários
Sempre me fez nervoso miudinho o orgulho português na propriedade, em regime de exclusividade, da palavra saudade, escorado no argumento de que ela encerra em si todo um sentimento e estado de espírito intraduzíveis. Uma vigarice! Este arremedo de patriotismo é mais um sintoma da mesma patetice míope que levava o país a rejubilar em uníssono, nos anos 50 e 60, com as vitórias internacionais da nossa selecção no hóquei em patins, modalidade a que mais ninguém liga pevas, excepção feita aos espanhóis oprimidos pelo generalíssimo.
Tudo isto não passa de um gigantesco embuste. Para começar, a conjugação do verbo inglês to miss resolve logo a questão da tradução, aniquilando a tese da originalidade. Depois, olhando para a história recente de Portugal, vemos que somos completamente alheios a qualquer responsabilidade nos dois únicos períodos de que podíamos ter saudades. A década de ouro cavaquista coincidiu com o prémio Euromilhões com que a Europa recebe os novos aderentes. E o canto do cisne ocorrido no triste consulado guterrista foi filho da adesão ao euro, que escancarou as portas do crédito e do dinheiro barato a pessoas como nós, que não sabiam o que era isso, pois tínhamos sido educados na observância da cultura salazarista que sacralizava o não ter dividas – éramos todos pobrezinhos mas honrados, remendados mas nunca rotos.
Não há nada que os nossos Governos tenham feito que me inspire saudades e, já agora, se querem a minha opinião, tenho um pó enorme à fatal e indolente resignação face ao destino que é o programa de vida do fado, a canção que melhor rima com saudade - e anda sempre com a boca cheia dela.
O país ganharia se os dicionários Houaiss e da Porto Editora se coligassem para eliminar das suas páginas o vocábulo saudade. E, se não é pedir demais, se alguém deletassse o género musical fado. O povo está coberto de razão quando diz que tristezas não pagam dívidas.
À troca, ganhávamos se importássemos uma palavra checa (litost) e outra ydish (chutzpah) que me fazem falta para expressar o que sinto pela degradante tragicomédia em cartaz, encenada pelos comissionistas que nos governam, e pelas elites parasitas, de capitalistas sem capital, que só sabem viver com a mão sempre enfiada no nosso bolso.
“Litost é um estado tormentoso que nasce do espectáculo da nossa miséria subitamente descoberta” (O Livro do Riso e do Esquecimento, Milan Kundera)
Chutzpah é a palavra que os judeus usam para significar a desfaçatez, classicamente definida pela história do rapaz que vai a julgamento, por ter assassinado os pais, e implora misericórdia alegando ser órfão.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias