Lousiana não é apenas o nome do estado norte-americano fustigado pelo Katrina, mas também de um magnífico museu, 35 km a norte de Copenhaga, de que usufruí no domingo já que, em claro e público desrespeito pelo conselho presidencial, tenho um curso um périplo pela Escandinávia, que se conclui em Estocolmo no dia a seguir ao casamento da princesa Vitória com o plebeu Daniel Westling, o seu antigo personal trainer.
Os museus são as novas catedrais e a tendência, de que Serralves e o Lousiana são dois exemplos luminosos, é para serem vividos - não apenas vistos - e apresentarem arte que nos desafia, o que é uma bênção nestes tempos em que o bombardeamento de informação a que somos submetidos pelos media electrónicos (Google, YouTube, Facebook, Twitter, etc) não só excede a capacidade do nosso cérebro como é susceptível de nos desorientar, tornando-nos coleccionadores de factos inúteis num momento em que o essencial não é acumular conhecimentos mas sim ser capaz de os seleccionar e interpretar.
De manhã, passei um divertido e intenso par de horas na exposição Warhol after Munch que o museu dinamarquês escolheu como prato de resistência para este Verão e onde são postas em confronto litografias de algumas mais significativas obras do angustiado mestre norueguês - Auto-retrato (com osso do braço), O Grito, Madonna (bastante licenciosa, por sinal) e Eva Mudocci – e as interpretações destes trabalhos feitas em serigrafia pelo artista norte-americano.
Dando razão ao autor do texto do catálogo (afirma que a exposição atenua as ideias feitas de Warhol ser o mestre do superficialidade e Munch um periscópio mergulhado nas profundezas da alma), almocei uma sanduíche de salmão na esplanada do café, em cima da praia com uma deslumbrante vista para o mar, e, antes de ir dar uma volta pelos dois andares da loja/livraria, ainda fiz preguiça no bem tratado relvado do jardim, que partilhei com estátuas de Henry Moore e famílias que faziam piqueniques completíssimos com os géneros trazidos de casa.
As 95 coroas dinamarquesas (pouco menos de oito euros) que investi no acesso a este domingo bem passado no Louisiana não me deixaram com problemas na consciência, pois apesar da situação financeira do nosso país inspirar cuidados, ao ponto do angustiado Cavaco nos pedir para fazermos férias no estrangeiro, a verdade é que ainda há folga para dar umas borlas (que penso serem escusadas) aos estrangeiros que nos visitam, mantendo a Via do Infante e o museu Berardo como Scuts. Enquanto isso acontecer, não contem comigo para me abster de fazer férias lá fora. Em Agosto, estou a planear viajar até aos States.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias
António Gomes de Pinho propôs ao Governo um urgente plano anti-crise, baseado nas potencialidades do sector cultural e das indústrias criativas, que apesar da sua importância passou algo despercebido.
O presidente da Fundação de Serralves apresentou uma série de medidas concretas que está convencido terão, no curto prazo, “um forte impacto na criação de emprego qualificado para as camadas mais jovens e contribuirão, a médio prazo, para a reconversão do tecido empresarial português, conferindo-lhe maior competitividade e inovação”.
Gomes de Pinho estima em 50 milhões de euros (uma bagatela para quem meteu 1 800 milhões a tentar tapar o buraco BPN) os custos do seguinte pacote de medidas:
1.Isenção de taxação de direitos de autor por um prazo de três anos;
2.Apoio à reconversão de espaços fabris encerrados, para instalação de núcleos de empresas criativas, em colaboração com as autarquias;
3.Criação de um passe cultural nacional, para facilitar o acesso da população às manifestações culturais, apoiando deste modo as instituições culturais;
4.Criação de um programa de inventário e restauro de bens culturais móveis e imóveis, em colaboração com os museus, a igreja e as autarquias;
5.Facilitação do acesso ao capital de risco e ao crédito dentro de determinados valores;
6.Criação de um programa intensivo de formação em gestão empresarial para jovens candidatos à criação de empresas culturais, em colaboração com as escolas de gestão e as instituições culturais mais relevantes do país.
Em face da clarividência destas medidas, só me resta assinar por baixo.
Com os seus 412.500 visitantes em 2008, Serralves é não só museu mais visitado do país, mas também uma alavanca essencial para o renascimentodo Porto.
A Fundação comemora o seu 20º aniversário e o Museu o 10º neste turbulento ano de 2009 que a União Europeia proclamou como sendo dedicado à Criatividade e Inovação.
Serralves está completamente sintonizada com este esforço da Europa em reinventar a sua base competitiva e assumiu-se também como uma incubadora de indústrias criativas.
Transformar a criatividade em negócio é o principal objectivo por Serralves ao criar esta incubadora que alberga projectos tão desafiantes com a empresa que aposta na roupa didáctica e aquela outra especializada no restauro de obras de arte contemporânea - passando pela do Alexandre que produz jingles e toques de telemóvel.
Olhando com olhos de ver para o que Serralves está a fazer, ficamos logo com a certeza que o futuro vai ser melhor que o presente.
A exposição «Em viagem 70-76» de Robert Rauschenberg, que está no Museu de Serralves até ao início da Primavera, é importante para perceber o caminho percorrido pelas vanguardas artísticas desde o «ready made» de Duchamp.
A vida é feita de convenções, de datas erigidas em marcos de mudança.
O derrube do muro de Berlim, em 1989, foi eleito como o acontecimento que marca o fim do sonho (e consequentes pesadelos) da Revolução Russa de 1917.
O assassinato do arquiduque Francisco Fernando, em Sarajevo, é aceite como a causa próxima da II Guerra Mundial.
Para facilitar as coisas, vamos assumir que o urinol industrial que Marcel Duchamp autografou e transformou em obra de arte é oacto fundador da arte «ready made», popularizada pelas caixas Brillo e as latas de sopa de tomate Campbell de Andy Warhol, um dos expoentes da Pop Art.
A exposição de Rauschenberg mostra-nos as etapass seguintes na viagem da arte que libertou o objecto encontrado de Duchamp.
Corda, cordel, pedras, pneus, caixas, tecidos, bicicletas, areia, tinta fluorescente, garrafões de vida, baldes metálicos e varapaus são a matéria prima dos 65 trabalhos expostos, que transformam as belas salas de Serralves em praias juncadas pelos despojos de um naufrágio trazidos pelas marés.
Com a sua competência e conhecimento, João Fernandes, director do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, explica-nos que «a obra de Rauschenberg adquiriu uma importância fundamental na desconstrução do ensimesmamento e da autonomia com que o expressionismo abstracto do pós guerra tinham isolado a arte e a vida».
De tudo isto se conclui que vale a pena ir a Serralves para se ser surpreendido por Rauschenberg, mas que, na minha opinião, não se deve elevar muito a fasquia das expectativas.
José Manuel dos Santos (JMS), no Expresso, conclui a sua recensão critica da «Em Viagem 70-76» com uma frase sonora, muito bonita e extremamente bem acabada: «Afinal, que é o Mundo senão a imagem desfigurada (e disforme) de si mesmo? É isto que esta exposição nos diz na sua violenta sinceridade».
Quem sou eu para contrariar JMS ? Não estou em condições de negar que o Mundo seja afinal uma imagem disfugurada e disforme de si próprio. E longe de mim contestar «a violenta sinceridade» da exposição.
Apenas tenho a confessar que, por minha única e exclusiva responsabilidade da minha fraca utensilagem intelectual, a exposição não me disse a mim o mesmo que confidenciou a JMS.
Lamento isso. E lamento também que não tenha visto nos 65 trabalhos de Rauschenberg, naquelas cordas, cordéis, pedras, pneus, caixas, tecidos, bicicletas, areias, tinta fluorescente, baldes metálicos, garrafões de vidro e varapaus, «a exactidão do olhar que se materializa, a pureza do gesto que cai, a certeza da ideia que morre, o ímpeto do avanço que recua, a simultaneidade do instante e da sua fuga». (1)
A exposição de Rauschenberg é importante para percebermos o percurso das vanguardas artísticas, o que não quer dizer que gostemos do caminho que elas estão a trilhar. Não é uma exposição fácil, sexy ou atractiva para os olhos do grande público.
Chegado a este ponto, confesso que estou a usar Rauschenberg para expressar o meu sentimento de que a linha geral da programação de Serralves talvez precise de uma pequena correcção na sua rota.
Serralves disputa taco a taco com os Coches o titulo de mais visitado dos museus portugueses, mas é, sem sombra de dúvida, o museu mais visitados por portugueses.
São portugueses cerca de 95% dos visitantes que no ano passado demandaram Serralves, enquanto que são estrangeiras mais de 40% das pessoas que vão ao Museu dos Coches.
Serralves é não só um dos principais imãs de atracção de turismo interno à nossa cidade, como ainda ém a par do FC Porto, da Casa da Música e do Vinho do Porto, uma das principais e vigorosas componentes do carácter da marca Porto.
Tem, por isso, uma enorme responsabilidade.
A oferta de museus do Porto assenta em dois pilares (Serralves e Soares dos Reis) complementados por uma gama razoavelmente variada de pequenas instituições, como o Museu Romântico.
O Soares dos Reis tem uma colecção interessante, onde convivem pintura naturalista, ourivesaria e escultura, mas que temporalmente fica às portas do século XX.
Serralves foi baptizado Museu de Arte Contemporânea, uma razão social que é muito traiçoeira.
Eu comprei o LP dos Velvet Underground com a capa da banana concebida por Warhol e sou contemporâneo de Picasso, Vieira da Silva e Magritte. O meu filho João não é contemporâneo de nenhum destes quatro artistas. Os meus tios são contemporâneos do Amadeu e eu não.
Apesar do âmbito cronológico da palavra contemporânea ser móvel, parece-me claro que Serralves o deve interpretar num sentido largo, deixando flutuar até ao pós II Guerra Mundial. Mesmo assim deixa a oferta museológica do Porto com o flanco desguarnecido no rico período da primeira metade do século passado.
Uma vista de olhos pelo «top five» das mais exposições mais vistas no nosso país, permite uma outra reflexão.
1.Paula Rego, 157 mil visitantes, Serralves 2004
2.In the Rough, Imagens da Natureza através dos Tempos na Colecção Boijmans,130 mil visitantes, Serralves 2001
3.Francis Bacon, 101 mil visitantes, Serralves , 2003
4.Amadeo, 100 mil visitantes, Gulbenkian, 2006
5.Andy Warhol, 75 mil, Serralves 2000
Vai para quatro anos que Serralves não alberga uma exposição campeã de bilheteira. Ora a capacidade de atracção turística do Porto precisa dessas exposições «mainstream». Talvez por isso, a linha geral da programação de Serralves careça de uma pequena correcção de rota.
Devemos estar satisfeitos com os 350 mil visitantes que Serralves atraiu em 2007. Mas não podemos perder de vista os 250 mil visitantes que a colecção Berardo recebeu no segundo semestre do ano passado.
A oferta de Serralves tem de combinar Rauschenberg com pelo menos uma exposição anual de grande público.
(1)Não sei porquê, mas quando li este parágrafo da magnifica crónica de JMS fui assaltado pela seguinte interrogação: será disparatado submeter os críticos de arte a um controlo anti-doping?
Ouça um bom conselho. Faça a si próprio o favor de se deixar mergulhar na formidável explosão de cores intensas (acentuada pela solene alvura das paredes), que experimentará ao visitar a exposição comemorativa dos 90 anos de mestre Júlio Resende, que está na mais bonita de todas as salas da Alfândega – a que recebeu a Cimeira Ibero-Americana que trouxe Fidel Castro ao Porto.
A entrada é de borla, o único preço que terá de pagar por esta imperdível experiência é a subida até ao último andar na severa escadaria de pedra deste edifício tão bem recuperado por Eduardo Souto de Moura. Mas apresse-se, porque domingo dia 4 de Novembro é o último dia. E que tal aproveitar o feriado?
Eu já gostava da obra de Júlio Resende, que me foi apresentada pelo meu amigo Germano Silva. E apesar de não o conhecer pessoalmente ficarei a dever para sempre ao mestre o enorme favor de ter correspondido a um pedido meu para fazer uma capa de uma Revista do Expresso dedicada ao Porto.
Sabia que António Oliveira era um dos maiores, senão mesmo o maior, coleccionador de telas de Resende.
A minha amiga Augusta Bastos tem um óleo magnífico do mestre, uma pequena jóia que me habituei a admirar com detenção, sempre que a visito.
Apesar de instalado numa curva difícil, nunca desperdicei a hipótese de dar um mirada, ainda que de relance, ao painel Ribeira Negra.
E, recentemente, tive a oportunidade de olhar, ver, reparar e tocar no painel que Resende fez para a estação de metro do Bolhão.
Em 2001, a Câmara de Matosinhos, por iniciativa do meu amigo Fernando Rocha (o colega bussolista, não o triste contador de pobres anedotas), facultou-me uma visão mais global da sua obra ao promover uma exposição retrospectiva, creio que comissariada por Armando Alves.
Mas foi ontem à tarde, na Alfândega, que me apercebi da importância nuclear da obra de Resende e fiquei sem perceber porque é que ele não ocupa o lugar cimeiro que lhe merece no panorama da artes no nosso pais.
É impossível não ficar deslumbrado com a maestria de Resende em harmonizar e homogeneizar nas suas telas a variada e rica gama de cores intensas da sua paleta.
Tentei perceber porque é que os panditas que ditam as modas na arte em Portugal teimam em injustiçar Resende. Por que é que ele está representado no Museu de Arte Moderna de S Paulo, na Bliblioteca Real Alberto I (Bruxelas) ou no Museu de Helsínquia – e nenhuma tela dele consta do espólio do Museu de Serralves.
Só encontrei duas explicações, uma estética e outra de roteiro, para explicar o criminoso desdém que o «mainstream» artístico dedica a um pintor que ao longo da sua longa vida recebeu praticamente todos os prémios que podia receber.
Resende terá cometido o pecado estético da permanência no figurativo, que apesar de muitas vezes roçar o abstraccionismo nunca deixa de ser figurativo.
«A minha pintura não deve ser considerada abstracta, pois parto sempre de objectos, de figuras, de formas, para extrair deles valores plásticos», explica o próprio.
Resende terá cometido o crime de continuar a viver no Porto - a Itaca onde regressa sempre após as muitas e longas viagens que se reflectem na sua obra – , de não se ter rendido a Lisboa, cidade que não faz parte do um roteiro geográfico onde constam paragens tão variadas como Paris, Alentejo, a floresta alemã, Brasil, Cabo Verde, Itália, Moçambique ou Goa.
Vivesse o mestre no Príncipe Real, e não em Gondomar, e a história seria, com certeza, diferente.
Tivesse o mestre juntado umas «Mulheres de Alfama» a uma obra vasta onde constam «Família Alentejana», «Vendedeiras de Roma» ou «Mulheres na Ribeira» e a história seria com certeza diferente.
O pecado mortal de Resende foi não ter deitado âncora em Lisboa.