Algures no Verão do ano passado, visitei um call center, na Infante Santo (Lisboa), e fiquei espantado. Num vasto open space, 200 pessoas falavam ao telefone, ao mesmo tempo e em 19 línguas diferentes, resolvendo problemas tão diversos como a do finlandês que não sabia mudar o pneu do seu Peugeot ou de um português que queria obter informações suplementares sobre um PPR.
Cheirava a trabalho naquela sala espaçosa, que tresandava à generosa ideia europeia (que ultimamente tem gaguejado), pois o idioma em vigor em cada grupo de estações de trabalho era assinalado por uma bandeira.
O que mais me impressionou foi saber que era inferior a mil euros o salário médio daquelas pessoas, fluentes em pelo menos uma língua estrangeira e altamente treinadas - os que atendem as chamadas para a linha verde de um banco são frequentemente chamados para dar formação ao pessoal dos balcões.
Uma questão ficou a bailar na minha cabeça enquanto esperava pelo eléctrico na 24 de Julho. Por que raio é que os largos milhares de operadores dos call center, que ganham pouco e trabalham muito em condições bem longe das ideais, ainda não constituíram um sindicato?
Não precisei de chegar ao Cais do Sodré para resolver esta intriga e achar a resposta certa a esta questão pertinente. Os operadores de call center não fundaram um sindicato pela mesma razão que nenhum esquimó compra um frigorífico ou um guineense pede ao Pai Natal um aquecedor - porque não precisam de um sindicato para nada.
A ideia de criar um sindicato também não atravessou a cabeça de gente com novas profissões, como webdesigners, djs, trabalhadores de help desk, personal trainers ou mesmo celebridades, sejam elas mais ou menos duráveis, como a Cinha ou a Cláudia Jacques, ou instantâneas e voláteis, como o Zé Maria, do primeiro Big Brother, a Cátia, da Casa dos Segredos, ou o falso Estripador de Lisboa, da dupla Felícia/Sol.
E se nos dermos ao trabalho de pesquisar nas estatísticas, confirmamos que este alheamento também se apoderou das profissões tradicionais. Um estudo do ISCTE garante que 2/3 dos trabalhadores portugueses não estão sindicalizados - e que quatro em cada cinco nunca fizeram greve.
A situação não está a melhorar. Na última década, a taxa de novos sindicalizados na CGTP caiu mais de 40%. E, de acordo com a OCDE, a percentagem de sindicalizados sobre o total da nossa mão-de-obra recua todos os anos 2,3%.
O problema não é dos trabalhadores. O mundo virou do avesso desde que os sindicatos foram inventados para proteger a classe operária dos excessos da exploração patronal, filha da Revolução Industrial.
O mundo mudou, mas os sindicatos não. Continuam a usar a mesma linguagem, discurso, atitude e formas de luta que eram boas no séc. XIX quando era mal-educado andar na rua com a cabeça descoberta (e ainda não tinham sido inventados o automóvel, a televisão e as férias pagas), mas que no séc. XXI apenas conseguem mobilizar os funcionários públicos.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
É extraordinário o percurso de vida de Manuel Carvalho da Silva, que, nascido há 63 anos numa família de pequenos agricultores minhotos, teve a sorte de escapar à servidão da gleba devido à pressão e persistência do seu professor primário.
Poderia ter cumprido o sonho de ser engenheiro electrotécnico (até aos 13 anos não teve luz em casa) se no final do curso industrial de montador electricista não tivesse sido chamado para a tropa e despachado para a guerra colonial em Cabinda.
Poderia ter sido empresário se em vez de vir ao mundo no pós-guerra tivesse nascido uns dez anos mais tarde, quando começou a florescer a industrialização têxtil dos vales do Cávado e Ave, uma vez que ainda adolescente já evidenciava uma costela empreendedora que lhe permitiu acumular o capital para comprar os primeiros rádio e relógio ao trabalhar as terras dos vizinhos com a debulhadora pedida emprestada ao pai.
Poderia ter sido um alto dirigente do PCP, quem sabe se até mesmo secretário-geral, se tivesse optado por colocar ao serviço do partido os seus imensos talentos de organização que encantaram os gestores das filiais portuguesas das multinacionais alemãs onde trabalhou - ao ponto de o tentarem seduzir com uma carreira internacional.
Poderia até estar com assento na Conferência Episcopal Portuguesa se o pai, em vez de insistir em que o mais velho dos seus seis filhos o ajudasse na lavoura, o tivesse mandado para o seminário.
Católico de formação, temperado pela militância nas fileiras da JEC e da Juventude Agrária, Manuel fez a escolha generosa de dedicar 30 anos da sua vida à defesa dos interesses dos trabalhadores - da melhor maneira que soube e pode.
Há exactamente uma semana, entre o final na tarde e o início da noite, tive o privilégio de estar à conversa com Manuel Carvalho da Silva, a menos de dois meses dele iniciar um novo fôlego da sua vida, em que vai tirar partido do curso e doutoramento em Sociologia, feitos após ter retomado os estudos já com 45 anos.
Perguntei-lhe se ainda acreditava em Deus e na Igreja. Respondeu-me que tinha uma forma muito própria e pessoal de viver essas dimensões.
Ontem, no momento de reflexão antes de escrever esta crónica, vieram-me à cabeça estas palavras sábias do líder da CGTP.
Revi-me nelas. Na verdade, eu tenho uma forma muito própria e pessoal de viver esta dimensão da luta sindical e da greve geral.
E essa forma própria e pessoal leva-me a preferir que o patrão me peça para trabalhar mais meia hora por dia do que apenas quatro dias por semana - como se prepara para fazer António Costa (o amigo com que Carvalho da Silva tomou café durante a campanha para as últimas autárquicas) aos trabalhadores da Câmara de Lisboa. Gosto de me sentir desejado.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
Sem o envolvimento activo dos professores é impossível reformar o sistema educativo
Tenho para mim que uma pessoa tem de se agarrar a sólidas normas orientadoras para se desembrulhar nesta vida, que está cada vez mais complicada.
Um dos princípios que sempre me norteou, sintetiza-se numa pequena frase: «Se queres ganhar ao Boris Becker não vás jogar ténis com ele».
Esta frase orientadora é filha directa da filosofia fundadora da guerrilha. Devemos evitar entrar em batalhas que à partida sabemos que vamos perder e, em alternativa, esforçar-nos por atrair o adversário para um terreno que nos seja favorável.
Vem esta história a propósito do braço de ferro entre professores e Governo, que a mega manifestação de sábado atirou para um beco que aparentemente não tem saída.
A peregrina ideia do PS de responder à impressionante demonstração de força e unidade dos professores através de um comício nacional de apoio a Sócrates, sábado, no Porto, equivale a uma vâ tentativa de ganhar ao Boris Becker desafiando-o para a medir forças num court de ténis. É uma atitude estúpida e suicidária.
Domingo, cem mil professores (a grande maioria num universo total de 140 mil) inundaram o centro de Lisboa, desfilando do Marquês até ao Terreiro do Paço.
É patético que o PS, que governa com maioria absoluta, escolha responder na rua à revolta dos professores. Não é preciso ser um Einstein para adivinhar que o Governo ser goleado na comparação.
Alguém no aparelho do PS já deve ter percebido isso e , prudentemente, ordenou a transferência do local da manifestação da praça D. João I para o mais aconchegado pavilhão do Académico, que não será difícil de lotar pois é uma sala à medida da capacidade de mobilização do Bloco de Esquerda.
É à mesa e não na rua que o Governo pode ultrapassar esta crise. Mas para vencer, Sócrates tem de ter a humildade de perceber que não lhe basta ter razão e que avaliou mal a situação quando em Outubro declarou que não confundia professores com sindicatos.
O gigantesco esforço de democratização do ensino que se seguiu ao 25 de Abril já deu alguns frutos. Prova disso é o facto de, em 20 anos, a taxa de escolarização no secundário ter aumentado 50%. Mas ainda há muito longo caminho a percorrer . Os 17% de alunos repetentes no secundário estão dramaticamente longe demais dos aceitáveis 3,9% que constituem a média de repetentes neste escalão de ensino nos países da OCDE.
Os 120 mil alunos que chumbam anualmente no básicoe os 46% que abandonam a escola no 12º ano são números que gritam por uma urgente reforma do nosso sistema educativo.
Sócrates tem razão quando diz que não se pode adiar por muito mais tempo esta reforma. Mas tem de ter a lucidez de perceber que não a pode fazer contra a vontade dos professores, que são os principais intérpretes e a peça chave do sistema educativo.
A pífia remodelação de 29 de Janeiro retirou ao primeiro ministro a margem de manobra para deixar cair Maria de Lurdes Rodrigues. A única bóia de salvação que ele tem ao alcance é agarrar-se à proposta de mediação apresentada por João Lobo Antunes, o ex-mandatário nacional de Cavaco.