Bosta de hipopótamo com lombrigas
Nunca estive em Veneza, pelo que não me sinto habilitado a pronunciar-me sobre a Praça de São Marcos, mas não tenho dúvidas de que o Terreiro do Paço merece figurar no top ten das mais bonitas praças do Mundo, onde incluo Praça Vermelha, Place des Vosges, Plaza Mayor de Salamanca, Piazza Navona, Grand Place, Stare Miasto de Praga e o Rinek de Cracóvia.
A boca aberta, através do Cais das Colunas, para um rio com ares de mar salgado, até apetrecha o Terreiro do Paço com uma vantagem comparativa única sobre este lote de encantadoras praças que eu já tive a felicidade de viver e saborear.
Admiro o clássico rigor pombalino dos edifícios, gosto do amarelo que os veste, aprecio a majestosidade do arco da rua Augusta e, apesar de discordar do casting para estátua equestre central (D. João II substituiria com vantagem D. José, mas, enfim, não se pode ter tudo), estou convencido que ela vai melhorar muito quando as elegantes arcadas forem ocupadas com lojas e cafés, a placa central estiver decorada com esplanadas e o grupo Pestana democratizar o acesso ao MAI, transformando-o em Pousada de Portugal.
Além de espantosamente bonita, a Praça do Comércio trás boas memórias aos republicanos (foi aqui que em 1908 os regicidas espetaram o último prego no caixão da Monarquia), acolhe o Martinho da Arcada, local sagrado de culto para um pessoano que se preze, e é a demonstração da justeza da tese shumpeteriana da destruição criativa – não fora o Terramoto de 1755 e este local seria uma enxovia ao estilo do Campo das Cebolas.
Mas este amor vira ódio mal atravessamos a fronteira que separa o literal do figurado e o Terreiro do Paço passa a simbolizar o centralismo que nos estrangula e empobrece, o local onde foi inventado o efeito de dispersão, que permitiu desviar para Lisboa 193 milhões de euros de fundos comunitários destinados ao resto do país - e a este Governo pirata sacar 500 milhões de euros, que Bruxelas atribuíra ao TGV Porto-Vigo e Porto-Lisboa, para financiar a terceira travessia sobre o Tejo.
O fedor a esgoto (literal) que nos invade quando entramos no Terreiro do Paço pela Ribeira das Naus, ainda nos acompanha quando, na esquina seguinte (a do Ministério das Finanças), apanhamos com uma nova baforada de mau cheiro (figurado): a da quebra de 85% do PIDCAC para o Porto (que caiu de 351,1 milhões, em 2009, para 55,7 milhões, em 2010), enquanto o de Lisboa engordava de 264,2 milhões para 372,7 milhões.
Quando estas estatísticas me vêem à cabeça, o Terreiro do Paço parece-me uma praça tão bonita e cheirosa como bosta de hipopótamo com lombrigas.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Diário de Notícias