Um desabafo do 128949/7
Os meus 16 meses de funcionário público foram um dos períodos mais excitantes dos 33 anos que levo a trabalhar. Apanhei o gosto pelas grandes caminhadas. Aprendi a importância da disciplina - e a perceber por que é que o sábio Calouste Gulbenkian nos recomendou beijarmos a mão que não ousamos morder. Fiquei a conhecer as novas fronteiras da minha resistência física e psicológica. E fiz bastante turismo interno, de Mafra até ao Funchal, com escalas em Beja e Santa Margarida a propósito do Orion, o equivalente militar à romagem anual do 13 Maio a Fátima.
Achei bastante divertido calcular a trajectória dos tanques e estudei com afinco as especificidades do tiro curvo e do tiro tenso, para me habilitar a concluir com sucesso a especialidade de Anticarro e Morteiro Médio, cuja existência desconhecia. Antes de ser chamado a cumprir o serviço militar obrigatório julgava que a oferta de Infantaria se esgotava entre o arranhanço dos Atiradores e a semipeluda do pessoal de Transmissões.
Atendendo ao que se dizia que custava cada granada (e apesar de ter andado um dia surdo), deu-me um grande gozo disparar o canhão sem recuo 90. Tornei-me familiar com a G3, se bem que para desfiles e paradas preferisse usar a FBP, bem mais elegante, maneirinha e leve.
Confirmei que as botas da tropa, usadas e bem engraxadas, são do mais confortável que há para andar. Não me espantei quando o verde militar e as calças com grandes bolsos laterais entraram na moda, porque sempre achei muito fashion a farda n.º 3. Finalizando o capítulo do vestuário, devo declarar que além de útil, a rede mosquiteiral ficava a matar como cachecol quando andava de camuflado.
Arrependi-me de não ter aproveitado para tirar a carta e aprender a jogar bridge, mas mesmo assim não dou os 16 meses por mal empregues. Posso ter trazido o fígado em pior estado e atrasado a vida, mas o que ganhei em desembaraço compensa bem isso.
Num momento em que os militares se promovem à má-fila e andam pelas ruas a manifestar-se, o Otelo delira sem chutar para a veia, e as Forças Armadas reivindicam mais generais (temos uns 180, dos quais 156 no activo), apesar da IGF ter concluído que já temos 54 generais excedentários, procedi a este breve inventário do meu período de funcionário público com o número mecanográfico 128 949/77 para declarar que não há mal-entendidos entre mim e o Exército.
Posto isto, declaro que não consigo descortinar uma boa razão para continuarmos a gastar 1,2 mil milhões de euros/ano nos salários de 40 mil efectivos de umas Forças Armadas que não conseguem defender-nos das reais ameaças à nossa soberania e independência nacional que são os gananciosos mercados financeiros viciados em short selling, dos credores impacientes e desconfiados e das agências de rating.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias