Para se pouparem ao desgaste psicológico do processamento dos mortos, os nazis entregavam essa tarefa mórbida a prisioneiros, que recompensavam com uma ração extra de comida, senhas para o bordel de Auschwitz ou outras pequenas regalias.
Eram judeus, apelidados sonderkommando, que passavam em revista os corpos dos judeus acabados de morrer na câmara de gás decorada com chuveiros.
Extraíam-lhes os dentes de ouro, posteriormente fundidos em barras.
Despojavam-nos de anéis, pulseiras, brincos, e procuravam com detalhe todos os orifícios do corpo onde pudessem estar dissimuladas jóias ou dinheiro.
Cortavam-lhes o cabelo, posteriormente enviado para fábricas onde era usado como matéria-prima para confeccionar, entre outras coisas, peúgas de feltro para a tripulação dos submarinos.
Depois de processados os corpos, os sonderkommando transportavam-nos para os fornos crematórios.
Esta impressionante mecânica do processo de extermínio de milhão e meio de judeus, ciganos, homossexuais e presos políticos em Auschwitz é descrita e analisada pelo britânico Laurence Rees no livro "Auschwitz: The nazis and the final solution", que comprei na livraria deste campo de concentração, nos arredores de Cracóvia.
Domingo, ao visitar uma exposição sobre o terror nazi (1939-45) e soviético (45-56), no Museu Histórico de Cracóvia, localizado no edifício que serviu de sede à Gestapo, veio-me à memória o livro de Rees e as tenebrosas imagens da exposição de bens confiscados aos judeus - pares de sapatos, malas, próteses, roupas, óculos, pincéis de barba, carrinhos e enxovais de bebé, enxovais - que foi um dos mais violentos socos no estômago que levei quando visitei Auschwitz.
Os nazis levaram a Humanidade ao ponto mais baixo da sua história. Mas a sua derrota e a reconstrução europeia do pós-guerra foram as estacas em que assentou o maior período de paz e prosperidade do Velho Continente, proporcionado pelo diálogo entre países outrora inimigos institucionalizado primeiro timidamente com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, e depois aprofundado até ao euro.
Nesta curva da estrada em que a Europa está, é importante darmos ouvidos aos conselhos de quem tem memória e o saber de experiência feito, como Helmut Schmidt, que, de cadeira de rodas e já para além da fronteira dos 90 anos, saiu do seu retiro para avisar: "Quem considerar que a sua nação é mais importante que a nossa comum Europa está a prejudicar os mais fundamentais interesses do seu próprio país".
Se calhar não seria má ideia que a próxima cimeira europeia se realizasse em Cracóvia, após uma visita demorada dos líderes aos campos de morte de Auschwitz e Birkenau. Talvez fosse mais produtiva.
Jorge Fiel
Esta crónica foi hoje publicada no Jornal de Notícias
A Comissão Europeia tem os seus requintes e um deles é o Fundo Europeu de Ajustamento à Globalização (FEG), criado pelo nosso Durão Barroso e apetrechado com um orçamento de 500 milhões de euros.
Nós já começamos a petiscar na mesa do FEG. O Governo de Lisboa pediu e Bruxelas deferiu um envelope de 2,4 milhões de euros para ajudar os 1549 trabalhadores portugueses despedidos da indústria automóvel a arranjar emprego.
O grosso dos beneficiados pelos 2,4 milhões do Fundo Europeu de Ajustamento à Globalização são os ex-trabalhadores suicídas da General Motors da Azambuja, que fizeram greve contra a proposta de acordo de empresa, depois da multinacional norte-americana ter anunciado publicamente que ia fechar fábricas na Europa.
O pelotão dos 1549 é completado com ex-trabalhadores da Alcoa (Seixal) e da Johnson Control (Nelas e Portalegre).
Fico satisfeito pela ajuda conseguida em Buxelas, especialmente se esses dinheiros foram transformados em subsidios de deslocação que ajudem os 1549 a mudarem-se para Valença, onde o presidente da Cãmara está desesperado porque várias multinacionais fornecedoras de componentes à PSA de Vigo querem instalar fábricas no parque industrial do concelho e só ainda não o fizeram apenas porque não encontram mão de obra especializada.
Só não compreendo porque é que o o Governo de Lisboa ainda não pediu Bruxelas a intervenção do FEG para ajudar a dolorosa reestruturação das nossas indústrias têxtil e de calçado, vítimas da globalização.
Há apenas duas explicações para este esquecimento.
Ou Sócrates e o seu impagável ministro da Economia andam a comer muito queijo.
Ou Orwell tinha razão quando escreveu que somos todos iguais, mas uns são mais iguais que outros.
A confirmar-se esta última hipótese, sou obrigado a concluir que os porcos triunfaram em Portugal.
Presenciei um momento mágico na única vez que fui a Luanda, no final do anos 80. Viajava com o Nicolau Santos, que, 15 anos depois, retornava pela primeira vez ao país onde nasceu e se fez homem.
Deixamos as malas por abrir no Hotel Presidente e fomos logo passear. A primeira escala foi a casa onde o Nicolau cresceu. À janela estava um negro idoso, que após um momento inicial de hesitação, soltou uma frase curta, dita com a voz a tremer: «Menino Nicolau!!!».
Caíram emocionados nos braços um do outro. A antiga casa do Nicolau tinha ficado para o empregado da família - e o meu amigo estava feliz por assim ter acontecido.
Mais de 15 anos volvidos sobre este momento, a Angola sem esperança e destroçada pela guerra que visitei já não existe mais. Agora é o país do Mundo que mais cresce – 23,4% este ano, 26,6% no próximo.
O petróleo é a locomotiva deste fantástico crescimento que permite a Luanda ter em curso um plano de investimento de 21,5 mil milhões de USD em infra-estruturas.
São já muitas as empresas portuguesas que têm sabido surfar em cima desta onda. De Janeiro a Setembro, as nossas exportações para Angola aumentaram 41% face ao mesmo período de 2006.
Portugal é o principal fornecedor de Angola, que é o nosso 2º maior mercado fora da UEO GES, PT, Américo Amorim, BPI e as principais construtoras já lá estabeleceram sólidas bases. E está na linha de partida uma vaga de investimentos industriais de produtoras de bens de consumo, como a Unicer, Compal, Tintas Barbot, Fogões Meireles e Aerosoles.
Os dois países estão a cair nos braços um do outro, tal como aconteceu com o Nicolau e o antigo serviçal da família Santos.
Angola é uma janela aberta que deixa entrar ar fresco na nossa economia estagnada e sociedade sufocada por uma taxa de desemprego recorde.
Atendendo à importância estratégica de Angola e ao facto de, pela primeira vez em 30 anos, as economias dos países subsaharianos estarem a crescer ao mesmo ritmo que o resto do Mundo, o Governo Sócrates brilhou a grande altura ao colocar África na agenda internacional.
Mas para garantir o sucesso da cimeira UE-África, Sócrates tem de tornar evidente perante a opinião pública internacional a enorme hipocrisia do seu amigo Gordon Brown ao invocar o pretexto da presença do ditador Mugabe para tentar boicotar a reunião.
Devemos fazer nossa a lição de pragmatismo dada pelo antigo primeiro ministro inglês Disraeli: «Não temos nem aliados eternos, nem inimigos perpétuos. O que temos é interesses eternos e perpétuos».
E os interesses de Portugal implicam que 45 anos depois, volte a estar actual o «soundbyte» de Salazar: «Para Angola, rapidamente e em força».
Só que desta vez não vamos de barco fardados e de Mauser ou G3 na mão. Também não vamos como pais que usam a força para tentar meter na ordem um filho rebelde.
Desta vez, vamos de avião, com mercadorias e contratos de investimento na mão. E já não nos relacionamos como pai e filho, mas antes como primos, que sabem que são diferentes mas se respeitam e sabem que aquilo que nos une é muito maior do que o nos divide.
Jorge Fiel
PS. Esta crónica foi publicada hoje no diário económico Oje (www.oje.pt)